Trecho de Livro: A Vida Secreta das Emoções, de Ilaria Gaspari — Gama Revista

Trecho de livro

A Vida Secreta das Emoções

Livro da filósofa italiana Ilaria Gaspari mescla experiências pessoais e pensadores da Antiguidade em defesa de se permitir sentir emoções livremente

Leonardo Neiva 24 de Fevereiro de 2023

Se a filósofa italiana Ilaria Gaspari já havia buscado nos pensadores da Antiguidade um caminho para reencontrar a própria felicidade, em seu novo livro são eles que abrem portas e janelas para entendermos e aprendermos a lidar, na medida do possível, com nossas emoções. E faz sentido buscar referências num passado distante para tratar do assunto. Como a própria autora aponta no prefácio de “A Vida Secreta das Emoções” (Âyiné, 2023), a sociedade hoje reprime os homens e desvaloriza as mulheres quando estas ou estes demonstram sentir emoções em excesso.

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“Vigora um decreto ambivalente acerca das emoções: por um lado elas são desencorajadas, porque sinal de fraqueza (…); por outro, elas são ostentadas com habilidoso exibicionismo, como medalhas, para a curiosidade maldosa de quem olha”, diz Gaspari em determinado trecho da obra. Aqui, ao tratar de emoções e sentimentos variados, ela pretende mostrar que a realidade deveria ser o oposto disso. Afinal, são as emoções que nos fazem humanos. E confiar nelas, em vez de nos tornar frágeis, acaba sendo a fórmula certeira para conhecer e se maravilhar com o mundo.

Portanto, ao longo de mais de 200 páginas, a filósofa se aprofunda em emoções como ansiedade, remorso, nostalgia, inveja e gratidão. Faz isso partindo de experiências próprias – como sua incapacidade crônica de dirigir e a saudade da casa dos pais, que o tempo transformou em nostalgia – e de referências que vão de Sófocles e Homero a Dante e Montaigne. Adequadamente, dedica o livro a todos os que já foram ou estão sendo considerados vulneráveis por expor demais suas emoções: “os abalados, desorientados, inquietos, fragmentados.”


A ansiedade é um pedido

Fui reprovada cinco vezes no exame de motorista. Cinco, nem mais nem menos; na sexta tentativa tirei a carteira, mas infelizmente não dirijo. As repetidas reprovações deixaram marcas; não confio em mim, e de qualquer modo ninguém em meu círculo de amigos e parentes ousaria me emprestar o carro para eu praticar. Não os culpo. Na época da autoescola, meu instrutor, um grandalhão de Pisa de índole coriácea, que devia ter passado dos sessenta já havia algum tempo e não parecia se deixar derrotar facilmente, depois da enésima tentativa de me deixar apta para o exame deu a entender, de maneira um tanto inequívoca, que não queria mais cruzar comigo — e o entendo, fui sua cruz por muitos meses, ele até aventou procurar um psicólogo para se recuperar das decepções que eu lhe causava. Mas o verdadeiro motivo dessa relação conflituosa com o carro, de todas aquelas reprovações, da paralisia que me domina quando por vezes me passa pela cabeça me postar ao volante de um banal automóvel e meter o pé na embreagem, no acelerador ou no que quer que seja, é uma só: a ansiedade.

Quem pensar que sou uma pessoa mimada, que não dirige porque nunca precisou, não imagina quantos inconvenientes passei devido a essa inaptidão. Quanto trabalho a mais, quantas situações no limite do perigo ou, de todo modo, desagradáveis; quanto esforço, e quanta energia gasta! Só me consola a sustentabilidade ambiental desse, digamos, pequeno defeito. Mas é tudo questão de ansiedade. Só ansiedade, como ouvi tantas vezes, desalentada, com o coração saltando pela boca, batendo forte demais e rápido demais; a respiração que não parecia descer nem subir, nem para cima nem para baixo — mesmo assim eu respirava, apesar do nó na garganta. Porque não era um nó verdadeiro, era uma ilusão: era ansiedade.

