Trecho de Livro: Quem Tem Medo do Gênero?, de Judith Butler — Gama Revista

Trecho de livro

Quem Tem Medo do Gênero?

Inspirada por experiência violenta no Brasil, Judith Butler mostra em livro como reacionários incentivam o medo da “ideologia de gênero”

Leonardo Neiva 22 de Março de 2024

Em 2017, quando veio ao Brasil para uma série de eventos, a filósofa estadunidense Judith Butler, uma das maiores estudiosas contemporâneas do feminismo e da teoria queer, se deparou com um cenário extremamente hostil. Perseguida para onde quer que fosse por grupos que se diziam contrários à “ideologia de gênero”, ela acabou sendo agredida por uma manifestante no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Sete anos depois, com o conservadorismo e a defesa da família tradicional ainda a todo vapor no país, ela publica por aqui “Quem Tem Medo do Gênero?” (Boitempo, 2024), seu primeiro livro não acadêmico, em grande parte inspirado pela experiência traumática em solo brasileiro.

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Defensora da noção de que sexo, gênero e sexualidade são construções culturais e sociais, Butler foi chamada até de bruxa por aqui por supostamente ir contra a família e botar caraminholas na cabeça de crianças. Na obra, a autora analisa justamente como o gênero virou o Lobo Mau das histórias conservadoras e reacionárias, uma presença comparada à bomba nuclear. Tudo isso, ela defende, com o objetivo de criar um pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes.

“O medo é alimentado de modo que aqueles que prometem aliviá-lo possam emergir como forças de redenção e restauração”, afirma Butler no capítulo introdutório do livro. Apesar de lidar com alguns dos temas mais barra pesada do debate contemporâneo, como os ataques aos direitos reprodutivos, o feminismo radical que exclui pessoas trans e o legado racial e colonial do dimorfismo de gênero, a autora se esforça para apresentar possibilidades de solidariedade e emancipação em meio a essa terra devastada. Com o livro, a filósofa tranforma a memória daquelas “pessoas furiosas que nos acusaram de um conjunto caótico e sinistro de crimes sexuais” numa reflexão crucial para o debate atual.


Ideologia de gênero e o medo da destruição

Por que alguém teria medo do gênero? Ao menos nos Estados Unidos, o termo tem sido considerado, até recentemente, bastante corriqueiro. Solicitam-nos marcar um quadrinho em um formulário, e a maioria de nós o faz sem parar para pensar. Mas, é claro, há entre nós quem não goste de assinalar o quadrinho e considere que deveriam existir muitos quadrinhos mais ou, quiçá, nenhum; cada um de nós tem sentimentos diferentes quando convocado a assinalar o quadrinho do gênero. Algumas pessoas suspeitam que “gênero” é uma maneira de discutir a condição de desigualdade das mulheres ou supõem que a palavra é um sinônimo de “mulheres”. Outras pensam se tratar de uma maneira disfarçada de se referir a “homossexualidade”. Outras, ainda, presumem que “gênero” é mais uma forma de dizer “sexo”, embora algumas feministas tenham feito a distinção entre as duas coisas, associando o “sexo” à biologia ou à atribuição legal no momento do nascimento e o “gênero” às formas socioculturais do tornar-se. Ao mesmo tempo, as feministas e parte dos especialistas em estudos de gênero discordam entre si em relação a quais definições e distinções estão corretas. A miríade de debates em curso a respeito da palavra mostra que nenhuma abordagem para definir ou compreender o gênero é dominante.

