Amargo: perigo iminente ou ousadia em explorar o novo? — Gama Revista
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Amargo: perigo iminente ou ousadia em explorar o novo?

O psicólogo experimental Charles Spence fala sobre a evolução do sabor, da relação entre personalidade e preferência de paladar e de como o gosto se transforma ao longo dos anos nas sociedades

Ana Mosquera 26 de Novembro de 2021

Rejeitado desde o berço – de bebês humanos a chimpanzés –, o amargo sempre esteve associado a alimentos venenosos e que deveriam ser evitados. Ainda que o perigo iminente tenha feito com que o sabor fosse rechaçado por muito tempo, a popularização de produtos detentores deste gosto peculiar vem se destacando, como comprova a difusão das IPAs (cervejas do tipo India Pale Ale) ao redor do mundo. “Isso talvez sugira que exista uma necessidade pelo amargo ainda não atendida”, afirma Charles Spence, psicólogo experimental britânico, com especialização em Design Multisensorial inspirado na Neurociência e chefe do Crossmodal Research Laboratory (CRL) da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Autor e editor de mais de mil artigos acadêmicos e de 15 livros sobre o tema, o pesquisador pontua que, ainda que não parta de uma predisposição biológica, a apreciação pelo gosto amargo pode ser adquirida gradualmente e, muitas vezes, quando esses alimentos são combinados a outros. “Nós aprendemos a gostar dos sabores amargos especialmente quando associados a alimentos que contêm cafeína (café), álcool (cerveja), gordura, açúcar etc.”, diz.

Em seu best-seller internacional “Gastrophysics: The new science of eating”, lançado em 2017 pela Penguin Viking e vencedor do prêmio da Académie Internationale de la Gastronomie em 2019, o Professor Spence, também embasado em outros estudiosos do assunto, admite que a investida no sabor pode partir do impulso rumo ao inexplorado. “Quando nos sentimos confiantes em relação à situação global, buscamos experiências de sabor novas e mais desafiadoras”, comenta Spence.

Autor do premiado “The Perfect Meal” (2014, com Betina Piqueras-Fiszman) e de Sensehacking, publicado em janeiro, Spence ainda fala sobre como o lugar, a cultura, a sociedade e até as gerações são determinantes no entendimento de como o ser humano lida com o amargo durante a vida. “Aqui no Reino Unido, houve uma notícia recente de que membros da geração Z decretaram uma sentença de morte para a Couve de Bruxelas, provavelmente por conta do sabor amargo”, pontua. Leia mais na entrevista a seguir.

Quando nos sentimos confiantes , buscamos experiências de sabor novas e mais desafiadoras

  • G |O que a psicologia diz sobre a forma como relacionamos as experiências do dia a dia às informações captadas pelo paladar?

    Charles Spence |

    Nossa percepção dos sabores e nossas características pessoais estão mais intimamente conectadas do que se pode imaginar à primeira vista. Doçura e romance, por exemplo. A pesquisa tem revelado diversas conexões intrigantes entre personalidade e paladar, e vice-versa. Portanto, quando dizemos “eles são amargos” ou “ela tem uma personalidade doce”, verifica-se que há muito mais informações sendo transmitidas do que se poderia esperar.

  • G |Mas o gosto pelo amargo é fisiológico, cultural ou as duas coisas?

    CS |

    Nós todos nascemos desgostando dos sabores amargos. Seres humanos, chimpanzés e ratos recém-nascidos, todos colocam a língua para fora para tentar expulsar o gosto amargo, ao percebê-lo no órgão gustativo. Isto sugere uma resposta adaptativa, dado que muitos alimentos venenosos têm sabor amargo.

  • G |Como disse Massimo Montanari, em “Comida como Cultura”, a ciência dietética aborda o desejo como revelador de uma necessidade fisiológica. Por que as pessoas passaram tanto tempo desejando alguns sabores e sentindo repulsa por outros?

    CS |

    O doce representa ganho de calorias. O amargo e o azedo, pelo menos de acordo com a literatura, sinalizam alimentos a serem evitados. O amargo porque provavelmente sinaliza veneno, sem nenhum benefício imediato; o azedo, supostamente denota algo que já está “passado” (ou seja, em estado de apodrecimento) – novamente algo a ser evitado. A busca pelo salgado é interessante, porque nós não nascemos com preferência por ele. Parece ser dependente da necessidade de cada um. Assistindo a um programa sobre natureza, recentemente, fiquei surpreso sobre como certos papagaios da Amazônia aprenderam a voar até penhascos, assim que descobriram que é onde eles conseguem o sal que eles precisam, mas que não está presente na sua dieta.

Nossa percepção dos sabores e nossas características pessoais estão mais intimamente conectadas do que se pode imaginar à primeira vista

  • G |Como nós, seres humanos, lidamos com o sabor amargo, na prática?

    Charles Spence |

    Muitas pessoas aprendem a gostar de comidas amargas, como café, cerveja, chocolate amargo. Entretanto, a aquisição do gosto frequentemente ocorre mascarando o sabor amargo. É por isso que as pessoas costumam começar a beber café com leite e açúcar. Apenas mais tarde é possível que elas mudem para o café sem açúcar e depois para a bebida pura. Nós aprendemos a gostar dos sabores amargos especialmente quando associados a alimentos que contêm cafeína (café), álcool (cerveja), gordura, açúcar etc.