Fui tomada por um terror sem nome. Tinha me dado conta de ter quase cinco anos e me parecia uma idade inaceitável; logo seria grande e eu não tinha nenhuma intenção de crescer

Cultivo uma longa relação com a ansiedade, iniciada na infância; acho até que lembro o momento em que a descobri, parecia que um alfinete me espetava o peito. Estava sentada no chão do banheiro, a banheira cheia d’água, e fui tomada por um terror sem nome. Tinha me dado conta de ter quase cinco anos e me parecia uma idade inaceitável; logo seria grande e eu não tinha nenhuma intenção de crescer. A partir daquele momento, pesaria sobre a outra metade da minha infância um medo incrédulo, e prematuro, de ter de abandoná-la. Os adultos achavam muito engraçado, riam de mim, o que tornava ainda mais ameaçadora a hipótese de um dia me tornar um deles, uma como eles: incapaz de compreender uma menina que não quer ter cinco anos. Hoje fecho os olhos e a vejo, ela que não era eu, embora eu também seja ela, sentada sobre o piso cinza-claro do banheiro, num fim de tarde de setembro, e seu desespero pelos cinco anos que estava para completar me faz sorrir; na verdade, assim sei que o medo dela se tornou realidade. Mas aquela sensação de espinho no peito, que havia descoberto e mantido em segredo cuidadosamente até que não resisti e me abri com meu pai, que me explicou — era uma pequena dor intercostal –, pois bem, a levo muito a sério até hoje. Às vezes penso que foi ela — minha ansiedade — que me impediu de, em todos os aspectos, ficar parecida com os adultos que então não pareciam capazes de me compreender, mas que na realidade, hoje sei, compreendiam muito bem, só que não se continham e sorriam da menina que mostrava uma inclinação um tanto precoce e teatral pela melancolia. A ansiedade que experimentei pela primeira vez sobre o piso do banheiro cinza-claro, agora eu a conheço tão bem que a considero uma velha amiga; de certo modo, quase gosto dela. Disseram-me que eu deveria subjugá-la, tentar extirpá-la, tratá-la, que deveria me livrar dela. Mas hoje não tenho mais vontade disso. Só quero aprender a viver com ela, reconhecer os sinais de sua linguagem, que, sim, é um tanto brusca, coercitiva; entretanto, desde que comecei, do meu jeito, a ouvi-la, percebi que a ansiedade tinha coisas a me dizer. Coisas que, em algumas circunstâncias, até mesmo me salvaram.

A etimologia não é particularmente reconfortante nesse caso. «Ansiedade» vem de ânsia, do latim tardio anxia, por sua vez derivado do verbo angere, que significa «apertar», «sufocar» (e é também a raiz de angústia). Não é preciso muito para intuir a ligação física, palpável, entre ansiedade e ar, entre ansiedade e o ato instintivo, vital, involuntário de respirar, que na crise de ansiedade de repente fica insuperável: pela ilusão de ótica, é claro, mas se trata de uma ilusão perfeitamente convincente, tanto que, por sua vez, alimenta a ansiedade, aumenta-a, dá corda para ela.

Já a palavra grega que traduzimos como «ansiedade» — mérimna — está associada a merìzo, que significa «estar dividido em duas partes». Um pouco como no famos verso de Fausto, Zwei Seelen wohnen, ach! in meiner Brust: «Ah! Duas almas habitam meu peito». E como acontece com os heróis trágicos que, desde que o mundo é mundo, lutaram tanto que parecem se dividir, rachar-se.

Uma descrição surpreendentemente precisa dos sintomas da ansiedade, referida como um peso que esmaga, como certos blocos nos pesadelos, aparece no primeiro monólogo de uma das heroínas trágicas que não foram tão abençoadas pela fortuna (por mais que a competição por essa primazia seja bastante acirrada). Electra, «a brilhante», que porta o nome do âmbar, a pedra preciosa em cujo núcleo está aprisionado um inseto fossilizado, é filha de Agamêmnon e Clitemnestra. A filha núbil, a virgem destinada, descendente de uma mãe que tem homens até demais; quanto ao pai, ela o viu sacrificar Efigênia, sua irmã, para conquistar a viagem que o levaria à guerra. Electra, a filha mulher que ficou em casa com as outras irmãs, enquanto o pai combatia a guerra dele, viu a mãe espumar de ódio pelo marido que degolou sua filha como um cabrito; a mesma mãe surpreendida com seu amante Egisto, robusto como um lenhador e, como um lenhador, bruto aos olhos da princesa. E é com uma machadada certeira, sem muitos rodeios, que Egisto e Clitemnestra racham a cabeça de Agamêmnon para vingar Efigênia, quando ele volta da guerra; outro elo da cadeia de infortúnios que aprisiona a linhagem dos átridas. Electra, reclusa na fortaleza de Micenas, planeja vingar a mãe, que por sua vez se vingou do marido; a voz do sangue grita dentro dela, grita contra outra voz, e contra outro sangue.

