Trecho de Livro: Aurora — Gama Revista

Trecho de livro

Aurora

Na semana do Dia da Luta Antimanicomial, livro defende lugar de destaque de artista que já foi interna de hospitais psiquiátricos para história da arte brasileira

Leonardo Neiva 20 de Maio de 2022

Apesar de suas pinturas terem passado por exposições em grandes museus e centros culturais brasileiros, do Masp ao MAR, no Rio de Janeiro, e até em Paris, Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) nunca protagonizou uma exposição individual ou foi alvo de estudos exclusivamente sobre a sua arte. Tendo ficado boa parte da vida internada em hospitais psiquiátricos, a artista, que também já foi prostituta e empregada doméstica, é presença marcada na maioria dos materiais e pesquisas que envolvem arte e loucura, mas raramente é citada ao se falar na história da arte no Brasil.

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Mas essa realidade pode mudar em breve. Ao menos é o que defendem a historiadora Silvana Jeha e o psicanalista Joel Birman, autores de “Aurora – Memórias e delírios de uma mulher da vida” (Veneta, 2022). Publicado na semana em que se celebra o Dia da Luta Antimanicomial, é o primeiro extenso trabalho a se debruçar sobre a obra de Aurora com um olhar para sua importância central na narrativa artística do país. “Puta, louca e finalmente artista, ela condensa em sua obra algo que diz respeito a todas as mulheres”, escreve a dupla na apresentação da edição.

Com uma obra que engloba mais de 200 quadros, os autores também posicionam a produção de Aurora como ícone da história da condição feminina na sociedade, uma narrativa feita de “carne, osso, gritos, sangue, sussurros e sentimentos dolorosos”. Seus quadros gritam, abordando temas como família, sexo, drogas e uma intensa revolta contra a violência e a opressão sofridas pelas mulheres.

Em 1955, a artista acabou passando por uma lobotomia que pode ter alterado seu destino – ela morreu quatro anos depois – e o de suas obras, mas não a memória que deixou. Ainda nas primeiras páginas do livro, Jeha e Birman manifestam o desejo de que a obra, centrada em sua vida e produção artística, “contribua para afrouxar a camisa de força” que ainda embala muitos dos sujeitos da nossa história, sobretudo mulheres. “E que a expressão artística de Aurora passe a fazer parte de uma outra história da arte, da mulher, da loucura, da prostituição.”

A pintora Aurora Cursino dos Santos em uma exposição de suas obras

Avesso do avesso

Nascida em 1896, estudou até o terceiro ano primário, em que aprendeu sem dificuldades a ler e escrever. Gostava especialmente de leitura, lembrando-se de diversos autores e publicações. Gostava também de música popular e de música clássica. Afirmou que na mocidade teria tido aulas de pintura. Cresceu em casa, sob influência do pai, ocupando-se de prendas domésticas, e por imposição deste foi obrigada a casar-se com um homem de quem não gostava, ficando um dia com o marido. Diz que seu sofrimento começou com o casamento. Entregou-se a uma vida mundana cheia de prazeres, prostituindo-se. Acumulou dinheiro e viajou para Portugal a passeio.

Com o passar dos anos começou a desiludir-se com esse tipo de vida e procurou outra atividade para sustentar-se. Trabalhou como doméstica em diversas casas, mas não se fixava em nenhum emprego. Por último começou a viver em albergues noturnos. A partir daí foi internada no Hospital Psiquiátrico de Perdizes, onde permaneceu por três anos. Em 1944, com 48 anos de idade, foi internada no Hospital do Juquery. Começou a frequentar a Escola de Artes Plásticas em 1948. Sua intensa produção consistia em pinturas com cores vivas, mesclando fatos de sua vida com outros imaginários, inserindo também textos e denominando personagens. A última fase de sua pintura evidencia a grande incidência de temas sexuais, de violência e crimes. Pintou até o início de 1958. […] Foi lobotomizada em 1955. Aurora morreu em 30 de outubro de 1959. (Aurora…, 2000, p. 68)

Pintou até o início de 1958. […] Foi lobotomizada em 1955

Aurora Cursino dos Santos (1896-1959) trabalhou como prostituta provavelmente a partir da década de 1910 até pelo menos a década de 1930, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, e talvez em algumas cidades da Europa. Com o fim dessa atividade, é possível que tenha realmente tentado ganhar a vida como empregada doméstica. Não se firmando nesse trabalho, sem renda e sem possibilidade de ter um teto, passou a dormir em albergues noturnos. Acabou a vida em hospitais psiquiátricos, como tantos que enlouqueciam devido ao desamparo e desajuste.

