Trecho de livro

Eu Queria Ser Cássia Eller

A cantora surge em toda sua multiplicidade na biografia do jornalista Tom Cardoso, que explora as diferentes fases de Eller, da infância ao estrelato

Leonardo Neiva 21 de Novembro de 2025

“A menina tímida, a filha, a ovelha negra da família, a lésbica, a amante, a mãe, a cantora, a amiga”, é como Maria Eugênia Vieira Martins, companheira de Cássia Eller (1962-2001) até o fim da vida, a descreve no prefácio da nova biografia da cantora. Segundo ela, todas essas Cássias e outras mais estão presentes na obra do jornalista e escritor Tom Cardoso, “Eu Queria Ser Cássia Eller: Uma biografia” (HarperCollins, 2025). Biógrafo de personalides como o jogador Sócrates (1954-2011) e músicos como Caetano Veloso e Nara Leão (1942-1989), o jornalista aqui conta a trajetória de Eller desde a infância no Rio e em Belo Horizonte até o status de estrela da música brasileira.

Filha de um pai militar, indisciplinado e mulherengo, que desde cedo buscou “endireitar” a sexualidade da filha, e de uma mãe cantora que incentivou sua musicalidade, Eller se mostra desde cedo um caldeirão efervescente de talento e carisma, conquistando admiradores por onde passa. Já iniciando a carreira como cantora, ela se descobre e se reinventa numa Brasília em que topar com Renato Russo em meio a uma bebedeira daquelas é o tipo de coisa que se torna comum em seu cotidiano.

A obra traz trechos em que a cantora aborda a dificuldade de aceitar a própria sexualidade e fala de sua experiência com a maternidade de Chicão. Com a morte da artista, o reconhecimento legal da companheira Maria Eugênia como mãe da criança se tornaria um dos marcos para os direitos LGBTQIA+ no Brasil. Com depoimentos de amigos e familiares, além de nomes como Nando Reis, Zélia Duncan e Oswaldo Montenegro, o livro faz também um retrato do auge musical de Eller: sua apresentação no Rock in Rio, o Acústico MTV e momentos polêmicos como a expulsão do palco quando ela abria o show dos Rolling Stones. Você lê um trecho da obra a seguir.


A menina que chegara a Brasília se encantando com a atmosfera de ampla liberdade queria aproveitar a nova fase da vida sem ter compromisso com absolutamente nada. No Beirute, perdeu as contas das vezes que precisou ser carregada pelos amigos após se entupir de cachaça com guaraná. Numa noite de bebedeira, sem ninguém para ampará-la, sentou-se no meio-fio ao lado de um sujeito que estava abraçado à namorada, também de porre.

Cássia achou o cara esquisito, mas interessante. Engataram uma conversa sobre poesia. Ele falava compulsivamente enquanto rabiscava anotações num caderninho. Ela se cansou um pouco de tanta falação e pulou fora. Mais tarde, relatou o encontro a amigos e, ao descrever aquele sujeito e seu inseparável caderninho, soube que se tratava de Renato Russo, vocalista da Aborto Elétrico, banda de punk rock da cidade recém-dissolvida.

Se o futuro vocalista da Legião Urbana e autor de um dos maiores sucessos da carreira de Cássia não se mostrasse tão prolixo e agitado, aquele encontro no meio-fio em frente ao Beirute poderia ter se transformado num trisal. No verão de 1983, Cássia estava tão interessada em homens quanto em mulheres. Na verdade, mais em homens.

“Trepei com um cara pela primeira vez quando tinha 23 anos. Foi uma época bem legal, quando eu só queria homem.” Com o tempo, ela começou a enxergar alguns impedimentos. “Acontece que botei na minha cabeça que seria muito complicado um relacionamento meu com um homem. Fico muito amiga dos caras e com o tempo eles não me veem mais como mulher. Não fico de nhe-nhe-nhem, não faço joguinhos, falo e faço o que eu quero, entendeu?”

Brinco com o comportamento das pessoas, gosto do machismo, não acho que seja ruim

Com os amigos homens, Cássia podia ser escrachada, politicamente incorreta — raramente era patrulhada, o que não acontecia quando dizia algo considerado absurdo pelas feministas da cidade. O que ela fazia com certa frequência em Brasília.

“Brinco com o comportamento das pessoas, gosto do machismo, não acho que seja ruim. Eu adoro imitar bofe. Passa uma mulher e eu falo: ‘Gostosa!’. Ou então coço o saco. Não sou de pegar menina assim, mas às vezes eu falo só pra sacanear: ‘E aí, gata?’. Acho que deve ser interessante ter um pau, aquela sensação de enfiar, né? Se eu tivesse um pau, botava ele pra fora o dia inteiro.”

