Sodomita
Em falso romance de época, escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto narra com fina ironia história de português deportado ao Brasil por ser homossexual
No século 17, em Portugal, a homossexualidade era considerada crime grave, cuja punição podia acabar sendo nada mais nada menos que uma viagem ao Brasil, só que sem passagem de volta. Em seu quarto romance, o escritor, diplomata e mestre em direito Alexandre Vidal Porto toma esse fato curiosamente terrível como ponto de partida para uma narrativa que mescla história e fábula, usando o passado para discutir temas profundamente atuais.
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Em sua superfície, “Sodomita” (Companhia das Letras, 2023) narra a saga do violeiro Delgado, que é degredado após cometer na prisão o crime de sodomia — código usado na época para se referir à homossexualidade. Um indicativo da gravidade de manter relações homossexuais no período é o fato de a punição se mostrar muito mais grave para a prática do que por roubo, por exemplo. Nascido e criado na cidade de Évora, na região do Alentejo, o protagonista é então enviado a Salvador para cumprir um exílio de pelo menos dez anos.
Porto então vai construindo com fina ironia a maneira como Delgado se reinventa a partir do degredo, escondendo-se por trás de um casamento de fachada e da imagem de comerciante respeitável para cair na farra com belos rapazes que cruzam seu caminho. A linguagem do romance, que mistura a oralidade contemporânea a um falso português arcaico, só acrescenta mais uma camada à irreverência com que o escritor desbrava certos assuntos eternamente relevantes, como o Estado laico, o racismo e os resquícios da escravidão.
I. De como um violeiro de Évora, recebendo mau alvitre do próprio irmão e estando disponível às coisas do Diabo, termina encarcerado, desencaminhado e sancionado pela Santa Inquisição
Antes do raiar do sol, ainda na penumbra do 7 de fevereiro do ano da graça de 1669, Luiz Delgado deixava o cárcere do Tribunal, no Palácio dos Estaus, perto da Praça do Rossio. Saía escoltado, em fila, mãos atadas, pés descalços, na madrugada fria de inverno, na companhia de hereges e devassos, todos penitentes já reconciliados com a Santa Igreja, como ele próprio.
Cada um dos onze penitentes levava uma vela de sebo acesa entre as mãos e seguia ladeado por dois servidores do Tribunal do Santo Ofício. Vinham vestidos com a túnica amarela de algodão grosseiro dos que haviam atentado contra a fé e sido julgados e condenados por isso. Sobre a túnica, pintada à mão, uma cruz de Santo André vermelha, marca do Cristo que resgatou um coração pecador.
À frente do grupo iam três frades dominicanos, com capas e capuzes negros, carregando tochas. Um deles, o mais alto, empunhava o estandarte da Inquisição: Justitia et Misericordia. Seguia a procissão um pequeno cortejo, composto de três comissários do Santo Ofício, montados em cavalos ornamentados com penachos. Empunhavam tochas, tal qual os frades que abriam e lideravam o cortejo daquela massa de homens desorientados.
Os condenados atravessaram ruas e esplanadas sob apupos e xingamentos por parte dos vários populares que se dispuseram a assistir a penitência se cumprir. Alguns haviam despejado imundícies sobre as pedras do caminho para que os condenados, descalços, sentissem na pele nua a bosta de homens e animais e todo tipo de podridão.
Luiz Delgado descia as ladeiras de Lisboa levado apenas pelo movimento repetitivo de suas pernas. O frio entrava pelos punhos e tomava conta dos ossos, um a um, tornando seu corpo inerte, vazio de sensações e pensamentos, gelado como um cadáver que carrega a si próprio.
Chegara a Lisboa no ano em que lhe despontaram os primeiros fios de barba. Tinha ido trabalhar de aprendiz de picheleiro com o irmão mais velho, João, que se iniciara nesse ofício anos antes na oficina de um conterrâneo de Évora. Sucede que Luiz Delgado dedilhava a viola muito bem, e que havia à época pouca encomenda de trabalho. De forma que o dono da oficina onde fora auxiliar o mandou trabalhar de violeiro numa casa de mulheres que carecia de um, como forma de não ter de lhe pagar alimentação e sustento.
