Volta ao Mundo
Fiel escudeira de Anthony Bourdain, Laurie Woolever reuniu anotações do chef e apresentador que nos convidam novamente a acompanhá-lo na descoberta de tesouros gastronômicos pelo mundo — incluindo o Brasil
Com fãs ardorosos no mundo todo, o chef, escritor e apresentador de televisão Anthony Bourdain (1956-2018) fez fama justamente visitando gastronomias e culturas de vários cantos do globo. Em programas como “Sem Reservas” (2005-2012) e “Lugares Desconhecidos” (2013-2018), Bourdain se apresentou como um verdadeiro desbravador, introduzindo de forma popular e cativante aspectos peculiares de cada local e garantindo ao espectador uma viagem sem precisar de passaporte nem passagem.
Apesar de sua morte prematura ao cometer suicídio em 2018, o apresentador continua estimulando no público a vontade de viajar e, principalmente, conhecer sabores diversos, desta vez com o livro “Volta ao Mundo” (Intrinseca, 2021), recém-lançado no Brasil. O projeto, paralisado pela partida de Bourdain, foi retomado algum tempo depois pela escritora Laurie Woolever, sua editora e fiel escudeira no universo literário.
“Talvez o mundo precisasse de outro guia de viagem, cheio da sagacidade ácida de Tony, de suas observações detalhadas e com algumas revelações astuciosas sobre os contornos misteriosos de seu coração surrado”, diz Laurie na introdução da obra. O que não significa que foi trabalho fácil. Além de frases soltas pelo próprio apresentador, a escritora também recrutou amigos e familiares para contribuir com memórias e pitacos que preenchessem as lacunas que Bourdain deixou.
Do acarajé da Dinha em Salvador, cidade que o apresentador descreve como um “lugar em que todo mundo é sensual”, até os xiao long bao (bolinhos de sopa) de Xangai, superpotência econômica onde “basta virar uma esquina para dar de cara com uma cultura ancestral”, a obra vai intercalando entre países e culturas, sem intenção de ser um guia, mas uma introdução aos tesouros que se escondem nos quatro cantos do mundo.
BRASIL
SALVADOR
“Acho que Salvador em particular é um daqueles lugares para onde, independentemente de qualquer coisa, as pessoas devem vir. Até quem tem medo de viajar, até quem diz: ‘Pois é, mas eu ouvi falar que…’ Não! Sabe por quê? A vida existe para ser vivida, cara. Você não pode perder um lugar como este porque não existem muitos lugares no mundo que sequer cheguem perto. A Bahia é o coração do Brasil — o lugar de onde vem a magia — e para chegar lá basta seguir o som dos tambores. As coisas parecem balançar e se movimentar constantemente. É um lugar onde todo mundo é sensual. Não sei se é o álcool, a música ou o calor tropical, mas, depois de um tempo saltitando de um lugar para o outro, vagando por antigas ruas de paralelepípedos, com músicas diferentes vindo de todos os lugares, com festas, gente saindo das casas, uma aglomeração se combinando a outra, a música se misturando, realmente parece que todo mundo está se movimentando ao som de uma pulsação misteriosa e desconhecida.”
Existe, é claro, beleza em Salvador, uma cidade de 3 milhões de habitantes no nordeste do litoral brasileiro. Há ótima comida, música, arte, essa sensualidade tangível — mas também há uma história perturbadora.
Salvador é a capital do estado da Bahia. Foi capital do país de 1549 a 1763, e a região do centro histórico conhecida como Pelourinho se tornou, em 1558, o primeiro local de desembarque de navios negreiros da África Ocidental, estabelecendo operações comerciais no Novo Mundo.
