Maia Kobabe, de "Gênero Queer": "Queria que me vissem como sou" — Gama Revista
Foto: M.Ruddell

Maia Kobabe, de “Gênero Queer”: “Queria que me vissem como sou”

Livro de memórias em quadrinhos sobre gênero e sexualidade foi premiado por associações de literatura e banido de escolas públicas em estados conservadores dos EUA

Isabelle Moreira Lima 28 de Junho de 2023

Na Califórnia do fim dos anos 1980, Maia Kobabe nasceu menina, mas já bem cedo entendeu que não se identificava com seu gênero. Pensou que podia ser menino, mas isso também não era exatamente confortável. Enquanto tentava resolver essa dúvida, adotou um estilo que confundia quem estava a seu redor, algo que espelhava seus próprios sentimentos. Tinha os cabelos longos soltos ou presos em um rabo de cavalo baixo, usava camisetas soltas e estava sempre de calças compridas para esconder os pelos que resolveu não depilar.

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Os anos da escola foram passando com certo nível de drama (foi alvo de denúncia por não usar desodorante e teve crushes mal resolvidos por pessoas que estavam numa fronteira fluida entre o feminino e o masculino), algumas experiências torturantes (a primeira menstruação), e boas vitórias também (a descoberta dos livros queer e da canção “Changes” de David Bowie), até chegar à faculdade e à mais liberdade. Foi então que cortou o cabelo curtinho, optou por cuecas coloridas em vez de calcinhas e começou a sentir mais segurança, ainda que passasse por momentos de dor, como o seu traumático primeiro exame papanicolau.

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Encontrar os pronomes certos foi um dos passos mais importantes na trajetória de Maia Kobabe para o entendimento de seu gênero

Mas foi quando encontrou os pronomes Spivak, de linguagem neutra e ainda sem equivalente no Brasil, que as coisas começaram a fazer mais sentido. Kobabe passou a adotar e, em e eir para falar de si e acabou escrevendo uma graphic novel que conta toda essa história, com detalhes íntimos, dolorosos e emocionantes, agora publicado no Brasil sob o título de “Gênero Queer – Memórias” (Tinta da China, 2023), e traduzido por Clara Rellstab.

O livro recebeu prêmios como o Alex Award, da American Library Association, e foi finalista do Stonewall Book Award. Mas também foi alvo de muito protesto: foi considerado pornográfico por associações conservadoras e banido de escolas em estados americanos como o Texas, a Virgínia e as Carolinas do Norte e do Sul.

“‘Gênero Queer’ acabou no centro dessa discussão por ser uma graphic novel e porque fala sobre sexualidade (Kobabe se identifica como assexual) em um momento em que o tema se tornou tabu”, afirma ao New York Times Jonathan Friedman, diretor de liberdade de expressão e de educação no PEN America, uma organização sem fins lucrativos que trabalha para defender e celebrar a liberdade de expressão nos Estados Unidos com literatura e direitos humanos. “Há definitivamente um elemento anti LGBTQIA+ nessa reação.”

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Em entrevista a Gama, Kobabe diz que esperava uma reação, mas se espantou com o tamanho dela. Mas conta também que tem recebido muitas mensagens de jovens que passam por trajetória semelhante à sua. Elu — pronome adotado pelo tradutor do livro e nesta entrevista a pedido de Kobabe — diz que esses leitores contam que ler suas memórias os ajudam a entender melhor o processo por que passam e, para eles, elu tem um recado: “Você não está sozinho”.

Traduzir os pronomes não binários é o maior desafio toda vez que o livro é escolhido por uma editora estrangeira

  • G |No livro, você afirma que inicialmente não queria escrever nada biográfico, mas acaba publicando um livro de memórias. O que fez com que mudasse de ideia?

    Maia Kobabe |

    Acho que meu desejo de ser viste e conhecide ultrapassou o meu medo das consequências sobre ser aberte sobre a minha identidade. Eu decidi que valia a pena falar abertamente sobre meu gênero e sexualidade porque eu queria que as pessoas em minha vida me vissem como sou.

  • G |Qual foi a parte mais difícil de escrever? E desenhar?

    MK |

    As partes mais difíceis de escrever e desenhar foram as cenas do exame papanicolau. Foi bem desconfortável reviver essas memórias.

  • G |Você nos conta que é uma pessoa muito tímida, mas escreveu um livro muito aberto, que foi banido em muitos estados americanos. Você esperava essa reação? Como lidou com ela?

    MK |

    Eu me preparei para alguma reação, não sou tão ingênue, eu sempre estive consciente de que as narrativas queer costumam receber críticas nos Estados Unidos. Mas não esperava que a reação fosse tão grande como tem sido. Eu tenho levado um dia de cada vez, e com muito apoio. Meu agente tem sido incrível, tenho muitos amigos que me acompanham e muitos outros autores entraram em contato para dizer que me apoiam e que estão enfrentando alguns dos mesmos desafios. Ajuda muito saber que não estou só nessa.

