Entrevista com Carl Hart sobre drogas — Gama Revista
Foto: Acervo pessoal / Ilustração: Isabela Durão

“Tive pensamentos suicidas no Rio. Não estava mais acostumado a ser tratado como um ‘crioulo’”

O neurocientista Carl Hart, pesquisador de uma das principais universidades americanas, defende que as drogas fazem mais bem do que mal. Inclusive para ele

Denis Russo Burgierman 23 de Junho de 2021

Tem muita coisa incomum a respeito do neurocientista Carl Hart, da Universidade Columbia. A começar por sua aparência, que remete mais ao que se espera de um rapper ou jogador de basquete do que de cientista de uma universidade de elite dos Estados Unidos. Hart é negro, tem os cabelos emaranhados em longos dreadlocks e sorri com três dentes de ouro.

Ele também não fala a linguagem macia, polida, de seus colegas intelectuais da Ivy League (o clube das mais tradicionais universidades americanas, do qual Columbia faz parte). Embora seu vocabulário esteja cheio de termos sofisticados, seu jeito de dizê-los, entremeados de palavrões, ainda guarda as influências da infância pobre nas ruas periféricas de Miami, entre a onipresença das drogas e a brutalidade da polícia, ao som de black music.

Seu novo livro, “Drogas para Adultos” (Zahar, 408 págs, R$ 79,90), que está sendo lançado no Brasil esta semana, também é bem incomum. Isso fica claro logo na primeira página, quando o autor avisa que usa drogas. “Usar drogas faz parte da minha busca pela felicidade, e elas funcionam. Sou uma pessoa mais feliz e melhor por causa delas.” No livro, Hart inclusive se assume usuário regular de substâncias carregadas de estigma, como a heroína e as metanfetaminas. Ele entende de drogas, e não apenas porque cresceu cercado delas e gosta de tomá-las, mas também porque as pesquisou por décadas. Como cientista, Hart dedicou a maior parte da sua carreira a estudar os malefícios das drogas, trabalho que sempre gozou de farto financiamento, graças ao apoio do governo à guerra às drogas. Para ele, era pessoal também: ele queria ajudar a combater o mal que havia vitimado tanta gente no bairro dele, por overdose, tiro ou cadeia.

O papel dos governos é proteger as pessoas. Se eu decido tomar uma substância ou não, é problema meu, não da sociedade, não do governo

O que ele acabou descobrindo no caminho foi que drogas não fazem só mal: fazem algum bem também. Mais que isso, até: “Descobri que os efeitos predominantes produzidos pelas drogas discutidas neste livro são positivos”, diz, num outro exemplo de frase que não se lê com frequência em livros de neurocientistas. Segundo ele, usuários de drogas relatam que se tornam “mais altruístas, empáticos, eufóricos, concentrados, gratos e tranquilos” graças a determinadas drogas. “Eles também sentem uma melhoria nas interações sociais, um maior senso de propósito e significado e melhor intimidade e desempenho sexual.”

É por isso que, oito anos depois de seu primeiro livro, “Um Preço Alto Demais”, sobre o quanto dos imensos custos da guerra às drogas recaem sobre os mais vulneráveis, Hart agora quer conversar abertamente com os adultos sobre como usar drogas com segurança. Aos 54 anos, com uma carreira estabelecida na ciência, ele sente que é sua responsabilidade contar o que sabe. Sente também que o futuro de seus três filhos depende disso.

Para escrever o livro, Hart foi para a Espanha conhecer o trabalho de redutores de danos que tentam ajudar usuários de drogas a ficarem saudáveis e vivos em festivais de música — e se alistou para ajudar. Veio também ao Brasil, experimentar na pele a opressão que a guerra às drogas justifica. Semana passada, numa conversa por Zoom, falamos sobre o sofrimento com drogas de seu herói de infância, o medo de causar dano às crianças e as razões pelas quais não tem um Osmar Terra nos Estados Unidos.

  • G |Você é um neurocientista, herdeiro de uma longa tradição de cientistas que advertiram contra o perigo das drogas. Ao fazer o contrário, você está dizendo que todos antes de você estavam errados? Por que é que só você enxergou que tudo que vinha sendo dito sobre drogas era mentira?

    Carl Hart |

    [Risada.] Não é que só eu vi. Mas, se você for olhar para quem faz ciência nos Estados Unidos, provavelmente estará falando de pessoas brancas, de classe média ou alta, que vivem com conforto, cujas crianças estão seguras. Eles não têm muita razão para incomodar o status quo. Manter o status quo demanda que a gente não mude muito rapidamente as políticas de drogas ou a forma como pensamos sobre elas. Inclusive porque, se fizermos isso, o financiamento dos estudos sobre drogas pode diminuir. Eu não sou branco-classe-média-confortável. Meus filhos correm perigo se esse sistema continuar – não o perigo das drogas, mas o perigo de como a polícia lida com as drogas. Os incentivos são diferentes para mim.

  • G |Uma das utilidades das leis de drogas é que elas são convenientes para evitar que alguém que se pareça com você participe do debate público. Quando um negro fala abertamente de seu uso de drogas como a metanfetamina, isso traz riscos, não?

