Vozes Periféricas
Em livro, jovens moradores das periferias de São Paulo usam textos e desenhos para registrar suas angústias cotidianas em colaborações que começaram na pandemia
De Heliópolis ao Ceagesp, de Jaguaré a Carapicuíba, as periferias se recusam a ter suas vozes caladas ou ignoradas. Nem a pandemia de covid-19 conseguiu impedir que um grupo de jovens moradores de favelas de São Paulo expressasse suas opiniões, sentimentos e pontos de vista num momento de extrema vulnerabilidade tanto pessoal quanto social. Inicialmente como uma válvula de escape para esse caldeirão que borbulhava internamente, a turma criou o perfil de Instagram @vozes_perifericas, onde os integrantes passaram a fazer colaborações e trocas poéticas e visuais tanto entre eles quanto com convidados anônimos.
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Tratando de temas que vão do racismo e perseguição policial ao afeto e à resistência, em pouco tempo, a página se transformou numa plataforma de conexão, registro e difusão de poemas, relatos e desenhos que usa a arte para falar sobre o cotidiano, as angústias e a vida vivida nessas comunidades. Agora, a iniciativa também dá origem ao livro “Vozes Periféricas” (Letra da Cidade, 2022), que reúne vários desses relatos em textos acompanhados de desenhos com os quais se expressam os membros desse coletivo de artistas da periferia.
Todo esse projeto teve origem numa parceria entre os institutos Çarê, Acaia e a Unas (União de Núcleos e Associações dos Moradores) de Heliópolis, após um programa de formação para educadores em Heliópolis voltado para leitura, literatura e escrita. Quando a pandemia interrompeu os encontros presenciais, as trocas passaram para o Instagram, onde se abriram as portas para conexões com outras comunidades. “Foi muito rico conhecer histórias de outros jovens que, apesar dos preconceitos que passamos por sermos negros, LGBTQIA+ e viver em comunidades, continuam vivos e buscando espaços de fala fora do nosso núcleo”, conta a jovem Jovana Basílio, integrante do coletivo.
Iversson escreve Ramon
intervenção divina?
com o meu dom
faço intervenções poéticas
e às vezes olho pro céu
penso
“Será que vem de lá essa métrica?”
porque disseram
a vida é um freestyle de Deus
então por que será que ele não acompanhou o beat
quando foi completar a rima pros meus
o sentimento que permaneceu foi
vazio
correndo no parque percebi
que olhares machuca
fui em mente de fazer cooper
e voltei com a mente de quem levou um cuspe
sei lá
minha vida não vale
seu computador ou seu celular
daqui a pouco não podemos nem nos abraçar
só aí, tá?
porque por aqui
quem conduz é nois
os mesmo que olha torto
são aqueles que no sarau quer escutar nossa voz
pois vossa vivência não condiz com a minha
e isso te causa revolta
quer ser bom?
então diariamente se pergunte o que tu fez pelas crianças da tua volta
é um começo
falar que Cosme e Damião é coisa ruim não ajuda
pois as daqui da área se amarra
e o doce das crianças é mais saudável
do que esses que tu compra na balada
e paro pra pensar
quantas vezes ceis mermo na favela já me confundiu com traficante
fissurado passa vergonha na frente das criança das gestante
e em nenhum instante passou na tua cabeça
que o real bandido é aquele que a sociedade venera a beça
vê reportagens sensacionalistas de tv e abraça
pronto
todo favelado pra tu agora algo passa
da próxima vez nós vai te tomar
e fazer questão de levantar essa taça
que nos deram sem avisar
controla sua brisa carai
pisa fofo
se o paisana
me ver falando contigo
cê acha que ele vai quebrar o seu osso?
vai nada po
então seguinte
chá prefiro cidreira
pó preciso terminar de limpar as prateleiras
da biblioteca
e pedra só aquele poema do Drummond
sei onde é a lojinha não tiu
vaza
os mesmo que olha torto/
são aqueles que no sarau quer escutar nossa voz/
pois vossa vivência não condiz com a minha/
e isso te causa revolta
Ramon desenha Karoline
Na batida do coração eu expresso o meu sentimento
E a cada pensamento se vai mais um batimento
E morre o negro baleado mais um de nós assassinado.
E eles continuam pedindo intervenção e esquecem que também temos educação pra causar revolução.
Na batida do coração eu exalto a minha história, e sim, eu grito
Pra que eu não tenha mais um preto perdido no meio dessa trajetória.
Eles gritam pretos malditos, e não se lembram pois nenhum deles morreu por ser confundido.
O meu povo grita e chora pra poder contar a nossa história.
E nesse filme vocês sempre foram os ouvintes e nós os atores principais, sendo que já estávamos aqui quando vocês chegaram para nos assassinar e tirar o que é nosso por direito: nossas vidas e nossas histórias…
Não, nós não somos descendentes de escravos, somos descendentes de pretos que foram torturados pra você branco poder ser exaltado.
Eles romantizam tudo o que tem a ver com pretos que precisaram ser humilhados pra poder ter o acesso ao que nos foi tirado.
Essa é nossa sociedade, onde o que mais importa no boletim é o patrimônio. Do quem sou eu ou quem era eu depois de ser morto por tiros estando armado de um caderno, no caminho de casa e eles ainda vão dizer morto por resistência, resistência por estar armado de educação.
É tanto tiro confundido que me faz pensar, até quando mais um batimento preto perdido?!
Eles romantizam tudo o que tem a ver com pretos que precisaram ser humilhados pra poder ter o acesso ao que nos foi tirado
Ramon desenha Iversson
raro mermo é tu ser humilde
quando o poder tá em porte teu
então perdoa aquele polícia
que no enquadro te bateu
difícil né
olha no olho por trás da balaclava
agora olha no meu olho
e diz que se tu pudesse
tu também uma bala cravava
“é que quem mata é Deus”
suas frases extremistas
da outro patamar pra guerra santa
eles matam mas também morrem
lágrimas já foram tantas
e quem vai ceder
eu não sei
já que é olho por olho
dente por dente
e eu não falo de alho
apanha até sair o molho
e sai dali puto pra caralho
ai ceis se surpreende ca vingança
perdão não rima com ganância
briga de ser mais homem
faz mulheres chorarem em casa
e me surpreende ver numa mãe
que acabou de perder seu filho
perdoar
quem o matou
aquele que apertou o gatilho
eu não intendo
Deus é todo mundo sorrindo ao mesmo tempo
é culpa do gênero?
dos ideais dos generais?
Deus está mais em mães
ou em pais?
paz rima com perdão
que eles se encontrem por aí
e me surpreende ver numa mãe/
que acabou de perder seu filho/
perdoar/
quem o matou/
aquele que apertou o gatilho/
- Vozes Periféricas
- Vários autores
- Letra da Cidade
- 104 páginas
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