‘Talvez você deva conversar com alguém’
Histórias da terapeuta Lori Gottlieb, colunista da ‘Atlantic’, e dela mesmo como paciente que são um excelente lembrete sobre a importância de sermos ouvidos e de sabermos ouvir
POR QUE LER?
Quem nunca quis saber o que se passa na cabeça do terapeuta durante a consulta? Ou a genealogia daquele bocejo? Se é casada, sofre, goza, chora? “O que John não sabe é que estou me recuperando da noite passada, quando o homem com quem pensei que ia me casar inesperadamente rompeu comigo”, diz a narradora. Enquanto mergulhamos nas idiossincrasias do paciente, descobrimos que a psicóloga está em crise, ansiosa, e precisa de um terapeuta ela mesma. “Porque, neste exato momento, só consigo pensar no que meu namorado fez na noite passada.”
Terapeutas são gente como a gente, mostra a autora, Lori Gottlieb, que atende em seu consultório em Los Angeles e assina a coluna de conselhos “Caro Terapeuta” na revista The Atlantic. A proposta, aqui, é “revelar nossa humanidade comum para que possamos nos enxergar com mais clareza”, diz a autora na nota inicial — a mesma em que explica ter obtido autorizações de todo mundo cujas vidas semeiam as páginas. Os nomes são fictícios; as histórias, reais. Mas a principal história talvez seja a sua.
Quando Wendell passa a atendê-la, as sessões dela com os clientes são entremeadas com as dela como cliente. Lembra a série “In Therapy”, mas com humor. Quem lê é voyeur ao mesmo tempo das consultas alheias, do relato dela e do próprio processo terapêutico (sim, há “transferência romântica” e ela é engraçada). Não se trata de um mergulho profundo na filosofia psicanalítica, nem de auto-ajuda. Mas faz perceber que toda vida se constrói de desejos irracionais e tentativas de racionalizá-los.
“Minhas lágrimas estão voltando a cair na minha calça quando, com o canto dos olhos, vejo um objeto voando em minha direção. No início, parece uma bola de futebol, e me pergunto se estou alucinando (por causa da falta de horas de sono reparador que venho tendo desde o rompimento), mas então percebo que é uma caixa marrom de lenços de papel, aquela que estava na mesinha entre os sofás, ao lado do assento que não escolhi. Instintivamente, minhas mãos levantam-se para agarrá-la, mas erro. Ela aterrissa com um baque na almofada ao meu lado, e eu agarro um maço de lenços e assoo o nariz. O fato de a caixa estar lá parece diminuir o espaço entre mim e Wendell, como se ele acabasse de me jogar uma corda de resgate. Ao longo dos anos, estendi inúmeras vezes muitas caixas de lenços de papel para pacientes, mas tinha me esquecido do quanto aquele simples gesto pode fazer alguém se sentir cuidado.
Uma frase que ouvi pela primeira vez na graduação me vem à cabeça: “o ato terapêutico, não a palavra terapêutica”.
Pego mais lenços e enxugo os olhos. Wendell observa, esperando.
Continuo falando sobre o Namorado e seus problemas de evitamento, construindo um caso com detalhes do seu passado, incluindo a maneira como seu casamento terminou, que não é muito diferente do término do nosso relacionamento, em termos de choque para sua esposa e seus filhos. Conto a Wendell tudo que eu sabia sobre a história de evitamento do Namorado, sem perceber que o que estou ilustrando, à revelia, é meu evitamento do evitamento dele, sobre o qual eu, aparentemente, conhecia um bocado.
Wendell inclina a cabeça ligeiramente, com um sorriso questionador no rosto: “Não é curioso que, considerando o que você sabia sobre a história dele, isso seja um choque pra você?”
“Mas é um choque”, digo. “Ele nunca tinha dito nada a respeito de não querer criança em casa! Na verdade, tinha acabado de conversar com o RH da sua empresa, para ter certeza de que poderia incluir meu filho em seu programa de benefícios, depois que nos casássemos!” Repasso toda a cronologia mais uma vez, acrescentando mais provas para sustentar minha história, e então noto que o rosto de Wendell começa a se fechar.