Ela logo perderia interesse pelos meninos. Em reunião no apartamento de uma amiga, Marilene, Cássia conheceu de uma só vez duas mulheres que exerceriam enorme influência em sua vida e carreira. Duas paixões avassaladoras: uma amorosa e outra profissional. Um despretensioso jantar que guiou Cássia para um caminho sem volta. A partir dali, ela teria, sim, uma obrigação, uma tarefa a seguir: dar conta de seu enorme talento artístico.

E esse dom se manifestou após a quarta dose de cachaça com guaraná entornada naquela noite. A pianista e mestre em música Dora Galesso conheceu Cássia no momento em que ela imitava outros cantores numa roda de violão. Quando começou a cantar “Ne me quitte pas”, no estilo de Nina Simone e de forma engraçada, Dora riu, mas depois ficou séria: acabara de achar a vocalista para sua banda de rock.

Considerada uma das mais versáteis e irreverentes artistas da nova cena musical de Brasília, Dora pouco antes tinha dispensado os três americanos com quem formara uma banda country, a Wood Shadow. Arrependida, queria cantar música brasileira, de preferência com uma pegada bem rock’n’roll, e não sucessos de Johnny Cash.

Completava-se assim o grupo Malas & Bagagens, liderado por Dora Galesso no piano, moogie e vocal — ela cantava, mas não possuía gogó suficiente para segurar os rocks mais pesados. Não era o caso da amiga de Marilene, que sem esforço algum levava a voz para onde quisesse. Dora tinha encontrado, enfim, sua vocalista solo, que tocaria guitarra base, além de ajudar na percussão.

A jornalista Elisa de Alencar também se surpreendeu naquele jantar ao conhecer duas Cássias que se projetaram diante dela. Primeiro, a garota tímida, que mal abria a boca, meio invocada, mas ao mesmo tempo doce como uma criança. Bastou Marilene pedir para que ela imitasse Maria Bethânia para tudo mudar. Pelo avesso.

Cássia aceitou os dois convites recebidos naquela noite: para ser a vocalista do Malas & Bagagens e para dormir na casa de Elisa

Uma mulher se apoderou da outra. A tímida deu lugar a uma artista sem qualquer traço de inibição. Depois de improvisar uma hilária versão de um hit da época, “Óculos”, dos Paralamas do Sucesso, interpretado ao jeito de Bethânia, Cássia encarnou uma versão punk do cantor brega Lindomar Castilho.

Cássia aceitou os dois convites recebidos naquela noite: para ser a vocalista do Malas & Bagagens e para dormir na casa de Elisa. O segundo convite não foi aceito prontamente. Estava com receio da reação da mãe. Cansada das atitudes de Altair, que continuava arrumando encrenca no trabalho, Nanci assumira de vez as rédeas na criação dos quatros filhos. Pelo último ato de indisciplina, outra agressão a um oficial, o sargento havia passado uma longa temporada preso no quartel, sem receber o soldo.

Decidida a se virar sozinha, Nanci ingressou em um curso de auxiliar de enfermagem. Entregue à dupla jornada, sem tempo para absolutamente mais nada, exigiu dos filhos comportamento exemplar, cobrança dirigida em especial a quem dava mais trabalho: a primogênita.

A determinação de Nanci veio bem na hora em que Cássia pretendia ser solidária à mãe. Não queria aborrecê-la e só aceitou dormir na casa de Elisa depois que a jornalista prometeu falar com Nanci para acalmar as coisas.

Cearense de Crato, seis anos mais velha que Cássia, Elisa conciliava as atividades de jornalista e de produtora artística. Disciplinada, não lhe faltava trabalho em Brasília. O salário de assessora de imprensa do diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), somado ao que recebia pela produção de shows, lhe possibilitava dividir com outras três pessoas o aluguel de uma casa confortável no Lago Sul, região nobre da cidade.

Elisa cumpriu a promessa de explicar pessoalmente a Nanci os motivos da ausência da filha na noite anterior. A mãe de Cássia abriu a porta irritada, pronta para dar um longo sermão. A jornalista a tranquilizou, disse que fizera o convite a Cássia porque achava perigoso ela voltar para casa de madrugada e sozinha. Nanci sentiu confiança e desde então passou a ver com bons olhos o início do namoro.

Que Cássia fizesse suas escolhas, sem a interferência de ninguém. Era o que já estava acontecendo

Com tantos problemas para resolver, desistiu de implicar com a orientação da filha, que estava adulta e deixara de ser a adolescente de Lins de Vasconcelos. Além do mais, Nanci, como a maioria das mulheres da família, atravessara boa parte da vida abrindo mão dos próprios sonhos para viver os dos outros. Que Cássia fizesse suas escolhas, sem a interferência de ninguém. Era o que já estava acontecendo.

Produto

  • Eu Queria Ser Cássia Eller: Uma biografia
  • Tom Cardoso
  • Harper Collins
  • 312 páginas

Caso você compre algum livro usando links dentro de conteúdos da Gama, é provável que recebamos uma comissão. Isso ajuda a financiar nosso jornalismo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação