Trecho de Livro: Esquizofrenias Reunidas, de Esmé Weijun Wang — Gama Revista

Trecho de livro

Esquizofrenias Reunidas

Escritora norte-americana Esmé Weijun Wang escancara sua luta com a esquizofrenia em livro sobre os desafios da convivência com transtornos mentais

Leonardo Neiva 31 de Maio de 2024

A escritora norte-americana Esmé Weijun Wang foi diagnosticada aos oito anos de idade com transtorno esquizoafetivo do tipo bipolar, alguns anos depois de viver suas primeiras alucinações e episódios psicóticos. Foi para abordar de forma corajosa os múltiplos significados de conviver com a doença que a jovem autora, considerada uma das mais promissoras da atual geração, lançou esses 13 ensaios que compõem “Esquizofrenias Reunidas” (Carambaia, 2024), obra que se tornou best-seller nos Estados Unidos.

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Primeiro livro de não-ficção da editora Carambaia, com tradução de Camila Von Holdefer, o volume aborda os limites dos distúrbios e transtornos mentais, desafiando estereótipos que ainda perduram sobre o tema. Ao narrar episódios em que acreditava não ter um rosto, sentia aranhas devorando seu cérebro ou visualizava todos os seus amigos como robôs, Wang se aprofunda na angústia de saber o que está acontecendo com você sem poder fazer muita coisa a respeito. Num testemunho ao mesmo tempo ousado e comovente, ela evita fugir até das questões mais dolorosas relacionadas à sua condição, que inclui também sintomas de transtorno de estresse pós-traumático e uma tendência a pensamentos suicidas.

O mais surpreendente para muitos talvez seja o fato de a escritora ter seguido, em meio a tudo isso, com uma genial trajetória acadêmica e profissional, atuando ao longo do tempo como pesquisadora, blogueira de moda, fotógrafa, artista visual, palestrante e até monitora de um acampamento de jovens bipolares. Num trecho da obra, Wang considera que o diagnóstico “talvez tenha sido especialmente desconcertante para mim porque meu cérebro havia sido um dos meus recursos mais valiosos desde a infância”.

Em “Esquizofrenias Reunidas”, ela escreve uma obra que serve tanto como guia para o leitor, incluindo um alto potencial de identificação com muitas das experiências narradas pela autora, quanto uma forma que Wang encontrou para lidar com os próprios desafios. Um relato que, nas palavras do psiquiatra e professor universitário Ary Gadelha, em seu texto de posfácio, é capaz de ampliar o nosso sentido da existência humana.


A esquizofrenia aterroriza. É o transtorno arquetípico da insanidade. A loucura nos assusta porque somos criaturas que anseiam por estrutura e sentido; dividimos os intermináveis dias em anos, meses e semanas. Almejamos maneiras de cercear e controlar a má sorte, a doença, a infelicidade, o desconforto e a morte — todos os desenlaces inevitáveis que fingimos que são tudo menos isso. Ainda assim, a luta contra a entropia parece incrivelmente fútil diante da esquizofrenia, que se esquiva da realidade em detrimento da própria lógica interna.

As pessoas falam dos esquizofrênicos como se estivessem mortos sem terem morrido, ausentes aos olhos dos que lhes são próximos. Esquizofrênicos são vítimas da palavra russa гибель (gibel), que é sinônimo de “ruína” e “catástrofe” — não a morte nem o suicídio, necessariamente, mas uma funesta suspensão da existência; deterioramos de um jeito que para os outros é doloroso. O psicanalista Christopher Bollas define a “presença esquizofrênica” como a experiência psicodinâmica de “estar com [um esquizofrênico] que aparentemente fez a travessia do mundo humano para o ambiente não humano”, porque outras catástrofes humanas são capazes de suportar o peso da narrativa humana — guerra, sequestro, morte —, mas o caos inerente à esquizofrenia resiste ao sentido. Tanto gibel quanto “presença esquizofrênica” tratam do sofrimento dos que estão próximos àquele que está sofrendo em primeiro lugar.

