“O livro é a única fonte confiável de saber que o estudante mais pobre tem”
Especialistas em educação criticam projeto do governo paulista, derrubado pela Justiça, de trocar livros didáticos do PNLD por materiais digitais
Após muita polêmica, vaivéns e uma ação popular movida por parlamentares do PSOL — a deputada federal Luciene Cavalcante, o deputado estadual por São Paulo Carlos Giannazi e o vereador Celso Giannazi —, a Justiça paulista concedeu, nesta quarta-feira (16), uma liminar que obriga o governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) a retomar o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), responsável pela compra desses materiais para as escolas.
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Todo o imbróglio se deu em reação ao anúncio feito dias atrás pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, chefiada por Renato Feder, de que abandonaria o uso de livros impressos do PNLD para utilizar, nas turmas a partir do 6º ano do ensino fundamental, apenas material didático digital produzido pela própria Seduc. Num primeiro momento, com a intensa repercussão negativa por parte de professores, alunos e especialistas em educação, Feder recuou e sugeriu que o conteúdo fosse impresso, encadernado e entregue aos estudantes.
A atenção que os seres humanos dedicam a interfaces digitais é menor que a dedicada às impressas
Além de gastos extras e materiais produzidos às pressas sem foco na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), especialistas argumentam que a adoção de livros digitais de uma hora para a outra, sem uma implementação cuidadosa, ajuda a ampliar a desigualdade entre alunos da rede pública e de escolas particulares. Profissionais da área educacional também apontam que a troca “monocrática” e “improvisada” do papel pelo digital vai contra evidências científicas que mostram que o texto analógico proporciona uma leitura aprofundada, mais atenta e que colabora com a formação do pensamento crítico.
“A atenção que os seres humanos dedicam a interfaces digitais é menor que a dedicada às impressas. Sim, recursos digitais e tecnológicos podem contribuir para o processo de aprendizagem, porque melhoram o engajamento e o interesse dos jovens, mas eles são complementares, não substitutos”, diz João Marcelo Borges, gerente de pesquisa e inovação do Instituto Unibanco e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da FGV.
Professor de história da rede pública municipal e estadual de São Paulo, José Guilherme Zago concorda e fala que trocar as obras do PNLD, já consagradas, por uma porção de slides, demonstra que a secretaria não sabe como funciona a dinâmica de uma sala de aula, que não se resume ao “professor passar slide enquanto o aluno fica sentado, copiando”. “Uma parte enorme das atividades é ler, sublinhar, ler em voz alta. Há uma série de atividades em que você precisa do papel. Se em uma faculdade já é difícil acompanhar o slide, imagine um estudante com dez, onze anos”, conta.
Para comentar a situação paulista, Gama ouviu os dois especialistas, que responderam algumas perguntas sobre o tema. Leia abaixo.
“Em muitos casos, o livro didático é o único livro que um estudante de periferia possui em casa”
José Guilherme Zago, professor de história da rede pública municipal e estadual de São Paulo
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G |Quais os principais problemas da adoção de materiais didáticos digitais como vinha sendo feita em São Paulo?
José Guilherme Zago |O que houve foi uma improvisação misturada com mentiras. Quando os materiais digitais foram apresentados para nós, professores, vieram como ferramentas de apoio. E não vejo nenhum problema nisso. O Rio de Janeiro tem esse sistema, o Paraná, de onde o Feder [Renato] veio, também. Mas, de repente, descobrimos que o material estava sendo colocado como o único disponível para as aulas — e ele não tem essa natureza. Ou seja, aparentemente foi tudo no improviso, de supetão. O comunicado que tínhamos recebido da Secretaria antes das férias era de que haveria a escolha do PNLD para o livro único. Do nada, mudaram. Para mim, isso é desonestidade, uma decisão monocrática do secretário. Além disso, não sei em que mundo ele acha que uma aula é o professor passar slide enquanto o aluno fica sentado, copiando. Uma parte enorme das atividades é ler, sublinhar, ler em voz alta. Há uma série de atividades em que você precisa do papel. Se em uma faculdade já é difícil acompanhar o slide, imagine um estudante com dez, onze anos. Fora que não há evidência que comprove que o material digital é superior ao impresso. No máximo, ele mantém o mesmo patamar. Inclusive, na pandemia, o foco excessivo no digital se provou no máximo eficaz, quando não piorava a situação. Outro ponto: as aulas não são baseadas em conteúdos, mas nas habilidades da BNCC [Base Nacional Comum Curricular]. Os livros didáticos têm base na BNCC, e o currículo paulista é 90% focado nela. Por isso, não faz sentido o secretário argumentar que o livro didático não casa com o material digital. Só há uma explicação: ele acha que tem que ter uma padronização como se o ensino fosse uma apostila de cursinho. E isso não é desejável numa escola, porque os ritmos são diferentes. A dinâmica escolar não respeita uma linearidade padronizada. Às vezes, você vai dar uma atividade que não funciona naquela aula. Aí, você volta, revisa um mês depois. Os livros didáticos têm essa possibilidade. Os materiais digitais passados para a gente não estão alinhados à BNCC. E, na rede estadual, os slides são exibidos numa televisão que geralmente fica em cima da lousa. Não é uma ferramenta apropriada, fica longe, é difícil de enxergar o conteúdo.
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G |Dá para saber quem está elaborando esses materiais?