O “movimento contra a ideologia de gênero”, no entanto, trata o gênero como um monólito, assustador em seu poder e alcance. O mínimo que se pode dizer é que os debates lexicais sobre gênero não são realmente acompanhados por quem se opõe ao termo. Bem longe das formas mundanas e acadêmicas sob as quais circula, o gênero se tornou, em algumas partes do mundo, uma questão de extraordinário alarde. Na Rússia, tem sido chamado de ameaça à segurança nacional, ao passo que o Vaticano a declarou uma ameaça tanto à civilização quanto ao próprio “homem”. Em comunidades conservadoras evangélicas e católicas ao redor do mundo, “gênero” é considerado o código para uma pauta política que busca não apenas destruir a família tradicional mas também proibir qualquer referência à “mãe” e ao “pai”, em prol de um futuro sem gênero. Em contraposição a isso, nas recentes campanhas estadunidenses para manter o “gênero” longe da sala de aula, o termo é tratado como um código para a pedofilia ou para uma forma de doutrinação que ensina criancinhas a se masturbarem ou se tornarem gays. O mesmo argumento foi apresentado no Brasil de Bolsonaro, sob a alegação de que o gênero põe em dúvida o caráter natural e normativo da heterossexualidade, e que, uma vez que a ordem heterossexual deixar de ser sólida, uma enxurrada de perversidades sexuais, incluindo zoofilia e pedolia, tomará a face da terra. As contradições são abundantes. Essa linha de pensamento — segundo a qual educar as crianças em relação ao “gênero” signica abuso infantil — se esquece, convenientemente, da longa e abominável história de abuso sexual de jovens por sacerdotes que depois são exonerados e protegidos pela Igreja. Acusar de abuso infantil quem leciona educação sexual é projetar os males cometidos pela Igreja sobre pessoas que estão tentando ensinar como o sexo funciona, por que o consentimento é importante e quais percursos existem tanto para o gênero como para a sexualidade. Essa externalização dos males é apenas um exemplo de como o fantasma do gênero atua.

Na Rússia, [o gênero] tem sido chamado de ameaça à segurança nacional, ao passo que o Vaticano a declarou uma ameaça tanto à civilização quanto ao próprio ‘homem’

Em várias partes do mundo, o gênero é representado não apenas como uma ameaça às crianças, à segurança nacional ou ao casamento heterossexual e à família normativa, mas também como uma conspiração das elites para impor seus valores culturais a “pessoas de verdade”, um esquema orquestrado nos centros urbanos do Norte Global para colonizar o Sul Global. O gênero é retratado como um conjunto de ideias que se opõe à ciência, à religião ou a ambas, ou ainda como um risco à civilização, uma negação da natureza, um ataque à masculinidade ou o apagamento das diferenças entre os sexos. Às vezes, o gênero também é encarado como uma ameaça totalitária ou como obra do demônio, e, dessa forma, disseminado como a força mais destrutiva do mundo, um rival contemporâneo e perigoso de Deus, a ser combatido ou destruído a qualquer custo.

Ao menos nos Estados Unidos, o gênero deixou de ser um quadrinho banal a ser assinalado em formulários oficiais, e certamente não é uma daquelas disciplinas acadêmicas obscuras sem efeito no mundo em geral. Pelo contrário: tornou-se um fantasma com poderes destrutivos, uma forma de reunir e exacerbar a multiplicidade de pânicos modernos. É claro que há muitas razões completamente legítimas para temer nosso mundo atual. O desastre climático, a migração forçada, as vidas ameaçadas e perdidas na guerra. As economias neoliberais, que privam as pessoas dos serviços sociais básicos de que necessitam para viver e prosperar. O racismo sistêmico, que tira a vida de tantas pessoas por meio de formas de violência tanto lentas quanto rápidas. Mulheres, pessoas queer e trans, especialmente as negras ou marrons*, são assassinadas em índices estarrecedores.

Na direita, contudo, a lista de medos é diferente: contestações ao poder patriarcal e às estruturas sociais no interior do Estado, da sociedade civil e da unidade familiar heteronormativa; ondas de migração que ameaçam noções tradicionais de nacionalidade, supremacia branca e nacionalismo cristão. A lista do que deve ser temido continua, mas nenhuma lista é capaz de explicar como movimentos de direita, instituições e Estados exploram esses medos de destruição em favor de seus próprios objetivos, e de que maneira termos como “gênero”, “teoria de gênero”, “racismo sistêmico” ou “teoria crítica da raça” são culpados pelos temores completamente desnorteantes que muitas pessoas sentem hoje mundo afora em relação ao futuro de seus modos de vida. Para que o gênero seja identificado como uma ameaça à vida como um todo, à civilização, à sociedade, ao pensamento e por aí vai, o termo tem de condensar uma ampla gama de medos e ansiedades — independentemente do fato de contradizerem uns aos outros —, embalá-los em um único fardo e reuni-los sob um único nome. Como Freud nos ensinou em relação aos sonhos, tudo o que acontece em fantasmas como esses envolve a condensação de vários elementos e um deslocamento em relação ao que permanece não visto ou não nomeado.