Porque o esquizofrênico sofre. Tenho andado psiquicamente perdida num quarto escuro feito breu. Há o chão, que não pode estar em nenhum outro lugar senão bem debaixo dos meus próprios pés anestesiados. Essas âncoras em forma de pés são os únicos pontos de referência confiáveis. Se fizer um movimento errado, vou ter de encarar a terrível consequência. Nesse abismo desolador, a chave é não ter medo, porque o medo, embora inevitável, só agrava a horrível sensação de estar perdida.

De acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH na sigla em inglês para National Institute of Mental Health), a esquizofrenia afeta 1,1% da população adulta dos Estados Unidos. O número cresce quando se considera o espectro psicótico completo, também conhecido como “as esquizofrenias”: 0,3% da população dos Estados Unidos foi diagnosticada com transtorno esquizoafetivo; 3,9% foram diagnosticados com transtorno de personalidade esquizotípica. Estou ciente das implicações da palavra “afeta”, que carrega um viés neurotípico, mas também acredito no sofrimento das pessoas diagnosticadas com esquizofrenias e da nossa mente atormentada.

A loucura nos assusta porque somos criaturas que anseiam por estrutura e sentido

Fui oficialmente diagnosticada com transtorno esquizoafetivo do tipo bipolar oito anos depois de ter vivenciado as primeiras alucinações, altura em que tive a primeira suspeita de um novo inferno no meu cérebro. A demora ainda me surpreende. Fui diagnosticada com transtorno bipolar em 2001, mas escutei a primeira alucinação auditiva — uma voz — em 2005, com vinte e poucos anos. Sabia o suficiente de psicologia anormal para compreender que pessoas com transtorno bipolar podiam vivenciar sintomas de psicose, mas não deveriam vivenciá-los fora de um episódio de humor. Comuniquei isso à dra. C, minha psiquiatra na época, mas ela jamais pronunciou as palavras “transtorno esquizoafetivo”, mesmo quando relatei que desviava de demônios invisíveis no campus e que observara uma locomotiva completamente formada rugir na minha direção antes de sumir. Comecei a chamar essas experiências de “distorções sensoriais”, uma expressão que a dra. C prontamente adotou na minha presença no lugar de “alucinações”, que é o que eram.

Alguns não gostam de diagnósticos, chamando-os, de forma grosseira, de caixas e rótulos, mas sempre encontrei consolo em condições preexistentes; gosto de saber que não estou na vanguarda de uma experiência inexplicável. Durante anos, sugeri à dra. C que transtorno esquizoafetivo talvez fosse um diagnóstico mais preciso para mim do que transtorno bipolar, mas em vão. Acho que ela estava receosa de me transferir oficialmente do terreno mais comum dos transtornos de humor e ansiedade para os confins das esquizofrenias, o que me sujeitaria à autocensura e ao estigma dos outros — incluindo aqueles com acesso ao meu prontuário. A dra. C continuou a tratar minha condição com estabilizadores de humor e antipsicóticos pelos oito anos seguintes, sem sugerir uma única vez sequer que minha doença pudesse ser outra coisa. Então comecei a desmoronar de verdade, e mudei para uma nova psiquiatra. Com relutância, a dra. M me diagnosticou como tendo transtorno esquizoafetivo do tipo bipolar, que continua a ser meu diagnóstico psiquiátrico principal. É um rótulo com o qual por ora estou bem.

Um diagnóstico é reconfortante porque fornece um contexto — uma comunidade, uma linhagem — e, se a sorte estiver a caminho, um tratamento ou uma cura. Um diagnóstico diz que sou louca, mas de um jeito específico: um que tem sido vivenciado e registrado não só em tempos modernos, mas também pelos antigos egípcios, que descreveram uma condição similar à esquizofrenia no Livro dos Corações e atribuíram a psicose à perigosa influência de um veneno no coração e no útero. Os antigos egípcios entendiam a importância de observar padrões de comportamento. Útero, histeria; coração, associações frouxas. Viram a utilidade de dar nomes a esses padrões.

