Uma boa dose de uísque nacional
Conheça a história da Union Distillery, que aos 70 começou a vender a bebida turfada à moda escocesa no Rio Grande do Sul
“Eu não acreditei que era brasileiro, era tão turfado”, foi o que um amigo me disse ao relatar a experiência de ter provado um uísque gaúcho, o Pure Malt Whisky Extra Turfado da Union Distillery. A história é no mínimo curiosa. É uma novidade nas prateleiras, mas no mercado a destilaria tem mais de 70 anos de estrada. Nascida em 1948 como uma vinícola, em sistema semelhante ao de uma cooperativa — eram 63 cotistas — em Veranópolis (RS), na época do milagre econômico dos anos 1970 viu mais futuro nos destilado e mudou de foco, chegando a produzir diversas marcas próprias. Depois de uma série de reviravoltas na economia no país, passou a ser fornecedora de insumos para engarrafadores de diferentes partes do país.
Há cerca de dez anos, no entanto, a revolução que começava no mercado de bebidas — o movimento artesanal e a tendência de “beber menos e melhor” — abriu uma espécie de portal para um outro tipo de negócio: o de uísques premium. Foi quando a destilaria se instalou no Vale dos Vinhedos, que, embora seja célebre pelos vinhos, parecia excelente para o uísque pelo clima e pela água local, “fria e abundante”.
Do projeto a ter o produto engarrafado foram dez anos e, a partir de 2019, a Union Distillery começou a lançar seus rótulos com preços que vão de R$ 80 a R$ 450.
Agora você deve estar se perguntando: vale comprar um uísque brasileiro neste valor?
O que é um uísque bom?
O consultor e professor Cesar Adames, um dos maiores especialistas em destilados do Brasil, explica que o segredo de um bom uísque é a matéria-prima (o grão do qual ele é produzido, que tem que ser de excelente qualidade) e a água, puríssima. “Outros fatores que influenciam são a barrica onde é envelhecido — os americanos só usam barril novo, de onde vêm 90% do sabor, e depois vendem para os escoceses, brasileiros, caribenhos –, e a turfa”, conclui.
A turfa é um combustível vegetal semelhante a um carvão extraído de solos úmidos com muito material orgânico
No caso gaúcho, é justamente a turfa que tem chamado atenção: mais do que a barrica, é ela quem tem dado o toque defumado à bebida. Trata-se de um combustível vegetal semelhante a um carvão extraído de solos úmidos com muito material orgânico. Ela é usada para secar a cevada numa espécie de defumação. Os aromas e sabores da turfa são transferidos para o uísque, então, no processo de destilação.
Com 11 anos de projeto, a Union Distillery tem um uísque de blend, que é a combinação de vários envelhecimentos, e três single malt: um com cinco anos de envelhecimento; outro com cinco anos e turfa; e o terceiro que envelhece por uma década. Já o extraturfado tem o dobro de turfa, o que lhe confere aromas de “lodo e alcatrão equilibradas com notas medicinais” — outras notas de degustação da mesma bebida são mais aprazíveis, como amêndoa, mel, baunilha e até flores.
Escolha a ocasião: happy hour ou meditação
Pelo perfil, os uísques gaúchos não competem no mercado com os importados de blend a que estamos acostumados a ver nas prateleiras de mercado. Adames explica que são quatro as famílias de uísque: os blended (misturas de vários grãos, de destilarias e destilações diferentes), os single malt (feitos geralmente de cevada maltada de uma única destilação), os bourbons (de milho, mais doces) e o Tennessee whisky (com filtragem por carvão, feito apenas no estado do sul dos EUA). Além dos escoceses, japoneses e canadenses ficaram famosos pelos dois primeiros estilos, enquanto os norte-americanos produzem os dois últimos primordialmente. “O blended é o uísque do happy hour, do casamento, servido com gelo, meio frapê. O single malt é outra brincadeira, é como um uísque de reflexão, como é o fortificado para os vinhos”, explica Adames.
O blended é o uísque do happy hour, do casamento, servido com gelo, meio frapê. O single malt é um uísque de reflexão
Sócio da Union Distillery, Luciano Borsatto, diz que não concorrer com os clientes que compram insumos da destilaria para produzir bebidas foi condição primordial do projeto e por isso mesmo decidiu focar em uma linha mais… “meditativa”. “Quando você fala em malte, poucas pessoas conhecem uísque brasileiro feito de um único cereal. É um mercado muito pequeno, mas vemos que tem potencial para crescer”, afirma.
Defumação mineira com eucalipto
Esse potencial é explicado principalmente pelo valor do dólar. A mais de R$ 5, o câmbio virou o maior pesadelo de importadores. A realidade financeira aliada à revolução artesanal tem feito pipocar microdestilarias em lugares antes inimagináveis. Outra que se destaca no país é a Lamas, com sede em Matozinhos (MG), e que tem quatro uísques. Um deles é o Single Malt Nimbus, que em vez de turfa usa grãos de malte defumados com madeira de eucalipto de reflorestamento e foi classificado pelo especialista britânico Jim Murray, autor da “Bíblia do Uísque”, como “uma bebida genial”.
Na garrafa também se vende o castelo, as paisagens escocesas. E tem o tempo de maturação. Só que não tem produção, nem paciência
Se o uísque vai ter uma revolução semelhante à do gim é difícil dizer. É menos versátil para a coquetelaria e parece um tanto longe de seus áureos tempos na preferência do consumidor. Adames aponta ainda outros problemas: “Uísque é coisa séria. Na garrafa também se vende o castelo, as paisagens escocesas. E tem o tempo de maturação de barril. Nos EUA, o mínimo para receber nome de uísque são dois anos. Na Escócia, três, como é no Brasil. Só que o brasileiro está começando agora, não tem produção, nem paciência”.
Como bebida de nicho e acompanhando a onda dos pequenos produtores, no entanto, pode ser que um micromercado se firme. Um sinal é mais um lançamento da Union no início da pandemia, um uísque de autor, de tiragem limitadíssima (833 garrafas), o Autograph, envelhecido em barris de carvalho virgem e com preço médio de R$ 275.