Trecho de Livro: Belos Fracassados, de Leonard Cohen — Gama Revista

Trecho de livro

Belos Fracassados

Em um de seus livros mais elogiados, o músico Leonard Cohen ecoa na literatura a beleza sombria e irônica de seus versos

Leonardo Neiva 01 de Março de 2024

O que muita gente que hoje escuta no repeat canções como “Dance Me To the End of Love”, “Hallellujah” e “Suzanne” não sabe é que o cultuado músico canadense Leonard Cohen (1934-2016) foi um poeta e romancista de algum sucesso antes de se aventurar pela música. E seu segundo romance, “Belos Fracassados” (Todavia, 2024), publicado originalmente em 1966, ganha só agora sua primeira edição no Brasil, com tradução de Daniel de Mesquita Benevides.

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Claro, não chega a ser nenhuma surpresa, considerando a inclinação literária que Cohen sempre imprimiu em suas canções. Isso sem contar o preciosismo e nível de detalhes que guardava para muitas composições, admitindo que chegou a levar anos para escrever uma única música.

À primeira vista, a leitura de “Belos Fracassados” pode parecer um exercício desafiador. Afinal, quem é a Catherine Tekakwitha a quem o narrador se dirige de forma tão direta e enigmática? E por que o narrador não tem nome, e seu melhor amigo e mentor é definido apenas por uma letra: F.? Composto por quatro personagens centrais, dentre os quais um é uma mítica santa virgem do povo mohawk e outros dois não estão exatamente no mundo dos vivos, o livro na verdade não é tão hermético ou nonsense quanto parece.

Também já estão presentes a qualidade da escrita de Cohen e o humor sombrio e irônico que se tornou uma de suas marcas registradas. Publicado pouco antes da guinada do artista para a música, “Belos Fracassados” foi escrito sob o efeito constante de drogas e gerou controvérsia no lançamento ao tratar de temas espinhosos como estupro, escatologia e a homossexualidade, um tabu para a sociedade da época.


Foram os franceses que deram nome aos iroqueses. Dar nome a alimentos é uma coisa, nomear um povo é outra; não que o povo em questão pareça se importar com isso. E se nunca se importou, pior para mim: estou mais do que disposto a enfrentar as supostas humilhações sofridas por povos indefesos, como é evidente no meu trabalho com os A——s. Por que me sinto tão imprestável quando acordo de manhã? Já pensando se conseguirei cagar ou não. Meu corpo vai funcionar? Meu intestino vai se mexer? Será que a velha máquina deixou a comida marrom? É alguma surpresa eu ter escavado bibliotecas atrás de informações sobre vítimas? Vítimas fictícias! Todas as vítimas que não matamos ou prendemos são fictícias. Vivo num prédio pequeno. O poço do elevador é acessível por uma passagem no subsolo. Quando eu estava no centro da cidade preparando um artigo sobre os lemingues, ela se esgueirou para o poço do elevador e se sentou, com os braços enlaçando os joelhos dobrados (ao menos foi o que a polícia conseguiu determinar do que sobrou). Chego em casa toda noite às vinte para as onze, tão pontualmente quanto Kant. Minha cara esposa queria me dar uma lição de moral. Você e suas vítimas fictícias, costumava dizer. Quase imperceptivelmente, sua vida foi ficando cinzenta, e eu juro que, naquela mesma noite, provavelmente no momento exato em que ela estava sendo esmagada pelo elevador, dei uma pausa na pesquisa sobre os lemingues, fechei os olhos e lembrei dela jovem e radiante, a luz do sol dançando em seus cabelos enquanto ela me chupava numa canoa no lago Orford. Éramos os únicos que viviam no subsolo, éramos os únicos que controlavam o pequeno elevador naquelas profundezas. Mas ela não deu nenhuma lição de moral, não o tipo de lição que pretendia dar. Um entregador do Bar-B-Q fez o serviço sujo quando confundiu o endereço num pacote quente de papel marrom. Edith! F. passou a noite comigo. Às quatro da manhã ele confessou que transou com Edith umas cinco ou seis vezes nos vinte anos em que conviveu com ela. Ironia! Pedimos frango no mesmo lugar e falamos sobre minha pobre esposa esmagada, uma simples amizade. E eu tinha a opção de subir no alto da montanha da experiência, lá longe, e acenar docemente com minha cabeça chinesa para aquele casinho de amor? Seu cuzão idiota, eu disse, quantas vezes, cinco ou seis? Ah, F. sorriu, a dor nos torna precisos!