Entre 1948 e 1949, ela começou a frequentar a oficina de pintura improvisada no Hospital Psiquiátrico do Juquery, criada por Osório César com Mario Yahn, nomeada em 1949 de Seção de Artes Plásticas, quando ganhou instalações fixas numa antiga sala de banho. Na década de 1950, a seção seria renomeada como Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery. A primeira orientadora artística do ateliê foi a pintora Maria Leontina, que certamente colaborou bastante com o fazer pictórico de Aurora. Parte dos quadros de Aurora são datados entre 1950 e 1952, período, ou parte dele, em que Maria Leontina esteve no ateliê (Ferraz, 1998, p. 65 et seq.). Não se sabe até que ano Aurora pintou, e se a cirurgia de lobotomia à qual foi submetida mudou sua pintura. Provavelmente, sim. Aurora criou um conjunto considerável de pinturas a óleo, em geral sobre papel-cartão ou refugos de embalagem industrial. Cerca de duzentas delas pertencem ao Museu Osório César, localizado no hospital Franco da Rocha, e as demais estão espalhadas em coleções particulares, às quais não tivemos acesso. É preciso enunciar de forma preliminar que essas pinturas, mais do que uma contribuição inegável à arte produzida em hospitais psiquiátricos ou por loucas e loucos — uma tradição, como se sabe, brasileira e também europeia –, podem e devem ser incorporadas definitivamente à história da arte, bem como à história da mulher, isto é, à história do contar-se da condição feminina em sociedade, na medida em que é a narrativa de uma minoria política que, no entanto, representa efetivamente mais da metade da população brasileira.

…essas pinturas, mais do que uma contribuição inegável à arte produzida em hospitais psiquiátricos ou por loucas e loucos, podem e devem ser incorporadas definitivamente à história da arte

Além disso, não se trata apenas de prostitutas, loucas e mulheres transgressoras, que são assim socialmente negativadas e desqualificadas. Queremos nos referir de forma mais fundamental, assim, à questão crucial da expressão de todas as mulheres, nos registros da arte e da sociedade. Com efeito, se as chamadas histéricas estão berrando e se contorcendo de maneira lancinante para dar um basta à opressão de seus corpos convulsivos de paixão na virada do século XIX para o XX, ao longo desse último século houve uma série de desdobramentos que vêm conduzindo as mulheres a conquistarem mais direitos, ainda que a igualdade de gênero esteja bem distante no horizonte. Portanto, é preciso dizerem alto e bom som, sem meias palavras, que essa história tem mais carne, osso, gritos, sangue, sussurros e sentimentos dolorosos, como se materializam efetiva e diretamente na expressão de si de Aurora, e que seu martírio representa, infelizmente, uma grande coletividade feminina. Não se pode esquecer, pois isso seria ética e politicamente imperdoável, que ser puta, mãe, esposa e filha — enfim, ser mulher — foi e ainda é uma experiência trágica, que inclui muitas vezes a violência, não apenas simbólica, mas também física, podendo chegar ao feminicídio, como ocorre frequentemente no Brasil da atualidade.

Assim, se do ponto de vista oficial, que articula intimamente a leitura dos bons costumes e a leitura psiquiátrica num viés estritamente normativo — para evocar Foucault em Vigiar e Punir, de 1974, e no seu curso “Os anormais”, de 1975 –, não resta qualquer dúvida de que é necessário narrar outra história de Aurora, que existe certamente de forma fragmentar e lacunar nos arquivos policiais e psiquiátricos. Tentamos trazê-la à tona através de seus quadros, com toda a clareza possível, para se contrapor à história oficial. Esse seu outro ladoda história se articula ao que Foucault promoveu em “A história dos homens infames”, para fazer falar como estratégia de contrapoder e de resistência os prisioneiros do Antigo Regime, nos Hospitais Gerais franceses – não se restringindo aos relatos e arquivos produzidos pelo poder. Se para o poder oficial constituído Aurora é certamente uma anti-heroína, de corpo inteiro — seja pelo discurso psiquiátrico, policial ou da moral e dos bons costumes –, é preciso dar-lhe voz e visibilidade, para enunciar de forma vibrante “do avesso do avesso” (aludindo ao verso do compositor Caetano Veloso), numa “outra volta do parafuso” (para remeter ao título da novela do escritor estadunidense Henry James).

Sem título (sem data), óleo sobre papel

Essas duas imagens são o duplo de Aurora: a [provável] mãe e a puta

Brazileira (1950), óleo sobre papel

Nos dois quadros onde se lê A Brazileira, dois arquétipos de mulher: a puta e a mãe. No segundo, no canto direito entrevemos a palavra “chicletes”, pois os internos dobravam caixinhas de goma de mascar no Juquery, e o refugo dos cartões sem corte era aproveitado na escola de pintura.

A primeira pintura parece representar o Largo de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro, endereço da grande loja de departamentos A Brazileira. No meio da praça existe a estátua do “Patriarca da Independência”, José Bonifácio. A mulher da vida ocupa o espaço noturno, enquanto todas as famílias consumidoras da loja dormem, e a estátua do grande fidalgo se torna sua companhia. História oficial e subterrânea se encontram no escuro da cidade.

Podemos conjugar essas duas pinturas como arquétipos femininos: a brasileira mãe de família distinta, que vive à luz do dia, no espaço sagrado do lar, e a brasileira pública, da rua, numa luminosidade crepuscular. A pública leva algo na cabeça, e na praça uma estátua é, ao mesmo tempo, sua companheira e sombra. Aurora subverte com a sua alegoria emblemática as coordenadas e linhas de força do monumento, monumentalizando ao contrário, ao avesso, a mulher da vida, a prostituta que ocupa o espaço público e noturno. A mulher do lar, aquela que frequenta a loja A Brazileira de dia, acompanhada de forma eloquente por uma criança, é espreitada por um fantasma parecido com a pintora no fundo do quadro. Essas duas imagens são o duplo de Aurora: a [provável] mãe e a puta.

Produto

  • Aurora
  • Silvana Jeha e Joel Birman
  • Veneta
  • 168 páginas

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