O resgate dos grãos nativos
Pequenos produtores e chefs de cozinha se unem para salvar milhos, feijões e arrozes do esquecimento
Feijões brancos que parecem pintados à mão. Espigas de milho de grãos negros, vermelhos ou coloridos. Arroz basmati de tom avermelhado, que solta um perfume irresistível ao ser cozido. Essas são algumas das variedades de grãos nativos, também chamados crioulos, que começam a ser resgatadas do esquecimento por agricultores obstinados – em parceria com chefs de cozinha, eles lutam para preservar a diversidade no prato do brasileiro. Muito antes que o arroz branco, o feijão preto e o milho amarelo imperassem no mercado, as lavouras do país eram coloridas e variadíssimas. O que aconteceu depois é resultado de uma conjunção de fatores.
Há quem ponha toda a culpa no agronegócio, que elegeu as variedades mais produtivas (e lucrativas), sufocando a concorrência dos pequenos produtores. “O modelo industrial não apenas escanteou os agricultores como massificou o modo produtivo (…). A produção agrícola foi então progressivamente orientada para um número cada vez mais restrito de espécies e variedades cultivadas, criando dependência de insumos agrícolas industriais (sementes, agrotóxicos e fertilizantes) e respondendo ao insaciável mercado global”, afirma o documento de posicionamento sobre sementes, organismos geneticamente modificados e novas biotecnologias, publicado pelo movimento Slow Food em outubro de 2020.
Mas o engenheiro agrônomo Omar Villela, pesquisador aposentado da Secretaria Estadual de Agricultura de São Paulo, testemunhou outro lado dessa história. Entusiasta do cultivo de arrozes especiais no Vale do Paraíba, onde vive, ele viu que as raras tentativas do governo de lançar novas variedades de arroz, nos anos 1970, esbarraram na falta de mercado consumidor. “A rejeição foi grande, pois as donas de casa não gostavam do excesso de aroma e preferiam um arroz mais neutro”, lembra.
Valorização gastronômica
O fato é que, agora, os ventos parecem estar mudando. Mais aberto a experimentações, o brasileiro recebe com entusiasmo as novidades levadas à mesa pelos chefs de cozinha. Proprietária do restaurante de comida brasileira Arimbá, em São Paulo, Angelita Gonzaga criou a marca O Milhóó para vender seus famosos pastéis de angu. Alguns sabores do cardápio, exclusivo para delivery, são produzidos com duas variedades de fubá orgânico crioulo, um de milho vermelho e outro de milho preto, fornecidos pela Fazenda Vista Alegre, localizada em Capim Branco, Minas Gerais. “São mais complicados de trabalhar, porque têm mais amido e vão formando uma cola que dificulta o manuseio da massa. Mas os pastéis ficam mais crocantes e com mais sabor de milho”, ela compara.
Sei que é um produto orgânico de agricultura familiar, cultivado com respeito ao solo e ao tempo de plantio
Especializada em comida da Chapada Diamantina, Ieda Matos, do restaurante Casa de Ieda, é outra que não abre mão do fubá de milho crioulo. Ele entra em cremes, bolos, biscoitos e até no mungunzá, nome nordestino para o doce cremoso que o paulista chama de canjica. Para ela, além da textura granulada, a garantia de origem é uma das grandes vantagens do milho crioulo. “Cresci em Utinga, na Chapada Diamantina, vendo meu pai trocar sementes crioulas na feira. Sei que é um produto orgânico de agricultura familiar, que foi cultivado com respeito ao solo e ao tempo de plantio, e que não é geneticamente modificado”, afirma.
Fazenda Vista Alegre
Responsável pelo Projeto Crioulo da Vista Alegre, o engenheiro agrônomo Lucas de Sousa cultiva milho preto, cujas espigas melindrosas são menores do que a palma da mão, e vermelho, mais resistente e produtivo. A comercialização, ele diz, ainda depende basicamente da divulgação feita pelos chefs. “Eles ajudam a imprimir um carimbo de qualidade ao produto”, justifica.