Quando o ‘gênero’ absorve uma série de medos e se torna um fantasma totalizante para a direita contemporânea, as condições que dão origem a esses medos perdem seus nomes

Será que é sequer possível dizer quantos dos medos contemporâneos se concentram no terreno do gênero? Ou explicar como a demonização do gênero encobre e desvia a atenção de ansiedades legítimas quanto à destruição climática, à precariedade econômica intensificada, à guerra, às toxinas ambientais e à violência policial — medos de que, sem dúvida, temos razão em sentir ou cogitar? Quando o “gênero” absorve uma série de medos e se torna um fantasma totalizante para a direita contemporânea, as variadas condições que de fato dão origem a esses medos perdem seus nomes. O “gênero” reúne e incita esses medos, impedindo-nos de refletir mais claramente sobre o que há a temer e como, para início de conversa, surgiu a atual percepção de que o mundo está em perigo.

Colocar o fantasma do “gênero” em circulação também é uma forma encontrada pelos poderes existentes — Estados, igrejas, movimentos políticos — para atemorizar as pessoas, de modo que elas retornem a suas fileiras, aceitem a censura e externalizem seu medo e ódio contra comunidades vulneráveis. Esses poderes não só recorrem aos medos reais de muitas pessoas da classe trabalhadora quanto ao próprio futuro profissional ou à sacralidade de sua vida familiar como incitam esses medos, convenientemente insistindo, por assim dizer, que as pessoas identifiquem no “gênero” a verdadeira causa de seus sentimentos de ansiedade e apreensão em relação ao mundo. Consideremos a sugestão do papa Francisco em 2015. Depois de alertar para a existência de “Herodes” em todos os períodos históricos, diz que a “teoria de gênero” contemporânea é composta por novos herodianos que “tramam desígnios de morte, que desfiguram o rosto do homem e da mulher, destruindo a criação”. Em seguida, o papa Francisco esclarece quão aniquiladora é a força da “teoria de gênero”: “Pensemos nas armas nucleares, na possibilidade de aniquilar em poucos instantes um número muito grande de seres humanos […]. Pensemos também na manipulação genética, na manipulação da vida, ou na teoria de gênero, que não reconhece a ordem da criação”. O papa Francisco prossegue relatando que o financiamento a escolas que atendem aos mais pobres foi assegurado sob a condição de que a “teoria de gênero” fosse incluída no currículo; não nos é apresentado nenhum detalhe sobre o que exatamente se entende por “teoria de gênero”, mas é claramente algo a ser temido tal como se temeria, digamos, a perda em massa de vidas. Exigir o ensino de gênero nas escolas é, nas palavras dele, “colonização ideológica”. Ele acrescenta que “o mesmo foi feito pelos ditadores do século passado… Pensemos na Juventude Hitlerista”.

A decisão do Vaticano de usar uma retórica inflamada dessa espécie é, obviamente, bastante destrutiva, dadas a influência da instituição e a elevada estima em geral reservada ao papa Francisco. Se o gênero é uma bomba nuclear, precisa ser desativado. Se é o próprio diabo, todos aqueles que o representam devem ser expulsos da humanidade. O que o papa diz é claramente absurdo e perigoso, mas também bastante tático: quer seja representado como uma arma de destruição, como o diabo, como uma nova versão do totalitarismo, como pedofilia, quer como colonização, o gênero assumiu um número surpreendente de formas fantasmáticas, eclipsando tanto seu uso acadêmico quanto seu uso cotidiano. Como consequência, fazer circular a ideia dos poderes destrutivos do gênero é uma maneira de produzir um medo existencial que possa ser explorado por quem deseja ampliar os poderes estatais na esperança de retornar a uma ordem patriarcal “segura”. O medo é alimentado de modo que aqueles que prometem aliviá-lo possam emergir como forças de redenção e restauração. Ele é produzido e explorado para mobilizar as pessoas a apoiar a destruição de vários movimentos sociais e de políticas públicas entendidas como organizadas pelo gênero.

O medo (…) é produzido e explorado para mobilizar as pessoas a apoiar a destruição de vários movimentos sociais e de políticas públicas entendidas como organizadas pelo gênero

Produto

  • Quem Tem Medo do Gênero?
  • Judith Butler (trad. Heci Regina Candiani)
  • Boitempo
  • 280 páginas

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