“É bom saber que entre os mais de 12 milhões de africanos arrastados, arrancados e sequestrados de sua terra natal, quase 5 milhões acabaram no Brasil; 1,5 milhão deles na Bahia. O Pelourinho se tornou o locus de uma vasta infraestrutura de plantações e do comércio de escravos que as movimentava — transformando esta cidade na mais opulenta do Novo Mundo. O Pelourinho, o centro histórico da cidade, é agora patrimônio da Unesco; suas construções coloniais em cores vivas e as ruas de paralelepípedos são um lembrete da forma como o mundo moderno foi construído.”
É bom saber que entre os mais de 12 milhões de africanos arrastados, arrancados e sequestrados de sua terra natal, quase 5 milhões acabaram no Brasil
CHEGADA E DESLOCAMENTO
O Aeroporto Internacional de Salvador (SSA) também é conhecido como Aeroporto Luís Eduardo Magalhães. Existem voos diretos para Salvador a partir de Miami, Lisboa e, sazonalmente, de Paris, bem como várias conexões com cidades de todo o Brasil e com algumas cidades da América do Sul. O aeroporto fica a 20 quilômetros do centro da cidade, que pode ser acessado por várias linhas de ônibus, ou de táxi, que custa cerca de 160 reais/cerca de 40 dólares. Não é hábito dar gorjetas aos motoristas no Brasil, mas arredondar, acrescentando alguns reais ao valor será apreciado.
Salvador tem táxis, um sistema de metrô de duas linhas e um amplo sistema de ônibus, além de um funicular e do Elevador Lacerda, um grande elevador público que faz a ligação entre as partes alta e baixa da cidade.
CAIPIRINHAS, QUEIJO COALHO, ACARAJÉ E DENDÊ
Em todo o Brasil, a qualquer hora do dia e da noite, você vai ter muitas oportunidades de se deliciar com caipirinhas, que são facilmente encontradas em bares, restaurantes e feitas na hora, na praia.
“A caipirinha, cara, esse ícone indispensável da cultura praiana brasileira, começa com limão fresco. Amasse com um pilão e misture com mais suco de limão, açúcar, gelo e o ingrediente mágico, cachaça — basicamente um destilado da cana-de-açúcar. Deve ser batido, não mexido, e aí está um dos melhores drinques do mundo. A bebida é versátil, boa para qualquer hora do dia ou para qualquer ocasião social.”
Também são populares na praia os vendedores de queijo coalho, que tostam delicadamente o queijo sobre um equipamento portátil, que muitas vezes não passa de uma lata de metal com carvão e brasas, até que ele se assemelhe a um marshmallow marrom-dourado assado na fogueira.
Para experimentar outro lanche baiano onipresente, junte-se às dezenas ou até centenas de soteropolitanos famintos junto ao Acarajé da Dinha.
“O que é acarajé? É isso: uma pasta, uma massa, um bolinho parecido com um falafel de feijão-fradinho amassado, temperado com camarão seco moído e cebolas, frito no azeite-de-dendê misturado com pimenta-malagueta até ficar crocante e dourado. Dentro vem o vatapá, uma espécie de pasta de camarão, a salada de tomate e o camarão frito. Imperdível.” É um lugar muito animado, movimentado, e as mesas e cadeiras na praça são disputadíssimas, então esteja preparado para comer de pé.
Adoro azeite-de-dendê. Mas leva algum tempo para se acostumar. A primeira vez que estive aqui foi assim: você come e caga sem parar durante horas
ACARAJÉ DA DINHA: Largo de Santana, Salvador, Bahia, Tel. +71 3334 1703 (em torno de 16 reais/4 dólares)
Uma observação sobre o azeite-de-dendê: o dendê é um azeite vermelho vivo, muito utilizado para fritar e temperar alimentos cozidos no Brasil, sobretudo na Bahia, feito a partir do fruto da palmeira africana, nativa de Angola e da Gâmbia, e também muito cultivada no Brasil. O azeite-de-dendê tem sabor intenso, com uma nota de nozes, verdadeira marca registrada da culinária baiana, ainda mais quando misturado a leite de coco, pimenta e coentro.