Com o talento reconhecido por todos que o ouviam tocar, foi dispersando-se Delgado da ideia e do caminho de picheleiro, das ligas e dos metais, e foi-se acercando do mundo das melodias e das canções, violeiro de profissão que se tornou.
Esse seu ofício se exercia quase sempre depois do cair da noite, em tavernas, hospedarias e bordéis. Vivia no vulgacho, gostava da arraia. Era sorridente e fagueiro e criava muitas amizades por todos os lugares em que dedilhava sua viola. O trabalho lhe proporcionava o que queria ter: amigos, enlevos e divertimentos. Lisboa, como mãe amorosa, mostrara que a vida podia ser boa.
Mas havia limites, e, tendo-os rompido, Luiz Delgado cumpria seu destino envergonhado. Restava-lhe como consolo o alívio de ter poupado aos pais, ambos defuntos, o vexame e a dor de vê-lo descendo as ladeiras daquele reino vestido como preso, apontado como desumano, marcado como pecador.
Saía escoltado, em fila, mãos atadas, pés descalços, na madrugada fria de inverno, na companhia de hereges e devassos
Dói-lhe o corpo inteiro: cabeça, tronco e membros. Dispersa-se sua consciência. Pelas narinas, invade o cheiro da maré. Mas seu sangue segue pulsando.
E seguiu pulsando assim, até chegarem ao Terreiro do Paço, defronte ao Palácio Real, junto ao Tejo, onde foi ele confiado, com os demais penitentes e toda a documentação relativa ao processo e à condenação de cada um, ao mestre da nau Santa Catarina, Alexandre Faustino, que assumia o encargo sobre sua pessoa e sobre a ração de peixe seco e víveres que lhe deveria bastar para os mais ou menos sessenta dias de duração da travessia.
Parte só e nada deixa. Para ele, todos os laços se romperam.
Era alto de corpo, alvo, magro de cara. Tinha olhos raros que chamavam a atenção por serem do mesmo anil das pedras de Goa. De idade tinha vinte anos, pouco mais ou menos.
Fora mal influenciado por João, seu irmão mais velho, ou melhor, pelo próprio Demônio, que falou pela boca do irmão e o convenceu ao malfeito. Roubaram três alguidares pesados de cobre de uma taverna ao pé da Mouraria, que se encontrava fechada por morte recente do taberneiro.
O filho deste, dando-se conta do desaparecimento das peças, questionou o ajudante da casa que, pressionado, enfim confessou o nome dos ladrões com quem estava mancomunado: “aquele filho do moleiro lá dos lados da Ribeira, João Delgado, e seu irmão mais jovem, de nome Luiz”.
Foram encarcerados os dois irmãos na cadeia pública, um pouco acima da Sé. Como não restituíram os alguidares nem se reembolsou seu valor ao filho do taberneiro, seguiriam presos até que se resolvesse a questão de uma maneira ou de outra. Os irmãos eram assistidos em suas necessidades materiais pela família da mulher de João, cujo cunhado, de nome Brás, lhes levava provisões e forros limpos para os catres, semana sim semana não.
O tal Brás era um rapazola franzino, muito juvenil e solícito, que, nas ocasiões em que lhes levava suprimento e alguma roupa limpa, congregava muito com Luiz Delgado, porque eram próximos em idade e em temperamento e nutriam um pelo outro verdadeira afeição.
O rapazola Brás também parecia ser da simpatia dos demais detidos na cela dos presos, por lhes prestar ajudas e realizar trâmites, e também dos carcereiros, a quem a cada visita trazia ovos de pata como agrado.
Na noite de maior tempestade no mês de abril, alegou o tal Brás que tardara demais em sua assistência e que, ao voltar para casa na calada noturna, além da lama, teria de lidar com todo tipo de malfeitores e ladrões que a escuridão revela lá para os lados de sua morada.
Diante de tão fundada alegação, o carcereiro assentiu em que Brás passasse a noite na cela, dividindo o leito com seus parentes.
