Fogo no parquinho
Escolas particulares e pais de alunos estão com dificuldade de chegar a um consenso quanto ao retorno das aulas presenciais. Há mediação para esse conflito?
Em uma reunião virtual de pais de uma escola, uma mãe berra ao microfone que todos os pais que querem o retorno das aulas presenciais são negacionistas. “Ela começou a dizer que eu estava negando as mortes, que eu não me importava com a pandemia. Isso em plena reunião de pais”, disse uma das mães presentes na discussão. Outra, de uma escola diferente, disse que as brigas de WhastApp que tinham como tema o retorno das aulas se multiplicaram, e beiraram a baixaria. “Eu já vi várias brigas em grupos. Um pai fala que chamou o outro no privado e demanda resposta no coletivo, sabe assim? Brigaram no privado, no grupo, colaram mensagens privadas no grupo. Passou muito do ponto.”
Casos como esse foram recorrentes nos últimos tempos em diversas escolas privadas da capital. Autorizadas a reabrir desde o dia 12 de abril, as instituições têm tentado equilibrar a qualidade de ensino no sistema híbrido, enquanto fica a critério dos pais e dos alunos a decisão pelo retorno presencial. Nessa discussão, ninguém chegou a um consenso. Com pouca orientação e muita desinformação, em reuniões virtuais e grupos de pais no WhatsApp, o bate-boca ficou acalorado até demais, e se intensificou com o polêmico projeto de lei que segue para o Senado, que pretende colocar a escola como serviço essencial, o que significa que, em situações de calamidade pública (como uma pandemia), fica proibida a suspensão das aulas presenciais.
As opiniões das famílias e das instituições de ensino são diversas, mas a finalidade é a mesma: todos querem o melhor para seus filhos e alunos. Então, por que tanto desacordo? Gama conversou com uma mediadora de conflito, uma mãe, uma jornalista da educação e uma psicanalista para guiar o caminho para o diálogo saudável.
Informação é poder
“Há muita desinformação, o que torna necessário que a escola, constante e sistematicamente, informe as famílias, trazendo possibilidades, planos de estudo, explicando sobre a gestão que está sendo feita”, explica a mediadora de conflitos Adriana Menelli, também doutora e mestre em educação. Ela diz que, em um momento em que não há orientação nem organização superior, para que estudantes e pais não fiquem perdidos e se sintam desamparados, o ideal é mantê-los munidos de informação, e trazê-los para perto das decisões da escola.
Vanessa Cirello, mãe de dois filhos que estudam em escolas privadas, sentiu justamente essa falta de comunicação e acolhimento por parte da escola. “Tem horas que eu acho essa comunicação com a escola acontece de forma positiva, em outras, negativa. Às vezes me sinto acolhida, confortável. Em outras, nem tanto.” Ao se mostrar a favor do retorno presencial ou, em momentos em que a escola esteve fechada, pelo aumento da duração das aulas virtuais, ela enfrentou certa dificuldade. “Eu vi uma disponibilidade da escola para conversar, mas pouquíssimos pais toparam que os filhos retornassem, e acharam ruim que ficassem mais tempo em frente às telas.”
Há muita desinformação, o que torna necessário que a escola, constante e sistematicamente, informe as famílias, explique sobre a gestão que está sendo feita
Menelli relembra que não há uma receita pronta para a resolução do conflito, mas que, ao manter os pais informados, a escola se preserva. “A família precisa se sentir segura. Muitas vezes, essa forma agressiva de se manifestar acontece porque as famílias não se sentem acolhidas e informadas.” Para isso, sugere canais de comunicação personalizados, reuniões em pequenos grupos de pais, e o envolvimento das famílias na busca pela solução.
“Não vamos conseguir uma regra comum para todas as escolas e alunos, porque há uma diversidade grande de opiniões”, diz ela, ao que Renata Cafardo, jornalista especializada em educação, adiciona: “Muita gente me pergunta se é perigoso, se tem que voltar. Eu ouço essa pergunta há um ano. E acho que cada família é uma família”.
Em grupo de WhatsApp não se discute relação
Adriana Menelli diz que, em sua opinião, “não deveríamos entrar em discussões de aprofundamento por grupos de WhatsApp”. De acordo com ela, esses grupos servem muito mais para informar do que para discutir. As questões de cada família podem ser melhor resolvidas quando conversadas de maneira individual, considerando a realidade de cada caso. “Por isso eu digo que grupos de WhatsApp de escola são como grupos de condomínio, porque as discussões se elevam e não chegam a lugar nenhum.”
Renata Cafardo também brinca: “Costumo dizer que não queria estar na pele de gestores públicos e donos de escola”, e diz que todos os lados do conflito são legítimos, e por isso a dificuldade de chegar a um consenso — que só piora quando a discussão vai para as mensagens.
Não deveríamos entrar em discussões de aprofundamento por grupos de WhatsApp. As pessoas precisam entender que esse não é um espaço de briga, de terapia, de conflito
O virtual pode causar ruídos na comunicação: o emissor escreve de um jeito e o leitor interpreta de outro. “As pessoas precisam entender que esse não é um espaço de briga, de terapia, de conflito. O grupo do WhatsApp desempenha melhor sua função quando é estritamente informativo e administrado pela escola”, diz Menelli. “Ou os pais criam os próprios grupos, brigam entre eles, e já chegam na reunião inflamados.”
Alguns pais até evitaram o grupo, muitas vezes por querer ficar longe das brigas recorrentes ou causar maiores indisposições. Quando Vanessa Cirello sugeriu mais tempo de aulas virtuais no grupo de pais do WhatsApp, quem foi contra se manifestou. E quem concordava, preferiu chamá-la no privado para conversar.