Bel Coelho, atualmente à frente do restaurante Cuia, em São Paulo, é cliente da fazenda faz tempo. No restaurante Clandestino, o fubá de milho crioulo era matéria-prima para tortilhas, que ela fazia conforme a receita mexicana, mas servia com tutu e costelinha. Agora, o fubá vai na receita do bolo do Cuia. “O sabor é mais pronunciado e a textura, bem diferente. O fubá não fica tão fino, dá para sentir melhor o granulado. Nosso bolo ficou sensacional”, ela diz.
Garimpo de formiguinha
Encontrar tais produtos dá um certo trabalho, já que ainda não chegaram às grandes redes de varejo – mas vale a pena o garimpo. À venda apenas no empório Oka Caburé e nas lojas da zona cerealista de São Paulo, os arrozes que a Alto do Marins cultiva no Vale do Paraíba são uma surpresa na panela. Há três variedades em escala comercial: arroz preto, miniarbório e basmati vermelho. Mas Omar Villela, um dos agrônomos à frente do projeto, mantém um laboratório a céu aberto diante de casa. No pequeno campo alagado, ele desenvolve variedades novas e reproduz outras tantas, até que rendam uma quantidade suficiente para fazer testes culinários e de mercado – um trabalho de formiguinha, que leva anos.
Tarefa parecida virou o projeto de vida do estudante de agronomia Eduardo Damas, de Sanclerlândia, em Goiás. Aos 18 anos, o garoto segue os passos da avó, que já gostava de cultivar sementes crioulas, e virou um verdadeiro arqueólogo do campo. “Estou sempre pesquisando e, quando descubro uma semente diferente, vou atrás”, conta. A reprodução das sementes acontece no quintal de casa, uma propriedade de cinco alqueires onde ele planta um pouquinho de tudo. Mas, como a população da cidade não demonstrava lá muito interesse pelo resultado, Damas passou a vender as sementes pelo Facebook. O cardápio lista nada menos do que 120 tipos de feijões, amendoins, arrozes, favas, milhos, frutas e legumes – os pedidos são despachados pelo correio. “Todo estado brasileiro já tem sementes minhas”, orgulha-se.
Eduardo Damas
Renovação e resistência
As feiras de sementes crioulas são o principal canal de intercâmbio entre os produtores. Elas aconteciam ao longo do ano em dezenas de cidades brasileiras, foram interrompidas durante a pandemia, mas não desapareceram. Neste ano, por exemplo, a Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica (ABD), responsável pela organização das feiras do sul de Minas Gerais e do estado de São Paulo, realizou a primeira edição em formato 100% virtual. Depois de assistir a palestras de pesquisadores e participar de oficinas temáticas, os produtores fizeram contatos para seguir com as trocas de variedades.
Variedades crioulas carregam a tradição de um lugar. Quando nos conectamos a elas, nos inserimos na cultura local
Segundo Pedro Jovchelevich, coordenador executivo da ABD, o grande desafio dos guardiões de sementes é despertar o interesse das novas gerações – segundo ele, são raros os jovens, como Eduardo Damas, dispostos a manter viva a tradição. “Sem uma relação íntima com o mundo da gastronomia, que ajude na concorrência com as variedades comerciais, esse trabalho de resistência pode se perder”, teme.
O chef Rafael Cardoso, mais conhecido como Rafa Bocaina, é um exemplo vivo dessa conjunção de interesses. Formado pelo Senac, com passagem por restaurantes de vanguarda, como o Mugaritz, na Espanha, ele hoje vive em Silveiras, na banda paulista do Vale do Paraíba. No sítio que pertenceu ao bisavô, onde cria porcos e produz embutidos com a marca Curiango, planta milho vermelho só para consumo próprio. Em breve, porém, pretende incorporar o primeiro fubá de milho crioulo à sua linha de produtos – os grãos de espigas negras estão sendo cultivados pela Alto do Marins e serão processados em um moinho de pedra do século 19. “Variedades crioulas carregam a tradição de um lugar. Quando nos conectamos a elas, nos inserimos na cultura local”, afirma o chef. “É uma questão filosófica importante: quem seremos daqui a cem anos se abrirmos mão da nossa identidade?”
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