Renata Corrêa: “Escrevi sobre temas que atravessaram meu corpo”
A escritora e roteirista da TV Globo Renata Corrêa fala sobre o lançamento do livro “Monumento para a Mulher Desconhecida”, com ensaios sobre o íntimo feminino
A escritora, dramaturga e roteirista Renata Corrêa começou a emprestar a voz ao movimento feminista por volta de 2010. Nessa época, integrou o coletivo Blogueiras Feministas, inciativa de debates e divulgação sobre o tema, e a publicar seus textos nas redes sociais.
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De lá para cá, escreveu para veículos diversos e embarcou em projetos em que o protagonismo e a emancipação feminina estava em foco, como o documentário Clandestinas (2014), sobre aborto no Brasil, e a série de vídeos “Como Não Ser Um Machista Babaca” (2018). Escreveu a peça “A Fábrica de Cachorros – Instruções Feministas para Tempos Fascistas” e o livro de contos “Vaca e outras moças de família” (Patuá, 2015) e produziu o podcast Primas, com a influenciadora Carla Lemos, sobre cultura e “feitos das minas mundo afora”.
Contratada da TV Globo desde 2018, na qual ela também transitou pelo humor em programas como o “Tá no Ar: a TV na TV” (2014-2019), ela estreia em junho no roteiro de “Rensga Hits!”, série sertaneja que vai homenagear Marília Mendonça.
Em paralelo, está em cartaz em São Paulo com o espetáculo de humor Extra!Ordinárias, com roteiristas, elenco e equipe técnica composta por mulheres, e comemora o lançamento de “Monumento para a Mulher Desconhecida” (Rocco, 2022), livro de ensaios em que trata de temas que vão de puerpério e carga mental na pandemia e padrões de beleza opressores, quase sempre permeados por experiências pessoais. “Eu quis trazer vivências íntimas das mulheres que são comumente silenciadas”, conta.
Em conversa Gama, ela fala mais sobre o livro e os caminhos que o feminismo (ou os feminismos) têm seguido.
Eu não faço o texto do lacre. Eu escrevo para abrir um diálogo
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G |Como surgiu a ideia do livro?
Renata Corrêa |Foi no ano passado, a partir de alguns textos que já existiam. Apresentei o projeto para a editora Rocco quando eu vi que tinham um tema em comum, que era a invisibilidade dos temas íntimos femininos. Eu escrevi sobre temas que me atravessaram intimamente como autora e como mulher, temas que literalmente atravessaram meu próprio corpo. São experiências relacionadas ao mercado de trabalho, às amizades, à saúde mental, à questão dos diretos sexuais e reprodutivos que geralmente são abordadas publicamente de um jeito que está muito distante da nossa intimidade. Às vezes fica uma coisa muito “ou você ama seu corpo ou é insegura”, sendo que entre esses polos existem nuances mais profundas. Quando a gente fala desses temas com as nossas famílias, nossas amigas ou na nossa análise a gente traz essa complexidade. Então eu quis investigar isso, que tem a ver com uma característica da minha escrita: eu não faço o texto do lacre. Eu escrevo para abrir um diálogo. E esse diálogo é uma garrafinha jogada no mar que eu espero que vá muito além daquilo que eu escrevi. Que seja uma centelha para um fogo que se alastre para outros lugares.
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G |Você traz certo didatismo ao tratar de temas como essencialismo biológico e carga mental. Foi a intenção?
RC |É engraçado porque muitas vezes se usa a palavra didatismo com um valor negativo. Quando na verdade ser didático é um recurso que a gente pode usar exatamente porque sabemos que não estamos todos partindo do mesmo lugar. Ser didático ajuda a democratizar a compreensão e o acesso ao que se está dizendo, porque muitas vezes ficar só jogando uma avalanche de conceitos não faz com que as pessoas entendam que essas coisas atravessam as suas vidas, sua intimidade, seu corpo. Então sim, usei esse recurso para trazer esse conceitos que são mais “sofisticados” de um jeito que os explique. Por isso até eu me coloco como personagem, falo na primeira pessoa. Porque também se tem uma ideia de que uma mulher feminista não passa por certas coisas, que quando qualquer desigualdade acontece com ela, ela pega uma espada samurai e resolve. Quando não é assim, esse problemas são estruturais e acontecem com a gente nos ambientes que a gente acha que são mais seguros, no trabalho, em casa, com os amigos.
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G |Neste momento de tantas conquistas, é preciso lembrar que o caminho ainda é longo quando se trata de igualdade de gênero?
RC |Sim, mas é importante lembrar também o quanto a gente já caminhou. Se a gente pensa o quanto conseguimos com a luta feminista nessa virada para o século 21, são feitos extraordinários. A gente tem muito ainda para caminhar porque a violência de gênero, a diferença de salário, a falta de autonomia sobre o corpo, o assédio ainda são uma realidade. E hoje, claro, eu me considero uma feminista interseccional, que olha para as relações de gênero junto a classe, raça, orientação sexual, questões de capacitsimo. É impossível falar “a mulher”, são muitas mulheres. Durante muito tempo as feministas que nós admirávamos tinha aquele estereótipo de pessoa branca, americana e europeia sufragista. Mas quem estava limpando a casa delas enquanto elas estavam na rua lutando? E que tipo de lutas elas estavam fazendo, sendo que não tinham ideia do que as outras estavam passando? Não necessariamente uma política publica que vai servir para uma vai servir para a outra. A gente quem te pensar nesse coletivo de mulheres não como um exército de roupinha igual marchando junto mas um ecossistema de mulheres que se retroalimenta e cresce junto.
