Camila Sosa Villada: "A literatura tem a ver com a beleza, assim como ser travesti" — Gama Revista
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Camila Sosa Villada: “A literatura tem a ver com a beleza, assim como ser travesti”

Autora de “O Parque das Irmãs Magníficas” fala sobre a infância e conta que a escrita foi fundamental para que conseguisse sair às ruas como travesti

Leonardo Neiva 29 de Janeiro de 2025
Foto de Guillermo Albrieu

“Meu pai me ensinou a escrever, e minha mãe, a ler. Eles me levaram para a borda de uma floresta e me deixaram ali sozinha, esperando que eu entrasse e me perdesse para sempre”, rememora a argentina Camila Sosa Villada em sua autobiografia “A Viagem Inútil” (Fósforo, 2024). Tanto uma reflexão sobre os fatores que a levaram a ser escritora — atividade que aprendeu primeiro com o pai, que depois a rechaçou — quanto uma colcha de retalhos em que reconstitui sua infância e juventude em Córdoba, o livro mescla a solidão do ato de escrever à da garota travesti, nos primórdios de uma vida em que as duas coisas se confundem e passam a ser indissociáveis.

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Gama publica nesta quarta (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans, uma entrevista feita com Villada durante sua vinda ao Brasil para participar d’A Feira do Livro. Na conversa, ela lembra de como escrever na primeira pessoa como mulher, ainda na infância, a ajudou mais tarde a se maquiar, vestir as roupas e sair às ruas como travesti. “É uma prática feita na solidão. Ou seja, escrever e me travestir, eu fazia sozinha, no meu quarto ou no banheiro, onde fosse.

“A Viagem Inútil” é um dos três livros da autora publicados no Brasil em 2024. Também completam a conta a coletânea de textos e poemas “A Namorada de Sandro” (Tusquets, 2024) e o romance “Tese Sobre uma Domesticação” (Companhia das Letras, 2024). Com isso, a obra da autora de “O Parque das Irmãs Magníficas” (Tusquets, 2021), seu popular romance de estreia, está finalmente publicada na íntegra por aqui.

Defensora do direito das mulheres travestis e trans escreverem ficção, sem a pressão constante e a busca por aspectos autobiográficos em suas obras, a escritora também é avessa a rótulos como “literatura travesti” e ao papel da escrita como força capaz de lidar e exorcizar a violência. “Nada se perdoa, nada que haja na natureza pode existir por si só, tem que ter um propósito. Isso parece assustador para mim”, afirma.

Com um forte histórico como atriz nos palcos, no cinema e na TV argentina antes mesmo de se reconhecer escritora, Villada voltou recentemente às telas na adaptação cinematográfica do livro “Tese Sobre uma Domesticação” (2024), que ela mesma roteirizou — e sem previsão de estreia no Brasil. Uma experiência que classifica como “muito difícil” e que chegou a fazer com que tomasse medicação psiquiátrica para superar o estresse.

“Não gosto da indústria de cinema, do audiovisual. Me parece muito machista, muito cruel”, revela Villada. Nem mesmo os beijos que deu em cena no ator Alfonso Herrera (ex-“Rebelde” e “Sense8”), com quem vive um par romântico, ajudaram a superar a exaustão de atuar no set. “Não sei como as atrizes de cinema conseguem suportar 12 horas do dia sentadas gravando alguma coisa, não sei. Para mim foi um exagero, não aguentava mais.”

No papo com Gama, Villada fala ainda da natureza do fantástico na sua escrita, do luxo de poder escrever em meio à pobreza e do vazio de autoras travestis e trans que ainda persiste na arte e literatura.

  • G |Sua obra traz elementos realistas mas também pontos fantásticos, talvez até mágicos, nas representações da existência travesti. Essa fantasia é de alguma forma uma extensão da sua escrita?

    Camila Sosa Villada |

    Na verdade, o cinema sempre foi uma inspiração para mim, e o cinema de ficção científica sempre foi o que mais gostei de ver. Cresci assistindo a filmes ou novelas fantásticas, como “Pantanal”, por exemplo. É estranho que chame a atenção eu escrever sobre outros tipos de seres e acontecimentos que nada têm a ver com a realidade, quando a América Latina é cheia disso. As classes populares se dedicam a ritos, práticas e costumes que têm a ver com magia e outros tipos de divindades, com religiões menos opacas e cinzentas do que a cristã. Eu cresci em um ambiente de milagres, de promessas, de fé. Então faz parte da minha natureza.

  • G |Você já declarou seu carinho pela ficção e reivindicou seu direito a ela. Esse direito ainda vem sendo negado a autoras travestis e trans?

    CSV |

    Creio que, além disso, é dialético. Nós respondemos um pouco também ao que nos pedem, é algo que acontece de ambas as partes. Eu poderia escrever sobre aquilo que me encanta, mas não publicar aquilo que quero. Não passa de uma disputa, nada mais do que isso. Uma disputa em que vamos sair vencedoras em relação a qual parte do mundo nos corresponde, do mundo literário, musical, cinematográfico, de trabalho, e em qualquer outra área onde se ofereça força produtiva. Eu digo, vamos sair ganhando em algum momento. Vai acontecer.