    CH |

    Claro. As pessoas atacam a reputação, que passei quase 30 anos construindo. Eles questionam meu direito de ter o meu trabalho. Mas, no final, uma coisa é inescapável: a verdade liberta. No caso, essa verdade tem o suporte da evidência científica. Realmente sinto que não tenho outra opção. Eu não poderia encarar os meus filhos se não contasse o que eu sei. É minha responsabilidade. A vida é difícil, estou longe de ser perfeito em várias dimensões dela, estou me esforçando para melhorar. Falar a verdade sobre um tema que eu conheço é a parte fácil.

  • G |Desde o lançamento do seu livro anterior, em 2014, você construiu uma relação com o Brasil. Você veio aqui várias vezes, certo?

    CH |

    Sim. A mais recente foi para escrever o capítulo sobre cocaína do livro. Eu sempre quis escrever no Rio. Eu queria sentir o horror de ser uma pessoa negra no Leblon, onde ninguém sabe quem eu sou. Queria sentir o medo de andar à noite na rua. Estive aí no final de 2019, e acho que foram os dias mais depressivos da minha vida, porque todo esse horror da violência contra os negros estava acontecendo e não parecia que ninguém se importava. As pessoas me olhavam e não parecia que eu estava lá. Eu realmente tive pensamentos suicidas no Rio. Acostumei-me a ter gente me tratando com respeito, e de repente ninguém mais me conhecia e eu era tratado como um crioulo [Hart usa a palavra “nigger”, que é em grande medida intraduzível: em inglês, é tão ofensiva que é quase proibido pronunciá-la, mas esse peso vem sendo ressignificado pelas novas gerações de negros, que a usam de maneira provocativa]. Fazia tempo já que eu não era tratado assim.

  • G |Você enxerga paralelos entre a experiência de ser negro no Brasil e nos Estados Unidos. Há diferenças importantes também, certo? Por exemplo, eventos como os que deram origem aos protestos generalizados do Black Lives Matter aqui no Brasil são normalizados a ponto de não gerarem reação alguma. Você acha que o Brasil está percorrendo a mesma trajetória que vocês percorreram com alguns anos de atraso ou é outra história?

    CH |

    Eu costumava achar que era uma história parecida com alguns anos de atraso. Hoje percebo que o Brasil tem uma história diferente, marcada pela ditadura, que gestou sua polícia, que está habituada a usar a força e a matar. Nos Estados Unidos, a Constituição diz explicitamente que a força militar não pode ser usada contra os próprios cidadãos. Claro que aqui também tem forças aprendendo a burlar essa proibição, mas é um alívio que não tenhamos militarizado nossa polícia. Outra diferença é que aqui temos uma história de rebelião do movimento negro, com Martin Luther King Jr., Malcolm-X, Fannie Lou Hamer, Ida B. Wells, os Panteras Negras, alguns inclusive dispostos a se armar para lutar. Apesar de todas essas lutas terem sido esmagadas, essas histórias dão coragem e inspiração para as próximas gerações. Mas elas são pouco conhecidas dos mais pobres, porque a qualidade da educação para eles é muito pior. É isso que acontece no Brasil. Nossa vantagem nos Estados Unidos é que temos níveis melhores de educação.

  • G |Você esteve no Brasil no início do governo Bolsonaro, antes da pandemia começar. Não sei se teve contato com uma figura importante do sistema político brasileiro, o deputado Osmar Terra. Terra tem sido o principal mentor da política de drogas do país. Com a pandemia, sua influência se estendeu e ele foi o principal inspirador da política brasileira para lidar com a Covid-19, baseada em buscar a “imunidade de rebanho”. Quero perguntar a você sobre esse personagem e, de maneira mais ampla, sobre como o Brasil lida tanto com drogas quanto com saúde pública.

    CH |

    O Brasil permite que esse personagem e suas ideias sejam levados a sério em público, algo que não acontece mais nos Estados Unidos. Um político aqui pode até dizer essas coisas e ser eleito, mas todo mundo saberia que é um idiota. É um problema que alguém possa dizer e fazer essas coisas e ainda assim ser respeitado. Políticos usam as drogas para botar nelas a culpa pela violência, e não sofrem as consequências diretamente, porque as consequências estão reservadas para os mais pobres e os menos educados.

  • G |Esse é um tema importante do livro: o debate sobre quem deve ser levado a sério. Você é um homem negro, usa dreadlocks e assumiu que gosta de metanfetamina e usa heroína regularmente. Quer dizer, você se encaixa bastante bem na definição de alguém que não deve ser levado a sério. Por que te toleram, ein?

    CH |

    [Dá uma gargalhada.] Ok, eu gosto do jeito como você coloca. Olha, as pessoas estão sempre tentando me desacreditar. Mas eu publiquei centenas de artigos em revistas científicas, escrevi livros, participo do debate há muito tempo. Estudei as drogas, tomei as drogas e conheço o assunto mais que a maioria das pessoas. Certamente conheço mais do que quem me critica. Claro que tem gente dizendo “por que toleramos esse cara? Vamos nos livrar dele.” Eles vão tentar, por isso é importante que eu faça a lição de casa.

