Faca: Reflexões sobre um atentado
Escritor Salman Rushdie relembra em novo livro o ataque brutal que lhe tirou a visão, numa reflexão sobre vida, morte, amor e recomeços
Num relato honesto e potente, “Faca” (Companhia das Letras, 2024) conta pela ótica do escritor indiano naturalizado britânico, Salman Rushdie, um dos eventos mais traumáticos de sua vida: o ataque e esfaqueamento brutal que sofreu nas mãos de um jovem criminoso. Autor de clássicos literários polêmicos e adorados, como “Os Filhos da Meia-Noite” (Companhia das Letras, 1981) e “Os Versos Satânicos” (Companhia das Letras, 1988), Rushdie levou 15 facadas na manhã do dia 12 de agosto de 2022. Após uma lenta e demorada recuperação, o crime de ódio acabou lhe tirando a visão do olho direito e a mobilidade em uma das mãos, mas não a vida.
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A ironia, que o autor faz questão de apontar logo no início do livro, é que o ataque aconteceu em cima do palco onde estava prestes a dar uma palestra sobre a importância de garantir a segurança dos escritores. “Não havia seguranças à vista no anfiteatro naquela manhã (por quê, eu não sei), de forma que ele correu livre até mim”, relembra Rushdie, de forma tão lúcida quanto dolorosa. O pior é que, duas noites antes do evento, ele sonhou que era atacado dentro de um anfiteatro romano por um gladiador munido de uma lança, o que o levou a questionar a participação na palestra — acabou comparecendo assim mesmo, pois o dinheiro que ia receber o ajudaria a modernizar o ar-condicionado da sua casa.
Acostumado a viver com uma sentença de morte sobre a cabeça desde que o Aiatolá Khomeini, ex-líder iraniano, a proferiu na ocasião da publicação de “Os Versos Satânicos”, mais de 33 anos antes, o autor também conta que o que mais o intrigou ao ver o vulto assassino se aproximando foi a demora de tantas décadas para a chegada do carrasco.
Mas “Faca” não é apenas sobre o horror do ataque que sofreu ou mesmo a dificuldade da recuperação. Trata também do amor encarnado na dedicação da esposa e dos filhos, e ainda das contradições de uma humanidade que gera, de um lado, um homem capaz de cometer um crime terrível, e de outro, muitos dispostos a arriscar sem pestanejar as próprias vidas para proteger um ilustre desconhecido.
Às quinze para as onze do dia 12 de agosto de 2022, uma manhã ensolarada de sexta-feira, no norte do estado de Nova York, fui atacado e quase morto por um jovem com uma faca, logo depois que subi ao palco do anfiteatro de Chautauqua para falar sobre a importância de garantir a segurança dos escritores.
Eu estava com Henry Reese e sua esposa, Diane Samuels, criadores do projeto Cidade Asilo de Pittsburgh, que oferece refúgio a muitos escritores que correm perigo em seu próprio país. Essa era a história que Henry e eu íamos contar em Chautauqua: a criação de espaços seguros nos Estados Unidos para escritores de outros lugares do mundo e o meu envolvimento com o início do projeto. A ocasião fazia parte da série de eventos do Instituto Chautauqua intitulada “Mais que abrigo: a redefinição do lar
americano”.
Nunca tivemos essa conversa. Eu estava a ponto de descobrir, naquele dia, que o anfiteatro não era um lugar seguro para mim.
Ainda vejo o momento em câmera lenta. Acompanho com os olhos o homem que corre, salta da plateia e avança até mim. (Continuo olhando para ele. Não viro as costas em nenhum momento. Não há ferimentos em minhas costas.) Ergo a mão esquerda para me defender. Ele crava nela a faca.
Depois, vários golpes, em meu pescoço, peito, olhos, em tudo. Sinto as pernas cederem e caio.
Quinta-feira, 11 de agosto, foi minha última noite inocente. Despreocupados, Henry, Diane e eu tínhamos passeado pelos jardins do instituto e jantado no agradável 2 Ames, restaurante que fica na esquina de uma área verde chamada Bestor Plaza. Rememoramos a palestra que eu havia feito dezoito anos antes, em Pittsburgh, sobre o meu papel na criação da Rede de Cidades Internacionais de Refúgio. Eles tinham começado com o financiamento de uma pequena casa e patrocinaram um poeta chinês, Huang Xiang, que cobriu as paredes externas de sua nova morada com um poema em grandes letras chinesas em tinta branca. Aos poucos, Henry e Diane expandiram o projeto até terem toda uma rua de casas-asilo, Sampsonia Way, no lado norte da cidade. Eu estava contente de estar em Chautauqua para comemorar essa conquista.
O que eu não sabia era que o meu pretenso assassino já estava presente na área do Instituto Chautauqua. Tinha entrado com identidade falsa, um nome falso composto com os nomes reais de conhecidos extremistas muçulmanos xiitas, e, mesmo quando fomos e voltamos a pé do restaurante para a casa de hóspedes onde ficamos, ele também já estava lá em algum lugar, encontrava-se ali fazia algumas noites, circulando, dormindo mal, conferindo o local de seu pretendido ataque, sem ser notado por nenhuma câmera de segurança, nem guardas de vigilância. Podíamos ter cruzado com ele a qualquer momento.
