Trecho de Livro: Baumgartner, de Paul Auster — Gama Revista

Trecho de livro

Baumgartner

O escritor nova-iorquino Paul Auster retoma temas como o aleatório da vida e o luto em seu último romance

Leonardo Neiva 23 de Agosto de 2024

Publicado lá fora no final de 2023, poucos meses antes da morte de Auster (1947-2024) em decorrência de um câncer de pulmão, “Baumgartner” (Companhia das Letras, 2024) é um romance que aborda muitos dos assuntos que acompanharam a obra e a vida do escritor norte-americano. No livro, que tem tradução de Jorio Dauster, somos testemunhas da jornada interna do personagem-título em sua tentativa de lidar com o luto pela morte da esposa, mesmo uma década após o ocorrido.

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Embora a narrativa se passe muitos anos depois do acidente que matou Anna, o leitor acaba adentrando a existência de Baumgartner ao lado da esposa, num fluxo de conflitos e memórias que abarcam um considerável período de sua vida: do primeiro encontro do casal na Nova York da década de 1960 aos menores detalhes do dia do acidente. No meio disso, 40 anos de construção de um relacionamento apaixonado.

Assim como “A Invenção da Solidão” (Companhia das Letras, 1999), a história nos apresenta um personagem às voltas com as lembranças de um familiar que se foi. Também aborda assuntos sempre caros ao autor, como a solidão e as aleatoriedades da vida — que Auster explorou mais a fundo na coleção de novelas “A Trilogia de Nova York” (1999), um de seus livros mais aclamados.

Com Nova York novamente servindo de pano de fundo — playground preferido para a imaginação do autor e uma constante ao longo de sua obra —, Auster compõe uma última ode às complexidades da alma e cérebro humanos. Como sempre, numa prosa direta, envolvente e com um quê de mistério a cada nova linha.


Baumgartner trabalhava numa nova ideia. Estávamos em junho e, com o livrinho sobre Kierkegaard terminado e o joelho machucado praticamente sem dor, ele vinha pesquisando o complexo e intratável dilema neurofisiológico conhecido como síndrome do membro fantasma. Suspeitava que a ideia tivesse sido plantada em sua cabeça no mês de abril quando Rosita lhe contou sobre o acidente do pai com a serra elétrica, porque, mesmo sem que ela lhe fornecesse nenhum detalhe, Baumgartner havia preenchido as lacunas, imaginando a cena sangrenta tantas vezes nas horas seguintes que tinha a impressão de ter visto com os próprios olhos a lâmina cortar a carne do carpinteiro. Misericordiosamente, os dois dedos amputados do sr. Flores tinham sido costurados em sua mão naquela manhã, porém Baumgartner ficara sabendo desde então que, em casos de amputação permanente, quase todas as pessoas que perdem um braço ou uma perna continuam a sentir durante muitos anos o membro ainda preso ao corpo, com frequência acompanhado de dor aguda, coceira, espasmos involuntários e a sensação de que o membro murchara ou se contorcera numa posição lancinante. Baumgartner havia pesquisado cuidadosamente a literatura médica sobre o assunto com sua costumeira diligência, estudando os trabalhos de Mitchell, Sacks, Melzack, Pons, Hull, Ramachandran, Collins, Barbin e numerosos outros, apesar de entender que seu interesse real não residia nos aspectos biológicos e/ou neurológicos da síndrome, e sim em seu poder de servir como uma metáfora para o sofrimento e a perda humanos.

Era esse tropo que Baumgartner vinha procurando havia muito, desde a morte repentina de Anna dez anos antes, a analogia mais persuasiva e convincente para descrever o que lhe acontecera a partir daquela tarde quente e ventosa em agosto de 2008 quando os deuses houveram por bem roubar sua mulher em pleno vigor do corpo ainda moço. E, num instante, os membros dele tinham sido arrancados, todos os quatro, braços e pernas juntos e ao mesmo tempo. E, se sua cabeça e seu coração haviam sido poupados do ataque, era apenas porque os deuses perversos e zombeteiros lhe tinham concedido o direito duvidoso de seguir vivendo sem ela. Agora ele era nada mais que o toco de um homem, um homem que perdera aquela metade de si que o fazia inteiro — e, sim, os membros perdidos ainda estavam lá, ainda doíam, doíam tanto que por vezes sentia que seu corpo estava prestes a pegar fogo e ser consumido ali mesmo.

