Existe equidade racial na pós-graduação? — Gama Revista

Existe equidade racial na pós-graduação?

Crescimento de ações afirmativas em programas de mestrado e doutorado ajudam o país a fazer ciência com mais qualidade

Tereza Novaes 20 de Dezembro de 2022

Quando iniciou sua conferência em Harvard, no último dia 9, a doutoranda em antropologia social Marina Fonseca, de 28 anos, havia acabado de receber uma notícia que deixou ela e seus colegas aliviados: o dinheiro das bolsas de estudos da Capes finalmente seria depositado, após uma ameaça de calote em função de bloqueios orçamentários na pasta da educação. Salário de 200 mil alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado, o valor está congelado há quase dez anos.

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Marina integrava uma comitiva de cerca de 40 brasileiros que participaram do encontro da Alari (Afro-Latin American Research Institute), centro de pesquisa dedicado aos estudos sobre questões afro-latinas da prestigiada universidade de Boston, nos EUA.

Marina Fonseca, doutoranda em antropologia social na UFRJ  Divulgação

“Praticamente todos os brasileiros que estavam lá eram negros. A gente até brincou que pobre não tem direito a cinco minutos de alegria, porque estávamos lá, em Harvard, uma grande felicidade, mas vivendo aquele momento tenso”, conta Marina.

Ela conseguiu apoio financeiro do Museu Nacional da UFRJ, onde faz sua pesquisa, para viajar aos EUA e, graças a uma brecha, tem um trabalho remunerado como assessora política na ONG Criola. Apesar de sua situação financeira ser menos dramática, Marina sentiu a dor dos colegas. “Tinha gente que realmente não tinha dinheiro para comer, nos agilizamos para comprar pizza e dividir com todo mundo. Algumas pessoas choraram na mesa, no momento de apresentar os trabalhos, dizendo: ‘Desculpa, estou pensando em como pagar o aluguel'”, relembra. E desabafa: “O pós-doutorando negro trabalha sem ter nenhum direito e sem saber se vai conseguir pagar o aluguel.”

A pós-graduação é vista como despesa, não como investimento, mas as pesquisas acadêmicas voltam para o país de diferentes formas

O episódio ilustra bem a dificuldade que é ser negro e estar na pós-graduação no Brasil. “Política de permanência, como são as bolsas, é fundamental. É uma importante política de Estado. A pós-graduação é vista como despesa, não como investimento, mas as pesquisas acadêmicas voltam para o país de diferentes formas: novas tecnologias, vacinas, pesquisa sobre políticas públicas, legislação, etc. Há muitos benefícios que vão trazer retorno para toda sociedade”, salienta a doutora em ciência política Anna Carolina Venturini, criadora do Observatório de Ações Afirmativas na Pós-graduação (Opaap).

Anna Carolina Venturini, doutora em ciência política e criadora do Observatório de Ações Afirmativas na Pós-graduação (Opaap)  Foto Wanezza Soares/Divulgação

O Observatório monitora editais de programas de pós-graduação e resoluções de universidades públicas com ações afirmativas em suas seleções. No site, há um banco de dados com todos os editais e resoluções sobre o tema, além de artigos e outros materiais.

“As ações afirmativas na graduação têm sido uma política de muito sucesso, mas não são suficientes para que haja, no processo da pós, equidade. Em especial nas áreas de exatas e biomédicas é preciso política de inclusão, porque elas ainda são muito fechadas para a inclusão racial“, afirma Márcia Lima, professora da FFLCH-USP e coordenadora do Cebrap Afro.

A professora relata sobre sua experiência dentro da universidade: “Tenho uma disciplina optativa sobre a questão racial e muitos alunos vêm da física, da engenharia. São pessoas que vão atrás do curso, que é de ação afirmativa, para procurar entender o processo porque nas suas áreas de origem não existe essa discussão sobre desigualdade, sobre racismo. É importante a existência dessa política em outras áreas justamente para fortalecer o ingresso de pessoas negras.”

Elitismo na seleção

Em relação ao preconceito que paira sob o aluno cotista, Lima, docente há 20 anos, lembra que os estudos na pós-graduação são difíceis. “Muito antes de ações afirmativas, sempre tive alunos com dificuldades. É um certo tabu essa história da dificuldade [do cotista]. Precisamos de reservas de vagas? Sim. Porque os processos seletivos são muito elitizados. Se fossem menos, a gente não precisaria tanto das ações afirmativas. Ação afirmativa e reserva de vaga são formas de garantir diversidade nesses espaços.”