Às vezes fica uma coisa muito “ou você ama seu corpo ou é insegura”, sendo que entre esses polos existem nuances mais profundas
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G |Como você vê a possibilidade de conversa entre gerações de mulheres hoje?
Renata Corrêa |Eu acho que as mulheres mais velhas já têm uma compreensão muito ampla e clara a respeito das coisas que elas sofreram. Elas vêm fazendo uma ressignificação da trajetória delas a partir do que a popularização da pauta feminista trouxe. Eu acho muito bonito ver como o que as mulheres mais jovens compartilham reverberam emocionalmente nas mais velhas. Então essa conversa está longe de ser impossível, mas ela requer abertura, disponibilidade e vulnerabilidade para escutar de ambas as partes. Porque, de qualquer jeito, nem sempre todas as pessoas estão preparadas pra abraçar todas as pautas, é muita coisa, né. Cada mulher tem uma curva de aprendizagem diferente em relação ao feminismo, é preciso respeitar o tempo de cada uma.
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G |Ainda leva tempo para uma mulher “descobrir no próprio nome e no próprio corpo o exato lugar onde ela deve estar”, como você diz no livro?
RC |Sim. Eu acho que é como a Simone de Beauvoir falou, “tornar-se mulher”. Essa frase é maravilhosa porque pode ganhar contornos e significados diferentes ao longo do tempo e ser lida de diversas maneiras. Se tornar a mulher que você quer ser pode ser se empoderar da própria voz e conseguir verbalizar o que deseja e precisa e lutar por isso. E isso leva tempo. Porque as estruturas que oprimem as mulheres são violentas – a gente tem uma ministra como a Damares em pleno século 21. Mentiras sobre a nossa inferioridade muitas vezes se infiltram na gente e acabam reverberando como verdade. Então leva tempo pra ouvirmos a própria voz e não as vozes que dizem o que a gente tem que ser ou deixar de ser por ser mulher.
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G |Você fala da popularização do discurso feminista. O que esse “feminismo pop” traz de bom e o que traz de desafiador?
RC |Eu acho que o mais relevante que essa popularização trouxe foi poder debater livremente com mulheres de vários lugares a respeito dessas experiências, a respeito da luta política do feminismo como um todo. Eu por exemplo faço parte da Universidade Livre Feminista, que realiza encontros e democratiza a educação feminista nas redes sociais gratuitamente. E isso é fenomenal. Outra coisa que essa popularização traz é deixar entender que experiências como de assédio, por exemplo, são experiencias coletivas. Com hashtags como #meuprimeiroasssedio, #metoo, etc, essas histórias vêm à tona e você entende que não está sozinha, que é uma experiência coletiva de um problema que é estrutural. E isso é uma mudança política, social e cultural maravilhosa. Agora também tem desafios, porque as redes sociais são também o lugar do hipermepoderamento individual, o lugar onde muitas vezes você não precisa se engajar em uma luta política para se beneficiar desse discurso político. Como ser feminista virou quase uma commodity social em alguns meios, é um discurso que se adota mais do que se pratica em alguns lugares. Como a gente vê em empresas que usam o discurso do empoderamento mas continuam contratando os mesmo homens brancos. Porque o que se vê nas redes sociais é um post, uma foto, uma legenda, uma dancinha, então é muito fácil as pessoas confundirem isso com uma luta política feminista.
Cada mulher tem uma curva de aprendizagem diferente em relação ao feminismo, é preciso respeitar o tempo de cada uma
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G |Como você tem visto isso na TV?
Renata Corrêa |Eu acho que a gente tem grandes avanços, e dá para perceber na TV americana, que é a mais consumida no planeta. Nos anos 2000 a gente tinha grandes séries sobre “homens difíceis”, tem até livro sobre isso, tipo Walter White (Breaking Bad), Tony Soprano (The Sopranos), Don Draper (Mad Men). E eu acho que a indústria percebeu que estava perdendo uma grande parte das suas expectadoras porque as pessoas querem se ver na tela. Então depois teve uma onda de grandes protagonistas femininas, como em “I May Destroy You”, “Insecure”, “Girls” e a britânica “Flea Bag”. E a gente vê as mulheres tomando não só o protagonismo das histórias mas escrevendo os roteiros, produzindo, dirigindo. Então tem uma mudança em curso que está trazendo debates que não eram conversados há 20 anos.
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G |Você participou recentemente de vídeo com a escritora Tati Bernardi em que ela se dispõe a se “autocancelar” tirando dúvidas sobre feminismo na vida dela. É importante a gente se acolher nesse processo de se descontruir?
RC |Coerência é uma busca e um horizonte. O mais importante é que a gente esteja se aproximando disso sempre, tentando fazer essa diferença entre o que se pensa e se pratica menor. Muitas vezes você vai ter um insight sobre uma desigualdade de gênero mas naquele momento está em uma situação em que não pode fazer nada – você não pode sair daquele emprego em que aquele chefe escroto rouba suas ideias, por exemplo. Então temos que ser generosa com a gente mesma no sentido de que fazer o que dá conta naquele momento. E, como eu disse, as curvas de aprendizagem são diferentes para cada mulher. Temos que se olhar com empatia e cuidado nesse processo.
- Monumento para a mulher desconhecida
- Renata Corrêa
- Rocco
- 176 páginas
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