Fui atacado e quase morto por um jovem com uma faca, logo depois que subi ao palco (…) para falar sobre a importância de garantir a segurança dos escritores
Não quero usar seu nome neste relato. Meu Agressor, meu pretenso Assassino, o Asno que Achava que sabia coisas sobre mim e com quem tive uma Aproximação quase letal… Eu me via pensando nele, talvez compreensivelmente, como uma Anta. No entanto, neste texto vou me referir a ele de modo mais decoroso como “o A.”. A maneira como o chamo na privacidade de minha casa é assunto meu.
Esse “A.” não se deu ao trabalho de se informar a respeito do homem que decidira matar. Ele próprio admitiu que mal havia lido duas páginas de meus escritos e assistira a alguns vídeos meus no YouTube, e isso lhe bastou. Daí podemos deduzir que qualquer que fosse a razão do ataque, não era sobre Os versos satânicos.
Neste livro, vou tentar entender a causa do ataque.
Na manhã de 12 de agosto, tomamos café da manhã cedo com os patrocinadores do evento, no terraço ensolarado do grande Hotel Athenaeum. Não gosto de comer muito de manhã e me limitei a um café com croissant. Encontramos o poeta haitiano Sony Ton-Aime, diretor de artes literárias do Instituto Chautauqua, que ia fazer nossa apresentação. Uma breve conversa literária sobre as virtudes e os defeitos de encomendar novos títulos pela Amazon. (Confesso que o faço às vezes.) Depois atravessamos o saguão do hotel, cruzamos a pracinha até a área dos fundos do anfiteatro, onde Henry me apresentou a sua mãe nonagenária, que era simpática.
Pouco antes de entrarmos em cena, me entregaram um envelope que continha um cheque, meu pagamento pela palestra. Eu o guardei no bolso interno do paletó e partimos para a apresentação. Sony, Henry e eu subimos ao palco.
O anfiteatro comporta mais de 4 mil pessoas. Não estava lotado, mas havia bastante gente. Sony nos apresentou rapidamente, diante de um leitoril à esquerda do palco. Eu estava sentado à direita. Então, com o canto do olho direito (a última coisa que meu olho direito enxergaria) vi o homem de preto correndo em minha direção pela lateral direita da plateia. Roupa preta, máscara preta no rosto. Vinha depressa e curvado: um míssil terrestre. Me pus de pé e observei sua chegada. Não tentei correr. Estava petrificado.
Com o canto do olho direito (a última coisa que meu olho direito enxergaria) vi o homem de preto correndo em minha direção pela lateral direita da plateia
Fazia 33 anos e meio que o aiatolá Ruhollah Khomeini emitira sua notória sentença de morte contra mim e todos os envolvidos na publicação de Os versos satânicos, e confesso que durante esses anos às vezes imaginei que meu assassino se ergueria de um dos muitos fóruns públicos e correria para cima de mim desse jeito. Então a primeira coisa que pensei ao ver seu vulto assassino correndo até mim foi: Então é você. Aí está você. Dizem que as últimas palavras do escritor Henry James foram: “Então chegou afinal, a ilustríssima”. A morte estava chegando para mim também, mas não me pareceu nada ilustre. Pareceu-me anacrônica.
A segunda coisa que pensei foi: Por que agora? Sério? Faz tanto tempo. Por que agora, depois de todos esses anos? O mundo com certeza tinha seguido em frente e a questão estava encerrada. Mas ali, avançando depressa, havia uma espécie de viajante do tempo, um fantasma assassino do passado.
Não havia seguranças à vista no anfiteatro naquela manhã (por quê, eu não sei), de forma que ele correu livre até mim. Eu estava simplesmente parado ali, olhando para ele, pregado no chão como um coelho bobo à luz dos faróis.
Então ele veio até mim.
Não vi a faca, ou pelo menos não me lembro dela. Não sei se era curta ou comprida, uma lâmina Bowie larga ou estreita como um estilete, uma faca de pão serrilhada ou uma curva em forma de crescente, ou um canivete de menino de rua, ou mesmo uma simples faca de trinchar roubada da cozinha da mãe. Não me importa. Foi bem eficiente essa arma invisível e cumpriu sua função.
Duas noites antes de voar para Chautauqua, sonhei que era atacado por um homem com uma lança, um gladiador num anfiteatro romano. Não havia plateia a bradar por sangue. Eu rolava no chão, tentava escapar dos golpes do gladiador e gritava. Não era a primeira vez que eu tinha esse sonho. Em duas ocasiões anteriores, quando o meu eu do sonho rolava transtornado, meu eu adormecido, também gritando, jogava seu corpo, o meu corpo, para fora da cama e eu acordava ao cair dolorosamente no chão do quarto.
Dessa vez não caí da cama. Minha esposa, Eliza, a romancista, poeta e fotógrafa Rachel Eliza Griffith, me acordou a tempo. Sentei-me na cama, abalado pela violência do sonho tão intenso. Parecia uma premonição (embora eu não acredite em premonições). Afinal, o evento em Chautauqua em que eu estava escalado para falar também era um anfiteatro.
A morte estava chegando para mim também, mas não me pareceu nada ilustre. Pareceu-me anacrônica
“Não quero ir”, eu disse a Eliza. Mas as pessoas contavam comigo, Henry Reese contava comigo, o evento vinha sendo anunciado fazia algum tempo, venderam entradas e eu ia ser generosamente remunerado para aparecer. Na verdade, tínhamos algumas grandes despesas domésticas a pagar; todo o nosso sistema de ar‐condicionado era velho, estava a ponto de quebrar e precisava ser renovado, portanto o dinheiro vinha em boa hora. “Melhor eu ir”, falei.
- Faca
- Salman Rushdie (trad. Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira)
- Companhia das Letras
- 232 páginas
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