No momento exato em que ela estava sendo esmagada pelo elevador, dei uma pausa na pesquisa sobre os lemingues, fechei os olhos e lembrei dela jovem e radiante

Saiba então que os iroqueses, irmãos de Catherine Tekakwitha, foram nomeados pelos franceses. Eles se autodenominavam hodenosaunee, ou seja, O Povo da Casa Comprida. Desenvolveram uma nova dimensão de conversação. Acabavam cada fala com a palavra hiro, que significa: como eu disse. Isso fazia com que cada pessoa assumisse totalmente a responsabilidade por se intrometer no inarticulado murmúrio das esferas. A hiro eles acrescentavam a palavra koué, expressão de alegria ou agonia, dependendo se era cantada ou gritada. Buscavam, assim, rasgar a cortina misteriosa que se interpõe na conversa dos homens: sempre que alguém terminava de falar, dava um passo atrás, simbolicamente, e tentava subverter o encanto do intelecto com a voz da emoção verdadeira. Ó Catherine Tekakwitha, fale comigo em Hiro-Koué. Não tenho o direito de lamentar o que os jesuítas disseram aos escravos, mas na fresca noite lourenciana que tento evocar, instalados em nosso foguete de bétula e unidos em carne e espírito por laços ancestrais, eu te faço minha velha pergunta: afinal, as estrelas são pequenas, ó Catherine Tekakwitha? Responda em Hiro-Koué, por favor. Naquela noite eu e F. discutimos por horas. Não percebemos quando amanheceu, pois a única janela daquele apartamento miserável dava para a ventilação do poço do elevador.

— Seu cuzão imbecil, quantas vezes, cinco ou seis?

— Ah, a dor nos torna precisos!

— Cinco ou seis, cinco ou seis, cinco ou seis?

— Repare, meu amigo, o elevador está funcionando de novo.

— F., não me venha com seu misticismo de merda.

Ah, a dor nos torna precisos!

— Sete.

— Sete vezes com Edith?

— Correto.

— Você tava tentando me poupar com uma mentira opcional?

— Correto.

— E o número sete pode ser só mais uma opção.

— Correto.

— Mas você tava tentando me poupar, não tava? F., você acha que eu consigo perceber o que é diamante no meio dessa merda?

— É tudo diamante.

— Vai tomar no cu, seu comedor de mulher alheia, essa resposta não serve de conforto nenhum. Você estraga tudo com suas santas pretensões. Essa manhã tá péssima. Minha mulher não tá em forma pra ser enterrada. Vão endireitá-la em alguma bosta de hospital de bonecas. Como é que vou me sentir no elevador, quando for para a biblioteca? Não me venha com essa merda de é tudo diamante, enfia no seu orifício oculto. Ajude um camarada. Não coma sua mulher por ele.

E assim a conversa avançou pela manhã sem que a gente percebesse. Ele se agarrou ao argumento dos diamantes e eu queria acreditar nele, Catherine Tekakwitha. Conversamos até cansar e então nos masturbamos um ao outro, como a gente fazia quando éramos garotos, no bosque onde hoje é o centro da cidade.

Ajude um camarada. Não coma sua mulher por ele

Produto

  • Belos Fracassados
  • Leonard Cohen (trad. Daniel de Mesquita Benevides)
  • Todavia
  • 280 páginas

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