Uma descrição surpreendentemente precisa dos sintomas da ansiedade, referida como um peso que esmaga, como certos blocos nos pesadelos

Electra é uma adolescente revoltada, odeia a mãe, mas sabe muito bem que o vínculo entre elas é indissolúvel; arquiteta um plano para vingar o homem que matou sua irmã. Afinal, uma situação nada invejável; seu primeiro discurso (rhèsis, como chama o léxico teatral), na tragédia que Sófocles batizou com seu nome, é o monólogo de uma dark lady, um dos mais sombrios e obscuros que já saíram da boca de uma heroína grega. Porque talvez Electra seja a mais desesperada de todas, reclusa no palácio empoleirado sobre o monte árido, numa «espera ferrenha», como diz, do irmão Orestes, distante — ela, «estéril, virgem, cansada, errante marcha de pranto»; ela, que concretiza seu nome de âmbar num destino envolto por uma «cadeia assombrada de males».

Nós a vemos entrar em cena pálida, exausta pela noite insone:

Ó luz imácula!
Ar, moira especular da Geia-terra!
Quantos trenos ouvistes de mim,
quantos golpes rubros no peito
não presenciastes,
ao tenebroso desanoitecer!
E o leito odioso da morada macabra
sabe de minha insônia pan-noturna,
da profusão de trenos paternais.
Não foi Ares, sanguinário,
quem o abateu num rincão barbárico,
mas minha mãe e Egisto, seu comparsa de cama:
qual lenhadores fendem a tora,
racham-lhe a cabeça com acha mortífera.
Pranto, pai, houve só meu,
Quando de tua morte impiedosa! Vergonha!
Não hei de cessar o treno e o choro magoado
Enquanto me for dado mirar o estelário panfúlgido
e o lume diurno;
rouxinol algoz de crias,
ecoarei ao mundo meu lamento sem trégua,
no pórtico do paço pátrio.
Palácio de Hades e Perséfone,
Hermes subtérreo,
Ara, Ruína venerável,
Erínias, sagradas filhas dos numes,
testemunhas de mortes injustas,
testemunhas de leitos usurpados,
ajudai-me,
— aqui! —
vingai a morte de meu pai,
Reconduzi meu irmão!
O sobrepeso da pena me faz pender,
Solitária; já não o suporto!

Como acontece com frequência aos ansiosos, permanece incompreendida: o coro a considera exagerada e, não sem paternalismo, rebate-a dizendo que ela decerto não é a única no mundo a sofrer de angústia

A excluída Electra, sozinha em uma casa muito cheia e muito vazia, descreve a sintomatologia da ansiedade à perfeição, em termos que não poderiam ser mais modernos. E, como acontece com frequência aos ansiosos, permanece incompreendida: o coro a considera exagerada e, não sem paternalismo, rebate-a dizendo que ela decerto não é a única no mundo a sofrer de angústia. Aliás: o que diriam suas irmãs? E, no entanto, elas vivem serenas, sem criar tanto caso. Até Orestes, longe, está tranquilo:

Tens o monopólio da agonia, menina?
Outros mortais conheceram
o que dói mais em ti
do que, no paço,
nos demais membros da família,
em Crisóstemis e Ifiánassa,
irmãs homossanguíneas
que ainda vivem,
o felizardo que matura à margem
da própria agrura,
um sangue azul que Micenas, a ínclita,
há de acolher um dia,
reconduzido por um Zeus favorável:
Orestes…

Entretanto, ainda que não possa contar nem com o coro para ser levada a sério, a princesa de Micenas ilustra seus sintomas bem até demais. A ansiedade é um conflito; é insônia, e sufocamento. É a carga sob a qual Electra se sente esmagada; é o ódio do leito no qual não encontramos paz, e a frustração de um peso a ser carregado na solidão; é virar e revirar-se no escuro, enquanto todos dormem; e são lágrimas, palpitações de coração taquicardíaco, e balbucio insensato, doloroso; é ruminar palavrar como litanias que Electra compara ao canto do mais infeliz dos pássaros, Procne, o rouxinol, obrigado a chorar a morte de seu filhote num eterno gorjeio de dor.

Produto

  • A Vida Secreta das Emoções
  • Ilaria Gaspari
  • Âyiné
  • 212 páginas

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