  • G |Em alguns momentos de “A Viagem Inútil”, você compara a figura de escritora à de travesti. Como diria que as duas coisas se alimentam?

    CSV |

    Primeiro, é uma prática feita na solidão. Ou seja, escrever e me travestir, eu fazia sozinha, no meu quarto ou no banheiro, onde fosse. Eu tinha a ideia de que algumas coisas estavam erradas, que escrever na primeira pessoa como mulher era algo muito sério que estava fazendo. Mais tarde, o fato de ter escrito isso e depois feito na vida real tornou essa passagem muito mais fácil para mim. Pareceu muito simples, só vestir uma roupa ou se maquiar e soltar um pouco o cabelo. Houve um momento em que isso foi um batismo e uma transição muito significativa para mim e para minha memória. Então [escrever sobre isso] tornou mais fácil sair às ruas. Além disso, também acho que a literatura tem a ver com a beleza, assim como ser travesti. A beleza boa ou a beleza ruim, até a beleza da tristeza, da tragédia, da perda, da morte. Mas procurar sempre extrair algo que seja bonito, que seja belo, suportável para o ser humano, uma coisa que as travestis fazem também. Poderia pensar também que a gramática é como um certo código de existência que a gente tinha — pelo menos na minha geração, não sei agora como vai ser —, um tipo de protocolo para sair à rua, para habitar. Esse era um estilo de gramática que a gente aprendia muito bem.

  • G |Você também aborda no livro a figura de seu pai, que te ensinou a escrever, mas se afastou de você, e que você diz que não aprovaria sua profissão de escritora. Como lida com essa dualidade?

    CSV |

    Agora ele aceita, agora ele está feliz porque a filha dele escreve. A gente era muito pobre, sabe? Portanto, não havia tempo para escrever. Era um luxo poder sentar e escrever num lugar onde você tinha que trabalhar constantemente para sobreviver à natureza ou às temperaturas extremas, à pobreza, falta de recursos etc. Então ele considerava isso um luxo, e de fato, por muito tempo para mim era um luxo sentar e escrever, escrever em segredo quando eles iam tirar uma soneca ou dormir à noite. De qualquer forma, uma escritora é alguém irreconhecível, até para os pais há um certo distanciamento. Para mim, escrever era uma forma de me afastar, não de me aproximar nem de facilitar as coisas para eles. Foi como dizer: eu tenho essa coisa que é para mim, é exclusivamente minha, e que pode acontecer sem que ninguém, ninguém, ninguém jamais me leia. Até esse ponto é íntimo. O teatro, por exemplo, se não tiver público, não acontece, mas a escrita sim. Então ele pode ter pensado que eu deveria estar trabalhando, em vez de escrevendo. E acho que ele estava certo.

  • G |“Tese Sobre uma Domesticação” lida com temas como o papel da família, numa unidade familiar fora do tradicional mas que se submete de muitas formas às convenções. O que te moveu a escrever o livro?

    CSV |

    Com toda a honestidade, foi para dar emprego a um amigo. Eu queria escrever o roteiro de um filme para empregar alguém que amava muito na época, e me veio à mente a imagem daquela família atravessando a montanha para visitar os pais. Primeiro me ocorreu que a mãe era uma hippie, e que o pai era um pouco mais cauteloso com ela. Depois apareceu a magnitude de sua carreira, ou seja, até que ponto ela era conhecida e decidia exatamente cada passo que dava no palco. O jornal Página/12 me convidou a escrever um romance e eu falei: só tenho isso escrito. Eram apontamentos, anotações sobre essa ideia para um filme. Aqui precisamos de um livro, ele me disse, se você quiser sentar e escrever, publicamos no final do ano. Então sentei e em seis meses escrevi. Foi uma coleção bem pequena que saiu só uma vez e nunca mais. Então em 2022 Paola Lucantis [então editora da Tusquets] me sugeriu publicá-lo novamente, sugeriu que fizesse algumas mudanças, e eu disse sim. Comecei a reescrever ao mesmo tempo em que fazia o roteiro do filme, e depois durante as filmagens, em que eu estava atuando. Mas tudo começou como uma desculpa para empregar um amigo.

  • G |A protagonista do livro é chamada apenas de “atriz”. O que há da atriz Camila Sosa naquilo que escreve?

    CSV |

    Não sei se linha por linha, mas muito, muitíssimo. Somos muito parecidas. Mas também sou parecida com tia Encarna [personagem de “O Jardim das Irmãs Magníficas”] e com muitos personagens dos contos. Vou espalhando meu mal por todas essas pessoas.

  • G |E como foi retornar à atuação na adaptação do filme para o cinema, protagonizando algo que você escreveu?

