Uma jornalista no front
A jornalista Patrícia Campos Mello cobriu guerras ao redor do mundo e denunciou esquemas de disparo massivo de notícias falsas durante as eleições brasileiras de 2018. Vencedora de grandes prêmios da imprensa, ela agora lança um livro sobre fake news e violência digital
A jornalista paulistana Patrícia Campos Mello é daquelas repórteres que corre o mundo (e, às vezes, riscos) em busca de histórias que precisam ser contadas: já esteve em mais de cinquenta países, muitos atingidos por conflitos violentos. Cobriu guerras na Síria, no Iraque, na Líbia e no Afeganistão, idealizou um grande projeto para registrar a crise das migrações e foi a única pessoa da imprensa brasileira a acompanhar a epidemia de ebola em Serra Leoa entre 2014 e 2015.
Porém, foi aqui mesmo, no Brasil, que ela precisou andar acompanhada por guarda-costas quando se transformou em alvo de uma violenta campanha de difamação nas redes sociais em 2018. Campos Mello despertou a fúria do gabinete do ódio e das milícias digitais depois de revelar, dias antes do segundo turno das eleições presidenciais, um esquema de disparos em massa de notícias falsas, a maioria em benefício do então candidato Jair Bolsonaro.
A famigerada série de reportagens deu origem não só a processos no Tribunal Superior Eleitoral — que podem provocar a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão —, como também a um livro que ela lança no fim deste mês pela Companhia das Letras. Já em pré-venda na versão digital, “A Máquina do Ódio” relata como as redes sociais têm sido utilizadas por líderes populistas e como essa manipulação afeta o trabalho dos jornalistas e a liberdade de imprensa.
Episódio importante na história recente do país, a investigação de Campos Mello consagra sua já sólida e reconhecida carreira. Formada pela USP e mestre pela Universidade de Nova York, aos 45 anos ela já passou pelas duas maiores redações de jornais diários do Brasil. Como correspondente em Washington pelo Estado de S. Paulo entre 2006 e 2010 e atualmente como repórter especial e colunista da Folha, a jornalista coleciona uma série de prêmios prestigiosos, entre eles o Vladmir Herzog de Direitos Humanos, o Prêmio Rei da Espanha, o Prêmio Internacional da Liberdade de Imprensa e o Moors Cabot, da Faculdade de Jornalismo de Columbia, um dos mais cobiçados da área — que ela venceu na semana passada.
A seguir, Patrícia Campos Mello fala a Gama sobre os desafios da profissão, a guerra contra a desinformação e a violência digital.
-
G |Quero começar com uma pergunta que todo mundo te faz, mas acho interessante o leitor saber mais sobre isso. Como é ser uma jornalista mulher em situações de guerra e conflito?
Patrícia Campos Mello |Algum dia vou responder se perguntam isso para jornalistas homens [risos]. Tem mesmo vários lugares no mundo em que ser mulher complica, no mínimo, sua locomoção — Arábia Saudita, Líbia, parte do Afeganistão. Mas acho que tem muito mais vantagem, porque a gente tem acesso à metade da população mundial, a que muitas vezes um homem não tem. Em países conservadores, jornalistas homens não conseguem entrevistar mulheres, entrar na casa delas. Também acho que jornalistas mulheres têm um senso de empatia mais aguçado, uma sensibilidade um pouco maior para abordar temas delicados: a vida além da guerra e apesar da guerra. Tudo isso nesses lugares onde supostamente é mais difícil para a mulher. O engraçado é que no Brasil hoje, que não é um lugar de conflito — pelo menos não aberto —, ser jornalista mulher é uma vulnerabilidade. A gente se tornou alvo de todo tipo de ataque de caráter misógino.
-
G |Como você tem visto esses desafios para a profissão, como mulher e de uma maneira geral, aqui no Brasil?
PCM |Acho que jornalista comete erros, e a gente tem que reconhecer e corrigir. Receber críticas é absolutamente necessário e saudável, é do jogo. Mas o que vem acontecendo não são críticas, mas ameaças e ataques. No caso da mulher, tudo bem alguém falar “sua matéria está uma porcaria”, mas não é o que acontece. Eles vão falar “você é gorda, prostituta, velha”, vão atacar sua família, fazer comentários com conotação sexual. Agora, no caso da mídia brasileira [em geral], para o governo populista de direita que a gente tem hoje funcionar, demonizar a mídia é necessário. Esses líderes dependem muito das redes sociais para emplacar sua narrativa, e descreditar a mídia é parte disso. Governos sempre tiveram treta com jornalistas, mas antes esse tipo de crítica e os ataques não eram tão personalizados. Hoje eles fazem uma coisa muito focada em expor a pessoa, a família. E com as redes sociais isso ganha uma magnitude avassaladora.
-
G |E como lidar com a questão da desinformação no dia a dia do jornalismo?
PCM |É desesperador, porque a velocidade com que a desinformação circula é muito superior à da informação de qualidade. Uma coisa é circular pelo WhatsApp clandestinamente; outra é dar no jornal, na TV, em uma agência de checagem, que têm um alcance menor — são 130 milhões de pessoas que usam WhatsApp no Brasil. O que a gente está tentando fazer é achar novos formatos para as informações checadas e corrigidas circularem mais, ficarem mais populares. Uma coisa muito desproporcional é que a desinformação, na maior parte das vezes, é ultrajante, causa revolta ou algum tipo de paixão e engaja muito mais o leitor, funciona melhor no algoritmo e ganha mais destaque. Uma notícia checada tem um tom mais neutro. Mas a única coisa que a gente pode fazer como jornalista para combater a desinformação é ter a boa informação, apurada. Agora precisamos descobrir maneiras de fazer isso circular mais, para ter alguma chance nesse jogo.