Primeira vez no Brasil? Uma advertência: “Adoro azeite-de-dendê. Mas leva algum tempo para se acostumar. A primeira vez que estive aqui foi assim: você come e caga sem parar durante horas. Mas, depois de se acostumar, sem problemas! Eu adoro.”
ARGENTINA
BUENOS AIRES
“Buenos Aires, capital da Argentina, segundo maior país da América do Sul. Tem uma personalidade própria, excêntrica, singular. Não lembra nenhum outro lugar, e faz você se sentir como nenhum outro lugar faz.” Tony visitou a Argentina para o programa Sem reservas, em 2007, e voltou nove anos depois com o Lugares desconhecidos, para lançar um olhar mais focado na cidade, num verão em que ela estava quente e semideserta.
“Tem um ar melancólico, triste e doce que gosto. Combina com a arquitetura. Janeiro e fevereiro são os meses mais quentes por aqui, o meio do verão, e a maioria dos portenhos que podem pagar por isso deixa a cidade, em busca de climas mais frescos.
“A Argentina se distingue por ter a maior concentração de psicoterapeutas per capita no mundo inteiro. É um país orgulhoso. Quer dizer, um dos estereótipos sobre os argentinos é que eles são orgulhosos demais, muito cheios de si. Vaidosos. Se isso é verdade, por que a psicoterapia é tão importante assim para os portenhos? Quer dizer, aqui é o reino da dúvida. É algo extraordinário, porque em muitas culturas se considera um sinal de fraqueza até mesmo confessar que você precisa se abrir com alguém. Aqui, todo mundo faz isso e ninguém faz cara feia.”
Tony se submeteu a uma sessão de terapia com uma psicóloga diante das câmeras, imagens que entremearam o episódio. Na ocasião, ele revelou o pesadelo recorrente de estar preso num hotel de luxo e a espiral depressiva que podia ser causada por um hambúrguer ruim no aeroporto.
“Me sinto o próprio corcunda de Notre-Dame… se ele se hospedasse em suítes de bons hotéis com lençóis de muitos fios. Me sinto como se fosse uma aberração e… muito isolado.”
Na ocasião, ele revelou o pesadelo recorrente de estar preso num hotel de luxo e a espiral depressiva que podia ser causada por um hambúrguer ruim no aeroporto
CHEGADA E DESLOCAMENTO
Buenos Aires tem dois aeroportos. O maior deles é o Aeroporto Internacional Ministro Pistarini, também conhecido como Aeroporto Internacional de Ezeiza (EZE), a cerca de vinte quilômetros do centro da cidade. Responde por 85% do tráfego internacional do país e é um hub para as Aerolíneas Argentinas. O EZE recebe voos de toda a América do Sul, de algumas cidades da América do Norte e de algumas cidades da Europa e do Oriente Médio. Os táxis fazem fila na saída do desembarque; a viagem do EZE ao centro da cidade leva cerca de 35 minutos e custa cerca de 1.750 pesos argentinos, ou cerca de 30 dólares. Os motoristas de táxi não esperam receber um percentual padrão da tarifa como gorjeta, mas sempre apreciam quando se arredonda o valor ou quando lhe dizem para ficar com o troco, em especial se ele ou ela ajudou a carregar a bagagem. Há também linhas de ônibus que saem do EZE e diversas locadoras de veículos.
O aeroporto menor de Buenos Aires, voltado exclusivamente para o tráfego doméstico (com exceção de um único voo para Montevidéu, no Uruguai), é o Aeródromo Jorge Newbury. Fica a apenas dois quilômetros do centro de Buenos Aires, com linhas de ônibus, táxis e locadoras de veículo.