Num instante, os membros dele tinham sido arrancados, todos os quatro, braços e pernas juntos e ao mesmo tempo

Durante os primeiros seis meses, ele viveu num estado de confusão tão profunda que às vezes despertava pela manhã e esquecia que Anna estava morta. Como ela sempre acordava mais cedo, já ativa pelo menos quarenta minutos ou uma hora antes que ele conseguisse abrir os olhos, Baumgarten se acostumou a descer de uma cama vazia e ir como um sonâmbulo até a cozinha deserta para preparar uma caneca de café, frequentemente acompanhado pelo som tênue da máquina de escrever de Anna na salinha que ficava na outra extremidade do andar térreo, quando não por seus passos num dos quartos do segundo andar ou por som nenhum, o que significava apenas que ela lia algum livro, olhava pela janela ou executava uma atividade silenciosa em outra parte da casa. Isso explicava por que todos aqueles grotescos lapsos de memória ocorriam cedo pela manhã, antes que ele tivesse recuperado a plena consciência e, ainda zonzo, fizesse as coisas sob o feitiço dos velhos hábitos criados ao longo de toda uma vida compartilhada com Anna. Como na manhã, somente dez dias após o funeral, em que se sentou numa das cadeiras da cozinha com a caneca de café fumegante e seus olhos varreram uma pilha desorganizada de revistas abertas em cima da mesa. Uma página em especial se destacou das demais e ele viu o que parecia ser uma manchete na New York Review of Books que dizia: “O que são as condições meteorológicas”. O livro resenhado tinha como título Águas do mundo e o nome da autora era Sarah Dry.

Águas do mundo — por Sarah Dry, Sarah Seco!

A combinação era tão inesperada, e tão simples em sua simetria infantil, que Baumgartner soltou uma curta risada de surpresa. Bateu na mesa com as duas mãos e se levantou.

Anna, veja só isso aqui, ele disse, ao começar a caminhar rumo à sala de visita. Você vai se mijar de tanto rir!

Devia estar na sala de visita, ele presumiu, devido ao silêncio da máquina de escrever e dos aposentos no andar de cima. Assim, estaria aninhada no sofá com um livro e um lápis na mão direita para marcar os trechos que lhe interessassem; e, caso não usasse o lápis naquela hora, sem dúvida o teria enfiado na boca para morder distraidamente a cinta de metal em volta da gorducha borrachinha cor-de-rosa. Todas essas imagens passaram por sua cabeça enquanto caminhava na direção dela envolto num nevoeiro de esquecimento — até entrar na sala de visita vazia e lembrar-se. De imediato seus pensamentos voltaram ao funeral: lá estava ele com todo mundo havia dez dias, de pé diante da cova aberta, enfrentando o tempo pesado e ventoso trazido pela tempestade tropical que avançava pela costa com rajadas cada vez mais fortes, como a que varreu o chapéu da cabeça de sua irmã e fez com que aquela coisa preta voasse em zigue-zague pelos ares como um pássaro demente até se enredar nos galhos mais altos de uma árvore.

A terapeuta do luto disse: Você está entorpecido. Ainda não absorveu o que aconteceu.