A política no seu devido lugar
“Está rolando essa ideia de que quem é de esquerda é contra abrir, e quem é de direita é a favor de abrir. E não é isso. Todo mundo tem direito à educação.” A fala é da Renata Cafardo, que além de jornalista da educação, também é mãe, e tem vivido na pele (e 24 horas por dia) o conflito entre pais e escola. Adriana Menelli diz que questões ideológicas são particulares, e pouco ajudam no convencimento de outros pais sobre o retorno presencial. “Quando as pessoas trazem questões ideológicas para o debate, elas apenas potencializam o conflito, e não resolvem.”
É o caso trazido no início do texto, quando choveram críticas de caráter político em uma reunião de pais. Também é uma situação que Vanessa Cirello viu de perto. Durante a pandemia, seu filho teve questões de aprendizagem, e com acompanhamento de um especialista, ficou clara a urgência do retorno ao presencial, que nada tem a ver com política. “Dizem que é negacionista quem manda o filho à escola, que os pais não estão preocupado com o próximo. Mas é claro que eu estou preocupada. A questão não é essa.”
Está rolando essa ideia de que quem é de esquerda é contra abrir, e quem é de direita é a favor de abrir. E não é isso. Todo mundo tem direito à educação
Por outro lado, a psicanalista Ilana Katz afirma que a solução para o conflito transita no âmbito político. “Não no sentido partidário do termo, mas no sentido político mesmo, de como vamos decidir a ocupação da cidade nesse momento de crise.” De acordo com ela, pais e escolas devem agir diante da ausência do governo, que não deu direcionamento político à população no combate à pandemia. “É uma experiência de desamparo.”
Ainda assim, fala-se de responsabilidade, já que, com ou sem apoio federal, ficou sob decisão dos pais e escolas o futuro da educação. “Esses argumentos que surgem no WhastApp ou ganham caráter partidário estão no âmbito da responsabilização, mas acabam totalmente enviesados”, diz Katz. “É verdade que se trata de responsabilidade, no sentido de saber responder à crise, mas a gente precisa também pensar em como cuidar de todas as pessoas e de cada um, que é onde mora a dificuldade.”
Parceria e não rivalidade
“Desamparados, escolas, gestores, professores, pais e alunos não têm para onde dirigir sua demanda de estratégia coletiva para o enfrentamento da crise. E aí passam a discutir entre eles”, diz Ilana Katz. Ela pondera que toda essa discussão acontece por uma razão extremamente legítima: a de encontrar uma saída para a crise, qualquer saída. E afirma que “a boa resposta é uma construção coletiva”.
A psicanalista explica que o Estado tem um papel fundamental e intransferível no combate à pandemia e no cuidado com a educação. Mas diz também que, mesmo se tivéssemos uma política emergencial para educação na crise sanitária, escolas, pais e alunos ainda teriam que lidar com as responsabilidades institucionais, familiares e individuais para conseguirem construir um caminho possível. “Quando ficamos sem um norte para a coletividade, começamos a achar que o vizinho tem que ser capaz de solucionar o problema” — quando, idealmente, a solução é conjunta. “Se você não se emparceirar com quem dá a condição da escola existir, não vai ter solução, e você vai brigar com quem deveria colocar do seu lado”, explica.
Ela reitera que a resposta para o conflito será, além de coletiva, territorializada. Ou seja, irá depender da realidade de cada família, de cada escola, de cada aluno, e das condições que se apresentam em cada caso. Katz diz que costuma comparar a situação com um mar de lama, que todos temos que igualmente enfrentar — mas em barcos diferentes, uns com acesso à internet, comida, boa infraestrutura, e outros, nada disso.
O limite faz parte do conflito
Se o conflito entre escola e família fosse uma conta de divisão, sobrariam muitos restos. Não seria a famosa conta redonda e perfeita, em que todos os lados estariam plenamente satisfeitos — os limites existem, e não vão embora tão cedo. “Não devemos trabalhar apesar dos limites, mas com eles”, explica a psicanalista. “O problema é como lidar com demandas que são legítimas mas que, na sua radicalidade, uma produz limite para a outra.”
Não vai ter solução perfeita agora, a conta não vai fechar. A escola e os pais precisam se ouvir e conversar para que juntos eles enfrentem o problema
Ilana Katz diz que, no lugar de excluir esses limites (o que nem seria uma realidade real e possível), podemos respeitar cada demanda e articular as necessidades diversas de forma a tornar o convívio possível. “Não vai ter solução perfeita agora, a conta não vai fechar. A escola, os pais e os professores precisam se ouvir e conversar para que juntos eles enfrentem o problema, lidando com os restos.” A mediadora Adriana Menelli adiciona: “Isso tudo é aprendizagem, não tem um caminho certo e único. Mais do que tudo, temos que buscar caminhos que vão minimizar o conflito”.
Muito diferente da realidade das instituições privadas, alunos da rede pública ficaram meses sem atividades presenciais ou remotas em 2020. De acordo com um levantamento do Unicef, em novembro do ano passado, quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentavam a escola (remota ou presencialmente) no Brasil. Dos que tiveram algum tipo de atividade escolar virtual, muitos não tinham acesso à internet. Abertas desde o dia 12 de abril, quando o estado de São Paulo saiu da fase emergencial, a gestão estadual autorizou o retorno das atividades com 35% da capacidade, mas a reabertura em cada caso depende da liberação das prefeituras. Em grande parte da rede pública, deve-se priorizar a ida ao presencial de alunos com necessidades de aprendizagem ou filhos de pais que trabalham em serviços essenciais. Mas mesmo os que foram autorizados a voltar, parecem não estar muito confortáveis com a situação. Na rede municipal de São Paulo, as nove escolas com ensino médio, por exemplo, abriram, mas a adesão de alunos ficou em 10%, abaixo dos 20% esperados.
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