  • G |Você escreveu este livro antes da pandemia. A covid-19 mudou essa conversa? Ela piorou o risco de dependência?

    CH |

    Não, o que a pandemia fez foi mostrar com mais clareza a importância do ambiente psicossocial. Mostrou que o abuso de substâncias está mais ligado a esse ambiente do que às drogas em si. As pessoas estão deprimidas porque a vida piorou – não porque as drogas pioraram. Tem gente sofrendo de maneiras muito mais sérias do que simplesmente de dependência: não sabem como alimentar os filhos, como pagar aluguel. Se você focar na dependência, vai deixar de lidar com o mais importante, que é o fato de que as pessoas precisam de estrutura, de apoio financeiro para cuidar da família. 

  • G |As pessoas estão sofrendo mais de dependência de celulares e redes sociais também…

    CH |

    Sim, mas há certas atividades que são aprovadas, e outras não. Penso muito sobre meu hábito de trabalho. Certamente meu ritmo de trabalho, que é excessivo, atrapalhou mais a vida da minha família e minha saúde do que meus hábitos de drogas, que me ajudam a funcionar melhor, inclusive afetivamente. Mas trabalhar muito é um hábito socialmente aprovado, e até incentivado. Da mesma forma, ninguém é criminalizado por ter uma relação pouco saudável com celulares.

  • G |A situação política do seu país mudou bastante desde que você publicou o livro [com a derrota eleitoral de Donald Trump para Joe Biden]. Você sente que o novo governo está mais disposto a ouvir pessoas como você e a criar políticas públicas mais apropriadas?

    CH |

    Não. Temos uma crise ligada ao uso de opióides nos Estados Unidos, com dezenas de milhares de pessoas morrendo de overdose, e os políticos continuam confortáveis em colocar a culpa nas drogas. As pessoas morrem porque não sabem o que as drogas contêm, não têm informação confiável sobre dose nem sobre potência. Morrem porque misturam opióides com outros sedativos e acabam tendo uma parada respiratória. Ou porque fazem misturas que causam um colapso no fígado. Temos hoje tecnologia para testar as substâncias e conhecimento para evitar essas mortes por ignorância e regular os usos e desincentivar os mais nocivos. Nada disso está sendo feito e não há perspectiva de que comece a ser. Tem dinheiro demais indo na direção oposta. A manutenção do problema preserva os orçamentos policiais altos, permite aos políticos posar de heróis, cria um mercado lucrativo para médicos. Não há incentivos para que a mudança aconteça.

  • G |Você fala no livro de sua relação com a música e a poesia política de Gil Scott-Heron (1949-2011), de quem você era fã enquanto estava crescendo pobre numa das periferias mais perigosas de Miami. E do quanto você se sentiu mal ao saber que os últimos anos dele foram de sofrimento envolvendo drogas. Você diz que lamenta porque sente que poderia tê-lo ajudado com seu conhecimento. Qual você acha que é essa responsabilidade que você tem?

    CH |

    Eu penso em mim mesmo como uma espécie de educador público. Nessa altura da minha vida, as pessoas me conhecem, leem o que eu escrevo, me perguntam sobre drogas. Eu tento ajudá-las a fazer de um jeito em que elas fiquem seguras, felizes e vivas. Significa que meu papel não é fazer julgamento sobre ninguém. Sei que elas estão usando drogas muitas vezes para se sentirem melhor, mais felizes, mais maravilhadas, abertas, magnânimas, mais dispostas a perdoar. Todos esses efeitos são pró-sociais: ou seja, benéficos à comunidade.

  • G |Você acha que um acesso mais igualitário às drogas é algo ao qual as sociedades deviam aspirar?

    CH |

    Vou dizer de outro jeito. Acho que as sociedades deveriam aspirar a nunca prender ninguém por aquilo que elas colocam em seus próprios corpos. Os governos têm que entender que seu papel é proteger as pessoas. Se eu decido tomar uma substância ou não, é problema meu, não da sociedade, não do governo. Eu menciono no livro a Declaração da Independência dos Estados Unidos, que estabelece que todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade e à busca pela felicidade, e que o papel do governo é garantir esses direitos. Não criminalizá-los.

  • G |Suspeito que a maioria das pessoas que vai ler esta entrevista use algum tipo de droga. Se não uma substância ilegal, talvez álcool, tabaco ou medicamentos como os benzodiazepínicos [a classe do Rivotril] e tantos outros. Gostaria de ouvir sua mensagem a eles. Você diz no livro que as pessoas precisam parar de se comportar como crianças. O que quer dizer?

    CH |

    Que eles pensem num fato simples: vocês estão fazendo algo pelo qual outras pessoas estão sendo vilanizadas, machucadas e presas. E aí, como é que você se olha no espelho? Você deveria se levantar por essas pessoas também, porque, no final, o que está acontecendo é errado.

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