Fui oficialmente diagnosticada com transtorno esquizoafetivo do tipo bipolar oito anos depois de ter vivenciado as primeiras alucinações

Meu diagnóstico de transtorno esquizoafetivo do tipo bipolar resultou de uma série de mensagens entre mim e minha psiquiatra, enviadas por meio da minha página no site do plano de saúde.

De: Wang, Esmé Weijun
Enviada: 19/2/2013 9h28
Para: Dra. M

infelizmente não tenho andado bem faz alguns dias (desde domingo)

no final do domingo estava chateada porque o dia tinha passado numa “névoa”, ou seja, não conseguia descrever o que tinha feito o dia inteiro apesar de ter [elaborado] minuciosamente uma lista do que tinha feito naquele dia, não conseguia me lembrar de ter feito nada, era como se tivesse “perdido a noção do tempo”; também estava muito cansada e tirei 2 cochilos (não tomei mais Klonopin do que o normal naquele dia, na verdade diria que tomei menos, talvez 2 mg)

na segunda me dei conta de que estava tendo o mesmo problema; dificuldade de funcionar no trabalho, especialmente com a concentração; encarava a mesma frase por um bom tempo e ela não fazia sentido; tirei um cochilo num sofá no escritório; de novo senti que o dia tinha passado sem eu existir nele; lá pelas 16 não sabia bem se eu era real ou se qualquer coisa era real, também me preocupava se tinha um rosto, mas não queria olhar para ver se tinha um rosto e estava inquieta com a perspectiva de outros rostos. sintomas cont. hoje

De: Dra. M
Recebida: 19/2/2013 12h59

Certo, só releia isso de novo — definitivamente parece que o problema é mais a psicose. Aumentar o Seroquel pode ser a saída (para um comprimido e meio — a dose máxima é de 800 mg). Acho que você pode ter transtorno esquizoafetivo — uma variante levemente diferente de bipolar I.

Aliás, você leu The Center Cannot Hold [O centro não está mais lá], da Elyn Saks? Tenho curiosidade de saber o que você acha dele

Anos depois, leio as entrelinhas da curta resposta da dra. M. Ela descreve o transtorno esquizoafetivo como “uma variante levemente diferente de bipolar I”, mas não especifica o que quer dizer com “variante” — uma variante do quê? Tanto a esquizofrenia quanto o transtorno bipolar são considerados Eixo I no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, transtornos clínicos; talvez “variante” se refira àquele reino enorme que inclui os ecossistemas da depressão e da ansiedade na própria geografia.

Um diagnóstico é reconfortante porque fornece um contexto — uma comunidade, uma linhagem — e, se a sorte estiver a caminho, um tratamento ou uma cura

A dra. M lança, como se fosse um adendo, uma menção ao livro de memórias sobre a esquizofrenia mais famoso dos últimos trinta anos, escrito pela ganhadora de uma bolsa MacArthur Elyn R. Saks. A menção a Saks é um possível amortecedor para a má notícia de um diagnóstico terrível. Também pode ser vista como a maneira de a dra. M enfatizar a normalidade: você pode ter transtorno esquizoafetivo, mas ainda podemos falar de livros. Quatro anos depois, o transtorno esquizoafetivo será o que Ron Powers, em sua robusta análise da esquizofrenia intitulada No One Cares about Crazy People [Ninguém liga pra gente louca], chamará várias vezes seguidas de um diagnóstico pior do que a esquizofrenia, e, quatro anos depois, eu desenharia pontos de exclamação nas margens e discutiria com Powers a lápis. E ainda assim há também uma predecessora para eu admirar: Saks, que usou o dinheiro da bolsa MacArthur para criar um think tank para questões que afetam a saúde mental, cuja vocação foi moldada pela esquizofrenia. Os que gostam de cacarejar que “tudo acontece por um motivo” podem ver na pesquisa e no ativismo de Saks, que provavelmente nunca teriam se desenvolvido tivesse ela nascido neurotípica, parte do plano de Deus

Produto

  • Esquizofrenias Reunidas
  • Esmé Weijun Wang (trad. Camila Von Holdefer)
  • Carambaia
  • 256 páginas

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