    CSV |

    Ah… [dá um suspiro longo, seguido de uma risada] Bom, me cansei, não gosto da indústria de cinema, do audiovisual. Me parece muito machista, muito cruel, então foi muito difícil para mim estar no set. Muito, muito mesmo. Quando falo que foi difícil, é porque acabei tomando medicação psiquiátrica para superar o estresse de trabalhar em um filme. Não sei como as atrizes de cinema conseguem suportar 12 horas do dia sentadas gravando alguma coisa, não sei. Para mim foi um exagero, não aguentava mais. Mas sim, perdão, também houve coisas boas, senão fica parecendo que foi um enorme calvário. Eu pude beijar o Alfonso Herrera. Quer dizer, tive momentos em que me diverti muito também.

  • G |Você já rejeitou a ideia da literatura como um lugar de resolver ou exorcizar a violência. Por que temos essa ideia utilitária da escrita?

    CSV |

    Vivemos num sistema capitalista, em que achamos utilidade até para o rompimento amoroso, até para o câncer. Somos capazes de dizer que um câncer pode ser porque você não fez, ou porque consumiu, disse, pensou, ou comeu tal coisa que não deveria ter comido. Nada se perdoa, nada que haja na natureza pode existir por si só, tem que ter um propósito. Isso parece assustador para mim. Quando eu dei aulas de atuação alguns anos atrás — porque não dou aulas há muito tempo, digamos uns seis anos —, muitos alunos chegavam dizendo que se inscreveram porque o psicólogo recomendou. E eu falava: como pode ser útil o teatro, que é a coisa mais inútil que existe? Querer dar um objetivo para a alegria que a atuação ou que a escrita traz… A literatura também, o que ela faz é forçar você a parar. Outro dia me disseram que na Finlândia os livros são mais ouvidos que lidos. Então uma pessoa que está ouvindo um audiolivro pode continuar trabalhando, pode dirigir um carro, um bonde, um táxi, um Uber, faz o que quiser porque não precisa parar para ler. Ler é parar, e isso não é pouca coisa. Não vejo como a leitura possa servir a qualquer propósito, a não ser permanecer com você por um tempo.

  • G |A leitura de “O Parque das Irmãs Magníficas” me impactou muito pelo humor, o carinho entre as personagens, a violência que fazia parte da vida delas… Você encara a literatura também como uma possibilidade de conhecimento e identificação? É ingênuo pensar que lermos e assistirmos a mais personagens travestis e trans pode criar uma sociedade menos transfóbica?

    CSV |

    Não sabemos, porque há muito poucas escrevendo. Não podemos saber. No Hay Festival, de Cartagena, estive com Brigitte… me vem Brigitte Bardot, mas não é ela [na verdade, se refere a Brigitte Baptiste], uma escritora trans e bióloga colombiana; e na Festa do Livro de Paraty [da qual participou em 2022] pude estar com Amara Moira. Mas no geral, fico sozinha nos festivais, sou a única mulher trans. E no público também dá para contar nos dedos, uma, duas, três trans, não mais que isso. Muitíssimos “maricones”, sim, mas nenhuma menina trans. Então a gente não tem como saber se vai ter mais força, além do quão rica pode ser uma literatura como a das travestis, uma concepção de tempo como a das travestis, uma gramática como a das travestis, as palavras que inventam as travestis. Bom, isso não sabemos.

  • G |Você considera “literatura travesti” um rótulo? Que acha desse termo?

    CSV |

    Acho que sim. É como dizer comida para pessoas com doença celíaca, para vegetarianos, onívoros, carnívoros. Sim, isso está estupidificando um pouco os leitores. Mas o mercado encontra essa forma de organizar a literatura, ou seja, ficção, ficção científica, nacional, poesia, literatura trans, literatura feminista, ensaio, psicologia, filosofia, blá, blá, blá… Não sei a quem corresponde uma categoria como essa. Creio que tira um pouco a surpresa da escrita. Mas também não posso ir contra isso.

  • G |Assim como o audiovisual, a indústria editorial ainda é machista, ou isso tem mudado?

    CSV |

    No grande mercado, por assim dizer, entrei há relativamente pouco tempo, não sei como era antes. Foi em 2005 que ganhei um nome conhecido no mundo literário na Argentina e depois no exterior. Não, não acho que tenha mudado, pelo menos durante todo esse tempo. Tenho a sensação de que não mudou, assim como nada mais mudou. E nem tem por que isso ter acontecido já que, como eu disse, somos muito poucas. Se formos mais, talvez isso possa mudar. Mas sendo tão poucas…

  • G |E finalmente sua obra completa está publicada por aqui…

    CSV |

    Estou muito feliz que todo o meu trabalho esteja traduzido para o português, porque tenho uma relação linda com o Brasil. É puramente musical, puramente estética, puramente artística. Minha professora de canto me ensina músicas em português. Não sei, é uma relação bonita do jeito que é.

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