E os pernoites de Brás na cadeia voltaram a ocorrer diversas vezes, ou porque chovia, ou porque havia ficado tarde, ou até porque lhe doesse o calcanhar ou lhe faltasse disposição para a longa caminhada de volta à casa dos pais. Sua presença tornou-se comum, e as pessoas já não se davam conta se pernoitava por lá ou não.
Um tal prisioneiro da cadeia pública por furto ‘pecava com um rapazola de nome Brás e com ele dormia contra a castidade’
Os dois irmãos já levavam perto de seis meses de encarceramento quando os inquisidores tomaram ciência, por uma carta escrita por um presidiário, de que um tal prisioneiro da cadeia pública por furto “pecava com um rapazola de nome Brás e com ele dormia contra a castidade”.
Quatro dias passados, instaurou-se na cadeia pública um sumário de culpas para investigar a veracidade dessa grave acusação. Depois da ouvida de diversos prisioneiros, depreendeu-se que tal alegação se dava contra o tal violeiro Luiz Delgado, natural de Évora, detido com o irmão pelo roubo de alguidares de cobre ao pé da Mouraria.
Durante as investigações, alguns detentos declararam estranhar ao início as afeições e os carinhos trocados entre os dois parentes, mas que se contentaram com a justificativa de que essa maneira de demonstrar carinho era tradição das famílias do Alentejo, de onde provinham seu sangue e seus costumes.
Com o correr dos dias, um preso confirmou que ouvira Luiz dizer a Brás: “Esta noite hei de fazer-lhe o traseiro em rachas…” e “Chega já para cá, que o quero sentir por dentro”, ao que Brás sorriu, sem nada responder. E ainda outro detento declarou que os havia visto, o mais novo entre as pernas do mais velho, movimentando-se e gemendo manso em meio a beijos, abraços e suspiros.
O derradeiro e definitivo testemunho foi dado por um ladrão do Minho, que afirmou ter percebido o seguinte diálogo do rapazola para o violeiro: “Deixa-me em paz, por caridade, pois que já fez esta noite comigo três vezes”, ao que o violeiro respondeu com um abraço, e que, em um pouco mais de tempo, já se podiam perceber gemidos abafados por parte do tal Brás, com as insistências de Delgado para que se calasse.
Ao cabo dessa fase investigativa, o Promotor da Inquisição encontrou suficiente mérito e veracidade na denúncia. A acusação contra Luiz Delgado sairia, portanto, do juízo civil e passaria para o juízo religioso. Mudava-se da cadeia pública para os cárceres secretos do Santo Ofício. Passava das mãos dos homens para as mãos de Deus.
Era acusado de praticar o mais torpe, sujo e desonesto pecado: a sodomia, que, sendo oculto, tem prova suficiente em conjecturas e presunções, tendo a arbitrariedade valor de julgamento.
Foi lançado sozinho em uma cela escura e acanhada. Gotículas de água minavam contínua e lentamente por entre as pedras da parede. O feixe de palha que lhe servia de cama absorvia a umidade fria do ambiente. Sua única companhia eram ratos famélicos e baratas insidiosas, além de um cântaro de imundícies que era recolhido apenas uma vez por semana.
Ao término da terceira semana daquele cativeiro, quando não mais atinava se era alvorada ou crepúsculo, foi levado à presença de três inquisidores que lhe ordenaram que se pusesse de joelhos. Consta que era 5 de outubro do ano da Graça de 1668.
Após as orações que cabiam, procederam à leitura da acusação que faziam contra Luiz Delgado de pecar no nefando e na mais torpe das ofensas com o rapazola Brás Filgueira, na cela dos detidos da cadeia pública, como dava testemunho a palavra de cinco prisioneiros que os viram ou os perceberam.
Os inquisidores iniciaram com a recomendação de que o acusado fizesse inteira e verdadeira admissão de suas culpas, para alívio de sua consciência e bom andamento do processo.
Era acusado de praticar o mais torpe, sujo e desonesto pecado: a sodomia
Perguntaram-lhe, então, se admitia tais práticas contra a natureza e se confessava haver introduzido seu membro desonesto no vaso natural do rapazola Brás, derramando semente em seu interior, como lhe acusavam de ter feito.
