Lugar de Mulher É Online e Onde Mais Ela Quiser — Gama Revista

Trecho de livro

Lugar de Mulher É Online e Onde Mais Ela Quiser

Vítima de ataques virtuais, especialista no combate à desinformação Nina Jankowicz traça manual para sobreviver num ambiente ainda hostil para as mulheres

Leonardo Neiva 07 de Outubro de 2022

Uma semana depois que a pesquisadora e escritora norte-americana Nina Jankowicz publicou seu livro sobre como as mulheres podem se defender de ataques na internet, ela mesma foi alvo de uma campanha de assédio online a nível nacional. “Talvez eu fosse a pessoa mais bem preparada do mundo para enfrentar esse abuso, mas ainda assim isso me abalou e deixou evidente o longo caminho a percorrer até atingir a igualdade online para mulheres e minorias”, conta no prefácio da versão brasileira de “Lugar de Mulher É Online e Onde Mais Ela Quiser” (Vestígio, 2022).

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Na obra, a autora — que chegou a ser diretora-executiva do Conselho de Governança da Desinformação, órgão criado pelo governo Biden — traça um manual de como proteger seus dados e sua privacidade online. Essas informações mais técnicas ela entremeia com sua experiência pessoal e a de outras mulheres que sofreram abusos constantes no ambiente digital, além de falar dos métodos violentos, ofensivos e assustadoramente organizados aplicados por pessoas que têm como principal objetivo constranger e humilhar suas vítimas.

Evitar compartilhar informações íntimas nas redes, mesmo que pareçam inócuas à primeira vista, usar gerenciadores de senhas, apagar seus contatos da internet e — a mais difícil de todas — lidar com ataques direcionados de trolls. Com apresentação da jornalista Patrícia Campos Mello, que foi alvo de apoiadores e do próprio presidente Jair Bolsonaro, o livro aborda essas e outras ações importantes para sobreviver nas redes sociais hoje, um ambiente especialmente perigoso e ofensivo para mulheres. “Meu maior desejo é que, quando acabar de ler este livro, você se sinta fortalecida”, afirma a autora no texto de introdução.


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Passei meus anos de formação na internet. Na maior parte do ensino médio, minha mãe limitou meu uso do computador a meia hora por dia, mas isso não me impediu de publicar blogs em qualquer plataforma que existisse na ocasião. Quando o Facebook ficou disponível para os alunos do ensino médio, fui uma das primeiras a aderir. Postei fotos dos bastidores de musicais que estava fazendo e, quando entrei na faculdade, reclamava de tarefas, empregos de verão e do clima na minha atualização de status e nas Notas do Facebook. Fazia upload regularmente de fotos com legendas que considerava divertidas sobre as minhas escapadas no campus, sem pensar que viveriam para sempre na internet ou na memória do computador de quem as tivesse baixado. Desconhecidos me marcaram em fotos quando minha banda percorreu o país se apresentando.

Não me arrependo de nada disso. Minha vivência na faculdade foi ótima, e, em comparação com as experiências universitárias da maioria dos jovens, o tempo que passei no campus foi extraordinariamente bem-comportado. Não existe nenhuma evidência fotográfica ou em vídeo que me mostre bebendo demais ou usando drogas porque nunca fiz isso. Existem, entretanto, muitas fotos pouco lisonjeiras exibindo meu antigo visual da faculdade (calças de moletom, camiseta e um coque emaranhado) ou agindo como a tremenda nerd que eu era e sou ainda, cantando a cappella com meu grupo da faculdade, estudando na Rússia e fazendo concertos com minha banda temática inspirada em Harry Potter.

Em 2020, um troll fez uma campanha de difamação compartilhando alguns vídeos dessas escapadas no Twitter. Ele usou uma conta alternativa depois que abordei a desinformação durante a eleição presidencial. Tentou me calar achando que ia me fazer passar vergonha, mas eu não estava envergonhada. Entretanto, fiquei preocupada. Aquele homem tinha cavado fundo no histórico de pesquisas do Google até encontrar aqueles vídeos. Selecionou os que me faziam parecer o menos séria e profissional possível e se deu ao trabalho de baixá-los, editá-los e compartilhá-los por meio de uma conta alternativa. Se ele tinha encontrado isso, o que mais teria encontrado? Meu número de telefone? Meu endereço? O endereço da minha mãe? Iria utilizá-los se eu desmascarasse outra de suas alegações? Eu daria de cara com ele ou um de seus acólitos na próxima vez que fosse dar uma volta com o cachorro?

Na noite em que esses vídeos foram compartilhados — o ápice de um fim de semana inteiro de uma campanha contra mim –, meus nervos e minhas emoções estavam em frangalhos. Me sentia insegura e sozinha. Eu me inscrevi e ao meu marido em um serviço antidoxing que, por uma taxa, limpa listas de telefones e outros registros públicos de suas informações pessoais online. Havia alguns anos já que eu era uma pessoa pública, e por isso cuidava da minha segurança física e tecnológica, mas aquela noite foi decisiva para meu engajamento online. Os dias de postagem de pensamentos passageiros ou evidências fotográficas de eventos mundanos da minha vida já tinham passado havia anos, mas aquele era o momento de um novo nível de curadoria e precaução.