Os viajantes que já estão no Uruguai podem optar por cruzar o rio da Prata (na verdade, um estuário) numa balsa que vai de Montevidéu a Buenos Aires, uma viagem que leva de duas a quatro horas, e custa entre 2.900 e 8.700 pesos, ou 50–150 dólares por trecho, dependendo do horário e se sua viagem é apenas de barco ou inclui também transporte rodoviário. Tenha em mente que, como se trata de uma travessia internacional, você passará por segurança, controle de passaportes e alfândega, como se estivesse voando de avião. As duas principais operadoras são a Buquebus e a Colonia Express.
Buenos Aires é bem servida por linhas de ônibus, assim como por um sistema de metrô de sete linhas conhecido como Subte, que liga o centro às extremidades da cidade. As passagens de ônibus e metrô são pagas por meio de cartão recarregável, o SUBE, disponível nas estações de metrô, nos postos oficiais de atendimento ao turista e em diversos kioskos, bancas de cigarros e doces espalhados pela cidade. Para informações detalhadas sobre o sistema de transporte, visite www.argentina.gob.ar/sube.
A FIM DE UMA CARNE
Tony apreciou o Bodegón Don Carlos, “um estabelecimento familiar despretensioso em frente ao estádio de futebol [La Bombonera]”, comandado desde 1970 pelo proprietário Juan Carlos Zinola, conhecido como Carlitos, por sua esposa, Marta Venturini, e a filha deles, Gaby Zinola. Fica no bairro de La Boca, que, durante o dia, apesar de ter a reputação de ser um tanto decadente, é um destino turístico animado para os fãs de futebol, para a turma da arte contemporânea atraída pela Fundación Proa e pelas multidões em busca de diversão barata no Caminito, paraíso dos artistas de rua que se transformou numa espécie de feira fajuta permanente.
Historicamente, nunca houve um menu no Bodegón Don Carlos; os clientes são recepcionados e questionados sobre o tamanho da fome e sobre o que gostam de comer, e então os pratos são servidos com base nisso — almôndegas, tortilla de batata espanhola, salada de tomate, empanadas, chouriço, bifes, massas e muito mais. Dizem por aí que o número de visitantes estrangeiros cresceu desde a visita de Tony, e que os menus, com preços, estão disponíveis mediante solicitação, embora ainda valha a pena se entregar às mãos hábeis de Carlitos.
BODEGÓN DON CARLOS: rua Brandsen, 699, La Boca, Buenos Aires, C1161AAM, Tel. +54 11 4362 2433 (refeição completa com bebida em torno de 3.500 pesos/60 dólares por pessoa)
Historicamente, nunca houve um menu no Bodegón Don Carlos; os clientes são recepcionados e questionados sobre o tamanho da fome e sobre o que gostam de comer, e então os pratos são servidos com base nisso
“Nos arredores da cidade, no sufocante calor do verão, as churrasqueiras ainda queimam. Um miasma tentador de carne preenche o ar da tarde.”
Tony encontrou Marina, sua terapeuta, diante das câmeras, no Los Talas del Entrerriano para um tradicional almoço de parrilla: pratos e mais pratos de costelas, bifes, linguiças e, por insistência de Marina, achuras ou, como Tony poderia ter chamado, “os maus bocados”: intestinos, rins, chouriço e muito mais. “Na parrilla”, observou Tony, “chiam e se chamuscam muitas partes de coisas antes vivas, para o prazer dos portenhos que permanecem na cidade. No fogo, a carne é a rainha, e vamos nos esforçar bastante para honrar a chama.”
O Los Talas tem um ambiente intimista e informal, com mesas que acomodam até dez pessoas; grupos menores se sentam juntos, dividindo a mesa. As porções são enormes; os acompanhamentos e as bebidas são coadjuvantes; as chamas são quentes e o clima é animado.
LOS TALAS DEL ENTRERRIANO: avenida Brigadier Juan Manuel de Rosas, 1391, José León Suárez, Buenos Aires, Tel. +54 11 4729 8527 (em torno de 1.750 pesos/30 dólares por pessoa)
- Volta ao Mundo
- Anthony Bourdain e Laurie Woolever
- Intrinseca
- 464 páginas
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