-
G |O que as redes sociais e a internet tem de bom a trazer para o jornalismo?
PCM |A gente usa incrivelmente [as redes sociais e a internet] ao nosso favor. Jornalistas, ativistas, acadêmicos, cientistas. O meu DM do Twitter é aberto, e o que eu recebo de sugestões de matérias excelentes para investigar, correções… Eu agradeço, corrijo, divulgo, tem todo esse engajamento. Nosso patrão é o leitor, e é muito saudável ter um relacionamento direto com o leitor nas redes, desde que seja um leitor mesmo, e não um robô ou alguém pago xingando a sua mãe. A democratização do acesso à informação que a internet trouxe é maravilhosa, essa possibilidade de os nossos leitores interagirem com a gente. Mas se estão usando um instrumento que manipula as redes sociais, isso tudo fica distorcido.
-
G |Sua matéria sobre os disparos em massa no Whatsapp durante as eleições de 2018 deu origem a um processo no Tribunal Superior Eleitoral para a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Você acredita que a imprensa pode provocar transformações reais no mundo?
PCM |Talvez eu seja ingênua, mas acho que algumas vezes esse negócio que a gente está fazendo serve para alguma coisa [risos]. Uma das coisas que eu fiquei feliz é que naquela época que eu fiz as matérias tinha muito ceticismo sobre disparo em massa. Depois o próprio WhatsApp admitiu que foi usado de forma massiva e irregular nas eleições brasileiras [de 2018], com a intenção de influenciar [os resultados], e o TSE passou a proibir qualquer tipo de disparo em massa. Nesse sentido, teve alguma consequência. Mas todas as investigações têm um componente político muito grande. Na época que eu fiz as matérias, eu me ofereci para passar materiais e ninguém quis me ouvir, não houve investigação. Só depois é que as investigações começaram. Então tudo isso depende muito do ambiente político, do contexto.
-
G |O que é preciso para ser um bom jornalista investigativo?
PCM |Primeiro, acho que não existe jornalista investigativo ou de guerra. As pessoas são jornalistas, ponto. Se você for lá e pesquisar, você vai conseguir fazer uma boa matéria investigativa. A principal coisa para ser um bom jornalista é ouvir. Hoje em dia a gente tem essa sociedade em que as pessoas falam, se expressam muito, e os jornalistas fazem muito isso também, em vez de ouvir e se interessar pelo que as outras pessoas têm a dizer, de ir fundo na realidade do outro. A principal qualidade é saber ouvir, ter empatia e entender de onde o outro está vindo, qual é o contexto dele, para desafiar nossos preconceitos. Se você simplesmente taxa o outro, isso não é jornalismo.
-
G |Num mundo tão polarizado, ainda faz sentido a gente falar em imparcialidade da imprensa?
PCM |Imparcialidade absoluta não existe. A gente sabe que toda vez que vai escrever uma matéria tem uma hierarquia das informações, as palavras que escolhemos, a edição. Tudo isso é um viés. Mas o jornalismo profissional se propõe e tenta ser imparcial ouvindo o contraditório, diversos lados. O jornalismo ativista ou partidário nem tem essa pretensão, já começa de saída sem essa tentativa. A gente tenta, mesmo que de forma imperfeita, ter um certo equilíbrio. Agora, existe isso e existe a falsa equivalência. Se um pessoal diz que Barack Obama nasceu nos EUA, outro diz que nasceu no Quênia — um é verdade e outro é mentira, não existem dois lados para tudo. Essa é uma discussão profunda: se em alguns temas a gente tem que assumir uma posição. Em temas universais, como direitos humanos, a gente tem que assumir uma posição, não dar o mesmo espaço para quem comete agressões e quem é agredido. Mas o ponto de partida é tentar ser imparcial, se propor isso na medida do possível.
-
G |Você já desanimou com a profissão?
PCM |Nunca desanimei, gosto muito do que eu faço. Já fiquei com um pouco de medo: será que vou ter que sair daqui, parar de fazer o que eu faço? Mas nunca desanimei, acho um privilégio poder conhecer a realidade de tantas pessoas e tantos lugares. É uma profissão maravilhosa.
-
G |Você acha que falhou em algum momento?
PCM |Várias vezes falhei, teve coisas que fui aprendendo, coisas de sensibilidade mesmo. Às vezes chegava em lugares com uma cabeça de mulher branca ocidental e tentava encaixar essa realidade na minha visão. Uma coisa que sempre tento melhorar é enxergar esse filtro de onde eu venho, mas certamente eu falhei ao ver tudo por essas lentes da minha vivência.
-
G |Se você tivesse que dar um conselho para quem quer ser jornalista, o que você diria?
PCM |Acho que a principal coisa que eu diria é que é uma das profissões mais interessantes do mundo. Poucas profissões te dão esse privilégio de conhecer universos tão diferentes do seu e pessoas tão fascinantes. Isso exige respeito pelo próximo e pelo assunto, esforço de fazer uma pesquisa responsável, pensar o efeito que as matérias podem ter nas pessoas. Acho que temos que encarar a profissão como um presente e, ao mesmo tempo, fazer um trabalho equilibrado e responsável.
- A Máquina do Ódio
- Patrícia Campos Mello
- Companhia das Letras
- 196 páginas
Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.