Entre os aspectos elitistas da seleção da pós-graduação, Anna Venturini aponta a exigência da proficiência. “Muitos lugares exigem a comprovação no processo seletivo, às vezes, já na etapa de inscrição, em outras, é necessário uma prova ou mandar o certificado ao longo do processo seletivo”, explica.

“Isso acaba impactando muito o acesso de pessoas negras, indígenas e candidatos com diferentes condições socioeconômicas”, afirma. Dentro das políticas de ação afirmativa, alguns programas começaram, nos últimos anos, a rever esses critérios, dando prazos maiores para as pessoas comprovarem a proficiência, por exemplo, até a qualificação ou até seis meses depois do ingresso.

Segundo dados coletados até dezembro de 2021 pelo Opaap, o Observatório de Ações Afirmativas na Pós-graduação, 1.531 programas acadêmicos adotam algum tipo de ação afirmativa nos processos de admissão de estudantes de mestrado e doutorado – 54,3% do total e, pela primeira vez, a maioria deles. Em quase quatro anos, 794 programas aderiram a alguma política do gênero.

“Eu consigo ver uma mudança, mas ainda não é toda a mudança que a gente quer”, afirma a doutoranda Marina Fonseca. “Entrei na universidade em 2012 e, na graduação de ciências sociais da UnB [Universidade de Brasília], dos 90 calouros, só os cotistas eram negros. Agora, já tem um monte de estudante negro e, na pós, isso está se repetindo. Na minha turma de mestrado, havia mais não-brancos do que brancos. Temos agora um professor indígena na UnB, o que era inimaginável um tempo atrás”, destaca.

A UnB foi pioneira nas reserva de vagas para negros e indígenas, que começou a valer em 2004 e ajudou a formatar a lei nacional sobre o tema. Em quase 20 anos de ação afirmativa, alunos pretos ou pardos de graduação passaram de 4,3% para 48%.

A força da nova geração

Essas novas gerações, mais diversas, trazem consigo reivindicações, como revisão das ementas dos cursos. “Só tinha autor branco. A gente meio que colocou o pé na porta para forçar até uma atualização dos próprios professores, para que eles conheçam também os autores negros.” Segundo ela, essa busca pelo reconhecimento dos intelectuais não-brancos dentro da academia fica evidente no crescente número de publicações de autoras como Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez.

Colocamos o pé na porta para forçar até uma atualização dos próprios professores, para que eles conheçam os autores negros

Ao subir no púlpito de Harvard, Fonseca apresentou uma fala sobre os coletivos negros na pós-graduação, movimentos dos quais participa e que foram fundamentais na sua jornada acadêmica. “Este foi um ponto importante para mim, que quase garantiu a minha sobrevivência na pós-graduação.”

Os coletivos funcionam como rede de apoio, oferecem curso preparatório para ingresso no mestrado, escuta e aconselhamento. Fonseca conta que, quando se mudou de Brasília, onde seus pais vivem, para o Rio, onde faz o doutorado no Museu Nacional, ligado à UFRJ, os colegas do coletivo carioca se ofereceram para visitar o apartamento que ela pretendia alugar e até para hospedá-la.

Em 2000, apenas 2,2% das pessoas pretas ou pardas haviam completado o ensino superior no Brasil, em 2017, esse número subiu para 9,3%, de acordo com o Censo do Ensino Superior. Já na pós-graduação, hoje, 2,7% são pretos, 12,7% são pardos, 2% são amarelos, menos de 0,5% é indígena e 82,7% são brancos, segundo levantamento da Liga de Ciência Preta Brasileira, realizado em 2020.

O ambiente científico diverso é mais inovador, abre para novas possibilidades, epistemologias, metodologias. Isso é bom para a ciência

Para além da justiça social, lembra a pesquisadora Anna Venturini, há um argumento infalível, sobretudo para aqueles que se preocupam com a excelência das instituições. “Pesquisas, principalmente no exterior, têm mostrado que o ambiente científico diverso é mais inovador, traz mais elevação, abre para novas possibilidades, epistemologias, metodologias. Isso é bom para a ciência. Você gera uma ciência melhor e isso é bom para a sociedade como um todo.”

O reconhecimento disso pode ser corroborado pelo anúncio, na semana passada, da cientista social Claudine Gay como nova reitora de Harvard. Será a primeira mulher negra a comandar a mais famosa instituição de ensino superior do mundo, onde pesquisadores brasileiros, a maioria negros, viveram momentos conflitantes de angústia e prestígio.

Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.

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