Na noite em que esses vídeos foram compartilhados, meus nervos e minhas emoções estavam em frangalhos. Me sentia insegura e sozinha

Cindy Otis é uma das muitas mulheres em que me apoiei quando dos ataques online. Ela é ex-agente da CIA e especialista em desinformação. Não podemos nos esquecer de que a mídia social pode ser um ambiente positivo onde se constroem amizades. Cindy e eu nos conhecemos no Twitter quando estávamos nos preparando para lançar nossos livros de estreia. Desde então, mantemos contato por meio de uma sólida corrente de mensagens, comemorando nossos sucessos, lamentando dias que poderiam ter sido melhores e nos apoiando para enfrentar o que de pior a internet tem a oferecer.

Pouco antes das eleições de 2020, fomos chamadas como testemunhas para depor diante do U.S. House of Representatives Permanent Select Committee on Intelligence [Comitê Permanente de Inteligência da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos], presidido pelo representante da Califórnia Adam Schiff. O tema — “Desinformação, teorias da conspiração e ‘infodemia’: como deter a propagação online” — não poderia ter sido mais atual ou mais sujeito a atrair a crítica das próprias pessoas que espalham as informações perversas de que estamos tratando.

Na véspera da audiência, “Q”, o líder anônimo da seita conspiratória QAnon, postou uma mensagem no fórum 8kun sobre os processos. Começava com “Devemos mostrar a elas, Anon…?” e depois listava o nome de todas as testemunhas mulheres, encerrando com a frase “Alertado e preparado” e uma saudação ao “Q Team”. No dia seguinte, os seguidores de Q passaram as duas horas da audiência criticando nossa aparência, fazendo insultos antissemitas e alegando que éramos todas agentes da CIA. “Vocês veem o padrão aqui?”, perguntava uma postagem incluindo a foto das quatro testemunhas mulheres. “Observem o nariz largo”, alguém escreveu sobre mim. Outro implorava: “Mostrem os peitos!”. Cindy, que é cadeirante e se orgulha de ser advogada, foi ridicularizada grotescamente. Tampouco faltaram ameaças violentas ao confronto. Um usuário escreveu:

“Encontrem suas penas
Queime-as com a verdade!
Elas se expuseram.
Ao ataque!
Esta é uma batalha digital, e não seguiremos em silêncio”.

“Observem o nariz largo”, alguém escreveu sobre mim. Outro implorava: “Mostrem os peitos!”

Cindy já tinha bloqueado sua conta no Twitter. “Não preciso do estresse de ter de me preparar [para a audiência], testemunhar e, depois, lidar com o impacto das menções” no Twitter, ela me conta em uma conversa mais adiante. Não é uma decisão fácil de tomar. “Com certeza isso me fez [perder] oportunidades de expandir meu alcance e […] aumentar minha credibilidade”, ela diz. “Quando bloqueio a conta, ninguém pode compartilhar meu conteúdo, ninguém pode me seguir. Existem momentos em que você tem essa oportunidade. Sei que estou limitando meu progresso profissional toda vez que reduzo minha presença nas redes sociais. É a avaliação que faço sempre que priorizo minha segurança física, minha saúde mental.”

Como analista e investigadora de códigos abertos, cuja revelação de redes de desinformação ocupou as primeiras páginas do Washington Post e de outras publicações renomadas, Cindy é especialista em migalhas digitais que podem ser usadas para nos atingir. “Todo usuário de rede social precisa fazer escolhas na hora de decidir o quanto deseja ser autêntico online”, ela reforça. Os pormenores de nossa vida que nos tornam mais humanos — questões familiares, problemas de saúde e histórias pessoais –, “tudo isso pode ser usado para fazer de você um alvo, seja por meio de trolagem, seja por tentativas de recrutamento por serviços de inteligência”, adverte Cindy. “Deve-se avaliar a vulnerabilidade que deseja expor, pensando com cuidado sobre os detalhes pessoais que vai compartilhar e que podem colocá-la em uma posição comprometedora.”

Mas não são apenas os detalhes pessoais que podem metê-la em problemas; a higiene cibernética básica é fundamental para qualquer prática de segurança online. Não, não é a parte mais emocionante de sua proteção virtual, mas é a parte mais ligada à sua segurança física. Usando gerenciadores de senha, autenticação de dois fatores e ficando mais consciente dos detalhes aparentemente inócuos que compartilha nas redes sociais, você pode construir um fosso em torno do seu perfil público, acrescentando uma camada extra de segurança e paz de espírito enquanto trabalha e se faz ouvir.

Todo usuário de rede social precisa fazer escolhas na hora de decidir o quanto deseja ser autêntico online

Produto

  • Lugar de Mulher É Online e Onde Mais Ela Quiser
  • Nina Jankowicz
  • Vestígio
  • 168 páginas

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