Durante os primeiros seis meses, ele viveu num estado de confusão tão profunda que às vezes despertava pela manhã e esquecia que Anna estava morta

O que quer que tenha acontecido, respondeu Baumgartner, não aconteceu comigo mas com Anna. Ela está morta por causa disso e, como vi seu corpo morto na praia, como carreguei nos braços aquele corpo morto, absorvi totalmente o que aconteceu com ela. O que me aborrece é que ela insistiu em voltar para a água pela última vez, embora, a essa altura, o vento estivesse mais forte e o mar agitado, com ondas crescendo cada vez mais e arrebentando. Mas, quando eu lhe disse que estava ficando tarde e devíamos ir para casa, ela riu de mim e correu para a arrebentação. Anna era assim, uma pessoa que fazia o que bem queria e não aceitava um não como resposta, impulsiva e voluntariosa. Além de exímia nadadora.

Você se culpa, disse a terapeuta, é o que está me falando.

Não, não me culpo. Teria sido inútil insistir. Ela não era alguém que fazia o que lhe fosse dito, que aceitasse ordens. Era uma mulher adulta, não uma criança, e sua decisão de adulta era que ia cair na água de novo. Eu não podia impedi-la, não tinha esse direito.

Se não é culpa, então é uma sensação de arrependimento, até de remorso.

Não e não de novo. Posso ver em sua expressão que sente que estou resistindo a você, mas não estou. É só que preciso definir bem nossos termos antes de mergulharmos na conversa. Sim, ela ainda estaria viva se não tivesse voltado para a água, mas também não teríamos durado juntos mais de trinta anos se eu tivesse tentado fazer coisas do tipo impedir que voltasse a cair na água quando quisesse. A vida é perigosa, Marion, e tudo pode acontecer conosco a cada minuto. Você sabe disso, eu sei disso, todo mundo sabe — e, quem não sabe, bom, não está prestando atenção. E, se você não presta atenção, não está de todo vivo.

Como é que você está se sentindo agora, neste momento?

Arrebentado, infeliz. Estraçalhado em mil pedacinhos.

Em outras palavras, dissociado, não inteiramente você.

Acho que sim. Mas, na medida em que posso compreender o que está se passando agora, posso dizer honestamente que não tenho pena de mim, que não estou tomado pela autocomiseração ou lamentando aos céus. Por que eu? Por que não eu? As pessoas morrem. Morrem moças, morrem velhas, morrem aos cinquenta e oito anos. Eu sinto falta dela, isso é tudo. Era a única pessoa no mundo que amei, e agora tenho de encontrar uma maneira de continuar a viver sem ela.

As pessoas morrem. Morrem moças, morrem velhas, morrem aos cinquenta e oito anos. Eu sinto falta dela, isso é tudo

Naquela noite há dez anos, depois da primeira e derradeira sessão com Marion, a terapeuta do luto, Baumgartner foi para a salinha de trabalho de Anna no andar térreo e passou várias horas examinando seus papéis e manuscritos. O closet estava cheio do chão até a altura do queixo com rascunhos e provas de suas traduções publicadas, ao menos quinze ou dezesseis livros nos últimos vinte e cinco anos, a maioria do francês e do espanhol, mas algumas também do português, aproximadamente o mesmo número de romances quanto de coletâneas de poemas, todos os quais ele lera duas ou três vezes e conhecia perfeitamente. Por isso, fechou a porta do closet e se dirigiu ao armário-arquivo num canto da sala, quatro gavetas amplas e fundas que continham seus escritos em vários estágios de elaboração, uma grossa pilha de poemas que datavam dos anos de ensino médio e marchavam até três semanas antes de afogar-se, as páginas datilografadas e corrigidas à mão de dois romances abortados, vários contos, uma dúzia de resenhas e uma caixa de tamanho médio com anotações autobiográficas que ocupava sozinha a gaveta de baixo. Baumgartner pegou a caixa, levou para a mesa de trabalho de Anna, se sentou em sua cadeira e abriu a tampa. As páginas do documento no topo da pilha estavam presas por um clipe enferrujado, indicando que era coisa antiga, escrita anos e anos atrás, talvez nos primeiros tempos do casamento deles, quem sabe até antes disso. Tirou-o da caixa e começou a ler.

Produto

  • Baumgartner
  • Paul Auster (trad. Jorio Dauster)
  • Companhia das Letras
  • 176 páginas

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