JGZ |É um órgão técnico, com funcionários da Secretaria de Educação, que faz seleções internas e contrata profissionais. Às vezes vem gente de fora, mas em muitas outras são pessoas da própria rede. Também há consultores que, geralmente, são autores. Mas, independentemente da competência e da boa vontade dessas pessoas, você não faz um livro didático do zero. E é isso o que acho que o secretário quer fazer. Além de imprimir e encadernar slides, o que é uma palhaçada, se ele quiser criar uma “réplica” do PNLD, não tem como fazer bem feito em três meses, é impossível. Então, é uma atitude totalmente improvisada que ou não sai ou sai sem revisão, com erros. O secretário fez uma política totalmente desastrada, tomou uma decisão mal pensada e está tentando corrigir. Falou que vai imprimir, mas quem vai imprimir? Primeiro, disse que seriam as escolas, mas há escolas que nem impressoras têm. Depois, ficou subentendido que vai ser impresso por um órgão central, mas não há clareza disso também. Se for um órgão central, precisará de licitação, e todo mundo sabe como funciona licitação no Brasil.
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G |E como uma possível adoção de material didático 100% digital prejudica os estudantes mais pobres e das periferias?
JGZ |O livro é um objeto cultural. Com a internet hoje é um pouco diferente, mas, muitas vezes, o livro é a única fonte confiável de saber que o estudante mais pobre tem. E, em muitos casos, o livro didático é o único livro que um estudante de periferia possui em casa. Com essa atitude, a gente vai desprover o aluno da principal ferramenta de acesso à cultura acadêmica. O aluno de baixa renda não vai mais ter em casa o capital cultural que traz um livro sobre a história do Brasil. No lugar, ele vai levar um material de baixa qualidade que talvez o professor até hesite em usar. Todo esse processo leva ao desestímulo da importância do livro, do material impresso, sendo que sabemos que o foco excessivo no material digital gera dificuldades absurdas de concentração, de absorção de ideias, de criação de pensamento crítico. Uma leitura atenta não é, necessariamente, feita só no papel, mas é difícil formar um leitor inicial fora dele. A leitura digital é indicada para um leitor experiente.
“Soluções que dependem de internet não são boas para escolas em regiões onde a conexão é instável”
João Marcelo Borges, gerente de pesquisa e inovação do Instituto Unibanco e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da FGV
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G |O governo de São Paulo chegou a abrir mão da verba federal do PNLD. Quem acabaria arcando com esse valor?
João Marcelo Borges |Vi algumas declarações, inclusive do secretário, de que o impacto financeiro seria zero. Isso porque a proposta original não incluía as impressões. Mas, obviamente, a maioria das escolas não tem condições de usar os slides e acabaria imprimindo os materiais, fosse para os professores que não tinham todos os equipamentos e salas necessários, fosse porque os alunos iam precisar desse material após ficar sem os livros didáticos. Portanto, quem arcaria com esse custo seria o governo de São Paulo, e ele poderia ser atribuído às escolas. Afinal, a impressão seria local. Poderia impactar inclusive os indicadores das escolas que mais gastam, quando na verdade elas estariam gastando com impressão, já que o estado abriu mão dos livros. Então é uma medida que teria até impacto fiscal sobre a educação.
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G |Pelo que se viu dessa tentativa de implementação, como a mudança afeta o ensino nas escolas?
JMB |Para além do impacto que talvez nem seja tão significativo em termos de custo, o mais importante é que não asseguraria a disponibilidade universal sequer dos slides. Uma coisa é imprimir 20 slides para um professor. Uma impressora pessoal consegue dar conta disso. Ao imprimir para os alunos, estamos falando de impressoras grandes, corporativas, que as escolas não possuem. E, mesmo que estivessem disponíveis, com o volume de impressões necessárias, seria natural que várias dessas máquinas dessem problema, acarretando de novo na indisponibilidade do material nas mãos de professores e estudantes. Então não se trata só do custo, mas da real incapacidade de fazer isso. Se na proposta original esses slides fossem materiais complementares, não haveria problema algum. A questão é que foram anunciados como substitutos integrais dos livros didáticos. Aí você tem o problema da disponibilidade dos dispositivos dentro de sala de aula e também nas casas dos estudantes. Sem o material, eles teriam que consultar os slides nos seus celulares, que não são dispositivos adequados para qualquer criança ou jovem estudar.
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G |Qual seria o processo mais adequado para fazer esse tipo de transição?
JMB |Primeiro, a tecnologia incorporada precisa ser de domínio do professor. Portanto, ele deve conhecê-la e ser preparado para utilizá-la. Senão, ou ele vai rejeitar ou usar mal. O segundo ponto é que a solução tem que ter intencionalidade pedagógica, seja para buscar exemplos, acelerar a resposta dos estudantes ou identificar aqueles com diferentes níveis de conhecimento. Um terceiro elemento é que o uso precisa de regularidade, não pode ser esporádico, ou o eventual benefício daquela solução não vai acontecer. Soluções que dependem de internet não são boas escolhas para escolas em regiões onde a conexão é instável, o que torna a utilização irregular. E, por fim, o uso da tecnologia tem que ser guiado. Simplesmente supor que ela vai gerar resultados não funciona, assim como não funcionaria só entregar os livros didáticos nas mãos dos alunos. Então o uso guiado, com domínio do professor e regularidade é crucial para alcançar benefícios. Os professores, coordenadores pedagógicos e diretores precisam definir a intencionalidade pedagógica das soluções, para depois incluí-las num planejamento com as melhores condições de uso. Esse é o percurso necessário.
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