“Sei que estou sendo repetitiva”, digo. “Mas você tem que entender; eu esperava que a gente fosse passar o resto da vida juntos. Era assim que as coisas deveriam acontecer, e agora tudo foi jogado pro alto. Metade da minha vida acabou, e não faço ideia do que vai acontecer. E se o Namorado tiver sido a última pessoa pela qual me apaixonei? E se ele for o fim da linha?”
“O fim da linha?”, Wendell anima-se.
“É, o fim da linha”, digo.
Ele espera que eu continue, mas, em vez disso, minhas lágrimas voltam. Não os soluços violentos da semana anterior, mas algo ao mesmo tempo mais calmo e mais profundo.
Mais silencioso.
“Sei que você se sente pega de surpresa”, Wendell diz, “mas também estou interessado em outra coisa que você disse. Metade da sua vida acabou. Talvez, o que você esteja lamentando não seja apenas o rompimento, embora eu saiba que essa experiência pareça devastadora”. Ele faz uma pausa, e, quando volta a falar, sua voz é mais suave. “Eu me pergunto se você está lamentando algo mais importante do que a perda do Namorado.”
Ele olha para mim significativamente, como se tivesse acabado de dizer algo incrivelmente importante e profundo, mas meio que tenho vontade de socá-lo.
Que monte de besteiras, penso. Quer dizer, jura? Eu estava bem, mais do que bem, estava bem-e-meio, antes dessa reviravolta toda. Tenho um filho que amo além da conta. Tenho uma carreira que me satisfaz imensamente. Tenho uma família solidária e amigos incríveis com os quais me preocupo e que se preocupam comigo. Sinto-me grata por esta vida… Tudo bem, às vezes me sinto grata. Com certeza, tento me sentir grata. E agora estou frustrada. Estou pagando a este terapeuta para me ajudar em um rompimento doloroso, e é isso que ele tem a oferecer?
Lamentando algo mais importante, o cacete.
Antes que eu possa dizer isso, noto que Wendell está olhando para mim de uma maneira que não estou acostumada a ser olhada. Seus olhos são como ímãs, e toda vez que desvio o olhar, eles parecem me encontrar. Tem a expressão intensa, mas gentil, uma combinação de ancião sábio com bichinho de pelúcia, e vem com uma mensagem: Nesta sala, vou te ver e você tentará se esconder, mas mesmo assim te verei, e tudo bem que seja assim.
Mas não estou aqui para isso. Como disse a Wendell quando telefonei para agendar um horário, só preciso de um gerenciamento de crise.
“Só estou mesmo aqui para superar o rompimento”, digo. “Sinto-me como se tivesse sido jogada em um liquidificador e não conseguisse sair, e só estou aqui pra isso, descobrir uma saída.”
“Tudo bem”, Wendell diz, recuando graciosamente. “Ajude-me a entender melhor o relacionamento.” Ele está tentando estabelecer o que é conhecido como uma aliança terapêutica, uma confiança que precisa se desenvolver antes que o trabalho possa ser iniciado. Nas primeiras sessões, é sempre mais importante que os pacientes sintam-se escutados e entendidos do que chegarem a qualquer insight ou fazer qualquer mudança.
Aliviada, volto a falar sobre o Namorado, retomando a coisa toda.
Mas ele sabe. Sabe o que todo terapeuta sabe. Que o problema atual, o assunto que alguém traz, é frequentemente apenas um aspecto de um problema maior, se não um engodo completo. Sabe que a maioria das pessoas é ótima em encontrar maneiras de filtrar as coisas que não quer enxergar, em usar distrações ou defesas para manter sentimentos ameaçadores à distância. Sabe que deixar emoções de lado apenas faz com que elas fiquem mais fortes, mas que antes de entrar e destruir a defesa de alguém – seja esta defesa uma obsessão por outra pessoa, ou fingir que não vê o que está bem diante de si –, precisa ajudar o paciente a substituir a defesa por alguma outra coisa, e assim não deixar a pessoa despreparada e exposta, sem qualquer tipo de proteção. Como o termo indica, as defesas servem a um propósito útil. Elas protegem as pessoas de traumas, até não serem mais necessárias.
É nessa elipse que os terapeutas trabalham.”
- Talvez você deva conversar com alguém
- Lori Gottlieb
- Editora Vestígio
- 448 páginas
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