  • G |No Brasil, o gosto por hortaliças e legumes amargos é bastante presente no Nordeste. Você acha que existe uma aversão aos sabores associados ao “outro”?

    CS |

    Depende do lugar do mundo em que estamos. O Gastroturismo é bem difundido atualmente, e a comida do “outro” pode ser considerada exótica. Mas, sim. Existe um senso comum de que as pessoas não gostam do cheiro da comida do “outro”, especialmente no ambiente doméstico. No Reino Unido, não faz muito tempo que Elizabeth Beaton, uma das maiores escritoras de livros de culinária do século 19, descreveu o cheiro “horrível” de alho (associado à cozinha mediterrânea), mas que agora é bastante onipresente na cozinha britânica.

  • G |Diz-se, por outro lado, que o objeto de desejo não é o mais abundante, mas o mais raro. Como essa máxima se relaciona com a procura por certos sabores, em detrimento de outros?

    CS |

    Acredito que a escassez e a predisposição biológica disputam: o desejo biológico pelo doce e a apreciação mais intelectual pelo raro ou exótico.

Nossos avós acrescentavam uma colher de chá de sal para mascarar o sabor amargo. Hoje em dia, não há necessidade

 Sam Frost/Divulgação

  • G |Você acha que a padronização dos gostos pela indústria alimentícia contribuiu para que as pessoas perdessem o interesse em explorar novos sabores, como o amargo?

    CS |

    Ou, o contrário: a indústria alimentícia atende o desejo dos consumidores por sabores doces. Frequentemente me lembro de como nossos avós acrescentavam uma colher de chá de sal para mascarar o sabor amargo. Hoje em dia, não há necessidade, à medida que toranjas de cor rosa já foram selecionadas para serem doces. A mesma coisa aconteceu com os brócolis. E isto é irônico, porque descobrimos que o sabor amargo tende a ser associado à presença de componentes saudáveis em tais alimentos.

  • G |Ainda que haja uma definição sobre os cinco sabores, sabemos que sua percepção depende da história da pessoa, da época da vida etc. Quais são as variáveis que podem alterar a percepção dos sabores e a relação dos indivíduos com eles ao longo dos anos?

    CS |

    Provavelmente existem muito mais do que cinco sabores – alguns dizem que até 20! Curiosamente, no laboratório aqui no Reino Unido, quando testamos os sabores básicos, não costumamos usar o umami, o tão falado quinto sabor proteináceo, porque simplesmente não faz sentido para os consumidores que estudamos. Eles podem até já ter ouvido falar sobre o termo, mas não quer dizer que ele esteja presente em sua experiência gustativa.

  • G |Na pandemia, cresceu a procura por alimentos que lembrassem a infância e o conforto familiar. Como transformações sociais e momentos históricos influenciam nas escolhas alimentares, e por que as pessoas buscam por sabores mais “seguros” em situações de perigo iminente? O que elas pretendem alimentar, além do corpo?

    CS |

    Sim, existe um indício intrigante de que procuramos por comfort foods e sabores nostálgicos nos momentos em que o mundo parece incerto, assim como nosso lugar nele. Em contraste, quando nos sentimos confiantes em relação à situação global e nossa posição frente a ela, é quando costumamos buscar experiências de sabor novas e mais desafiadoras.

  • G |Você acha que o fato de as pessoas terem deixado de ir para a cozinha ao longo dos anos fez com que elas se afastassem de certos alimentos?

    Charles Spence |

    A comida processada ou pré-preparada tende a apelar para o perfil de sabor de massa, portanto, quanto mais alto o nível de açúcar e gordura, melhor. Eu desconheço alguém que faça marketing ou comercialize alimentos de sabor amargo. Talvez simplesmente não exista mercado para isso? Se considerarmos o quão prejudiciais as refeições pré-preparadas, processadas e servidas em restaurantes podem ser, podemos imaginar que, se tentássemos reproduzí-las em casa, ficaríamos horrorizados com as quantidades de sal, açúcar e gordura acrescentadas para melhorar a experiência de sabor. Assim, podemos nos contentar com um sabor mais amargo, simplesmente porque não queremos fazer o que seria necessário para mascará-lo. Aqui no Reino Unido, houve uma notícia recente de que membros da geração Z decretaram a “sentença de morte” para a Couve de Bruxelas; provavelmente por conta do sabor amargo. No entanto, não devemos esquecer que na América do Norte, no Reino Unido e acredito que em outros lugares, as IPAs (Cervejas do tipo India Pale Ale) de sabor amargo se tornaram populares recentemente. Isso talvez sugira que exista uma necessidade pelo amargo ainda não atendida. Curiosamente, algumas das últimas pesquisas mostraram que o status do provador interage com o traço de personalidade alimentar aventureiro para determinar o quanto nossa predisposição genética para rejeitar alimentos de sabor amargo afeta nossas escolhas alimentares. Sendo assim, os comedores aventureiros, mesmo que sejam supertasters [pessoas com sentido do paladar aguçado], podem acabar sendo atraídos por cervejas de sabor amargo.

logo cerveja becks

Este conteúdo é parte de uma série sobre o sabor amargo, produzida com o apoio da cerveja Becks.

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