  • G |Você usa os pronomes Spivak que não são familiares para muitas pessoas e que não existem em alguns idiomas. Essa foi uma grande preocupação desta entrevista – que não sabíamos como usá-los e também como traduzi-los para nossa peça. Que tipo de problema você já passou com isso?

    MK |

    Traduzir os pronomes não binários é o maior desafio toda vez que “Gênero Queer” é escolhido por uma editora estrangeira. Existem dois conjuntos diferentes de pronomes não binários no livro, they/them/theirs [eles/deles em português, mas no livro traduzido como elu/delu], e e/em/eir [sem tradução para o português; o livro os mantém com uma nota do tradutor], e nem todo idioma tem um conjunto de pronomes não binários, muito menos múltiplos. Quando estou nos Estados Unidos, meus pronomes levam a muitas conversas, muitas correções, mas muitas pessoas se esforçam para fazer o melhor possível e isso significa muito para mim. Para traduções, sempre digo ao editor: “Prefiro que a tradução seja útil, em vez de fiel”. Quero que o livro traduzido use o melhor exemplo de pronomes não-binários usados naquele idioma, não replique o que usamos em inglês. Para esta entrevista, você deve usar os pronomes não binários mais comuns em português para mim.

  • G |No livro, você questiona seu nome também, porque seria muito feminino. Como você se sente sobre isso hoje?

    MK |

    Fiz as pazes com meu nome. Gosto que seja incomum — pelo que sei, sou e únique Maia Kobabe postando arte na internet, então é fácil encontrar meu trabalho.

Há tantas pessoas lutando com questões de gênero, identidade, sexualidade

  • G |Em muitas partes do livro, enquanto você descobre sobre gênero, você também fala sobre sua sexualidade, sobre tentar descobrir do que você gosta. Acha que essas duas missões estão conectadas? As pessoas ainda têm muita dificuldade em entender a diferença entre eles…

    MK |

    Essas duas questões são diferentes, mas também profundamente ligadas. Meu gênero é separado da minha sexualidade, mas tive que pensar em ambos por muitos anos para descobrir como eles se relacionavam.

  • G |Como leitora, senti que você descobriu muito sobre seu gênero. Mas e quanto à sua sexualidade, sente que está mais consciente agora?

    MK |

    Aprendi muito sobre gênero e sexualidade, e o processo de escrever o livro foi uma grande ajuda para entender os dois. Mas a assexualidade, em particular, é uma identidade complicada e ainda estou lendo e pensando ativamente sobre isso, enquanto descubro novas coisas. Pode levar toda a minha vida para entendê-la completamente, mas estou em paz com isso.

  • G |Como sua família recebeu o livro?

    MK |

    Minha família me apoia enormemente. Na verdade, minha irmã se tornou não-binárie cerca de um mês antes da publicação do livro e agora usa os pronomes elu/delu [they/them em inglês], mesmo que tenhamos usado ela/dela para Phoebe no livro. Meus pais estão muito orgulhosos de mim, eles compartilham regularmente o livro com seus amigos e colegas professores. E também tive muitas conversas muito boas com minha tia, e chegamos a um melhor entendimento ao longo dos anos.

  • G |Você fala muito sobre livros e grupos musicais no livro. Como seu gosto está mudando nesses últimos anos? Quais outras referências que não estão no livro são importantes para você agora?

    MK |

    Desde que publiquei o livro, me interessei muito pela música pop coreana. A maior parte do que ouço agora é K-pop e, desde então, pude ir a muitos shows. Pensar na indústria do K-pop me levou a muitas conversas interessantes sobre fama, criatividade, moda, gênero, performance e a uma compreensão de uma cultura muito diferente daquela em que cresci.

  • G |No livro, aprendemos que estilo foi uma ferramenta fundamental para você se encontrar como queer. Como você tem se vestido agora, mudou de lá para cá?

    MK |

    A música K-pop também teve o maior impacto no meu senso de moda nos últimos anos. Isso me fez querer ousar e experimentar mais em meu estilo. Graças a ela, hoje uso cores, roupas, estampas e acessórios que talvez nunca tivesse experimentado antes.

  • G |A grande repercussão do livro fez com que jovens com experiências semelhantes às suas fizessem contato?

    MK |

    Eu ouço dos leitores do livro o tempo todo. Recebi tantas mensagens de pessoas que me dizem que se identificam com o livro; às vezes, que é o primeiro livro com o qual eles se sentem representados ou se identificam de fato. As pessoas me disseram que o livro os ajudou a entender sua própria identidade, ou que compartilhá-lo com um dos pais ou parceiro ajudou seus entes queridos a entendê-los melhor. O que quero dizer a esses leitores é: você não está sozinho. Há tantas pessoas lutando com questões semelhantes de gênero, identidade, sexualidade; todos fazemos parte de uma comunidade ampla, vibrante e criativa.

Produto

  • Gênero Queer – Memórias
  • Maia Kobabe
  • Tinta da China Brasil
  • 240 páginas

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