Luiz Delgado, com a visão magoada pela luz que já havia dias lhe faltava aos olhos, afirmou aos inquisidores ser cristão devoto, respeitoso e temente a Deus, que não pecara introduzindo seu membro nem nas carnes do rapazola Brás nem nas de qualquer outro varão, e que a culpa que se lhe imputava brotava da malícia de seus inimigos.
Confessou, no entanto, por ser temente a Deus e crente em sua misericórdia infinita, na presença dos inquisidores e de todos os santos celestes, que, em duas ou três ocasiões, mas não mais, em que quis o Divino que o rapazola Brás pernoitasse na cadeia pública, e que por dever familiar estenderam-lhe os catres para que não sofresse o pobre de frio, a pele dele e a do parente se encontraram em busca do calor, já que era época da chuva gélida e quando já se podiam esperar neves.
Os Demônios que povoam aquele covil de criminosos trafegavam soltos por correntes de ar frio. Fora um destes que o tomara, cegando-o. E, quando, por impulso, as peles e os corpos buscavam calor e conforto na pureza do Cristo, foram surpreendidos pelo Demônio. Fracos que estavam, debilitados pelo frio, caíram em desnorteio, com o Diabo e seus auxiliares tomando-lhes os sentidos, e, em meio a tal sequestro malévolo, esfregou seu membro viril na virilha e entre as pernas do tal Brás, mas sem o penetrar nem intentar penetrar pelo seu vaso traseiro, derramando todas as vezes sua semente na mão, na barriga ou entre as pernas do sujeito.
Prosseguiu asseverando que foram as mãos do próprio Belzebu que lhe haviam tapado os olhos durante os tocamentos torpes que tivera com o mancebo. E que foi o amor pelo Cristo crucificado que o resgatara de cometer o pecado mortal e o desnorteio mais completo.
Prostrado no solo, diante de seus inquisidores, disse assumir toda a culpa que lhe cabia pelos pecados da natureza perversa que em todo homem há. E que toda sua alma se prostrava, clamando pela misericórdia divina, e seu corpo, em arrependimento, se entregava às penas que a Santa Igreja e seus servos leais lhe quisessem infligir.
Em duas novas sessões de perguntas, separadas uma da outra por uma semana, voltou a negar o pecado nefando com o rapazola Brás, ou qualquer outro, e reafirmou a admissão de seu quinhão de culpa nos atos destrutivos que o Demônio obrara por seu corpo.
Na quinta semana depois do primeiro encontro com os inquisidores, foi levado à Sala do Santo Ofício, onde lhe deram a conhecer os termos de sua penitência. Os inquisidores, de início, lhe disseram que a misericórdia infinita da Santa Igreja lhe poupava a infâmia de um auto de fé, e que sua pena seria proferida sob a bênção do crucifixo que presidia aquele salão.
Puseram muita consideração na gravidade de sua ofensa e no estar-se vulnerável aos ataques do indizível e repararam, como causa de seus infortúnios, no fato de Delgado encontrar-se alienado do santo caminho, e que seu castigo se daria sobretudo por essa sua alienação, que é o começo de todo mal, no ser e no mundo.
Imputava-se-lhe a pena de dez anos de degredo nas selvagens terras do Brasil
Sem embargo, apreciaram seu espírito de arrependimento e divisaram legítima sinceridade cristã em seus propósitos de redenção demonstrados perante a cruz. E, por ser de tenra idade e por ter a vulnerabilidade do corpo, decidiram não o enviar ao tormento físico, para que não se debilitasse o corpo ainda mais, permitindo a entrada e a prevalência do pecado.
Pelas ditas culpas que do violeiro Luiz Delgado havia na Inquisição contra a Santa Fé católica, ficou ele obrigado a cumprir penas espirituais, recitando cotidianamente as orações tradicionais da Igreja enquanto entre os vivos permanecesse, sendo que, para permitir-lhe tempo de consolidarem-se as raízes de seu compromisso com a Igreja, imputava-se-lhe a pena de dez anos de degredo nas selvagens terras do Brasil, a fim de que pudesse, durante esse período, provar-se de benefício ao Reino dos Santos e ao Reino de Portugal.
- Sodomita
- Alexandre Vidal Porto
- Companhia das Letras
- 160 páginas
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