A Escravidão na Poesia Brasileira
De Castro Alves a Conceição Evaristo, o poeta e ensaísta Alexei Bueno reúne mais de três séculos de poesia sobre a prática que marcou a história do país
“Nenhuma realidade sociológica, na história do Brasil, deixou marcas mais indeléveis do que a escravidão africana, nos seus três séculos e meio de existência, nem deu margem a tão duradouras reivindicações”, escreve o poeta, ensaísta e tradutor Alexei Bueno ao introduzir o seu “A Escravidão na Poesia Brasileira” (Record, 2022). Essas marcas foram tão fortes na nossa cultura que se imprimiram nas tintas da nossa literatura e, talvez de forma até mais notável, na poesia nacional.
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Ainda que seja muito provavelmente o poema mais conhecido a tratar do assunto, nem de longe essa poética se resume ao notável “O Navio Negreiro”, de Castro Alves (1847-1871). E é justamente para resgatar a riqueza de palavras com que esse tema tão relevante e traumático dentro da história brasileira foi retratado pelos poetas daqui que o autor se lançou na árdua tarefa de resgate, seleção e organização que deu origem a esse livro.
Entre mais de 200 poemas e cerca de 80 autores, alguns esquecidos ou até nunca antes publicados, Bueno viaja por quase três séculos e meio de poesia. E os assuntos dentro do tema maior vão variando, passando pelas saudades da terra natal, as condições desumanas da viagem marítima, os castigos corporais, a resistência, fugas e rebeliões.
“Todos os versos aqui reunidos cumpriram (…), com maior ou menor pujança, o papel histórico ao qual, na maior parte, se propuseram. A todos podemos ler como marcantes retratos de uma época e de uma luta”, diz o autor de um livro que reúne ainda as palavras de alguns dos maiores nomes da literatura nacional, como Gregório de Matos, Gonçalves Dias, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Carlos Drummond de Andrade, Conceição Evaristo e muitos outros.
Os temas da poesia sobre a escravidão
- O exílio forçado
A experiência de ser bruscamente arrancado da sua terra, e levado, depois de uma terrível travessia oceânica, para outro continente e outra cultura, para lá seguir uma vida que dificilmente mereceria tal nome, foi tema dos mais presentes nos poetas da escravidão, através da representação de uma África comumente idílica, com uma paisagem obviamente imaginária, na qual muitas vezes características da África mediterrânea se misturam às da África subsaariana. Se o Islã, de fato, se espalhou por imensa área do continente, não podemos minimizar essa influência, da qual um dos centros de força é Les Orientales, de Victor Hugo, que, ainda que se tratasse de uma obra filelênica, fascinou a todos com o exotismo de suas descrições.
Um dos poemas que inauguram este tema é “A escrava”, dos Primeiros cantos de Gonçalves Dias, com a reiterada referência ao Congo, geograficamente imponderável.
Outro dos poemas que tratam detalhadamente desse tema muito disseminado é “A filha d’África”, de Luís Delfino, como podemos constatar pelas seguintes estrofes:
[…]
E, às vezes, rola o fio de uma lágrima
Pela face… tão manso
Como gota de azeite, que transborda
Da alâmpada ao balanço!…
Naquele coração — naquele abismo —
Despenhada a ventura,
Livre saltou, correu, rugiu, bem como
O leão na espessura
Naquele coração — leito de pedras —
Malformado, é verdade
Na virginal beleza em que, selvagem,
Bramia a liberdade!
Nua, bem como um semideus de Homero,
A vida em segurança
Levava aos ombros dentro de uma aljava,
Ou pendurada à lança!
[…]
Aquele, no entanto, que se gravou na alma nacional, foi o sempre lembrado “O navio negreiro”, com a bem sabida e invariável superioridade de Castro Alves, que passa, logo depois, por motivos óbvios, para o tópico seguinte, o da travessia atlântica:
[…]
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão…
[…]
Entoa o escravo o seu canto,/
E ao cantar correm-lhe em pranto/
Saudades do seu torrão…
Tal tema do exílio forçado tem, podemos dizer, um eco, um reflexo espelhado na questão da corrosiva saudade do escravo, já nos eitos brasileiros, de sua terra natal, o famoso “banzo” — sempre reivindicado como uma das causas da duvidosa ineficácia e efemeridade da escravidão indígena –, que já se delineia no começo d'”A canção do africano”, também de Castro Alves:
[…]
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão…
[…]
Tema que foi imortalizado num dos mais belos sonetos de todo o parnasianismo brasileiro, de Raimundo Correia, e intitulado justamente “Banzo”:
Visões que n’alma o céu do exílio incuba,
Mortais visões! Fuzila o azul infando…
Coleia, basilisco de ouro, ondeando
O Níger… Bramem leões de fulva juba…
[…]
Vai co’a sombra crescendo o vulto enorme
Do baobá… E cresce n’alma o vulto
De uma tristeza, imensa, imensamente…
A saudade da terra de origem surge igualmente no poemeto História de um escravo, de Xavier da Silveira Júnior:
[…]
Somente e em atitude silenciosa,
À proporção que o solo vai cavando,
Nos olhos passa a negra mão calosa
Às ocultas, suas lágrimas limpando.
— É que lhe vem à mente o pátrio serro…
Esta opulenta flora tropical
Recorda-lhe na terra do desterro
As solidões do seu país natal…
Tema que reaparece, ainda no período parnasiano, no soneto “Sonho africano”, de Francisca Júlia — muito inferior ao de Raimundo Correia –, assim como, já no neoparnasianismo, no antológico “Pai João”, de Ciro Costa, e, contemporaneamente, no poema “Meus avós”, de Carlos de Assumpção:
[…]
E a história
Dos que morriam de banzo
Dos que se suicidavam
Dos que se recusavam
Qualquer alimento
E embora ameaçados
Por troncos e chicotes
Não se alimentavam
E acabavam morrendo
Encontrando na morte final
A porta da liberdade
[…]
Já no modernismo, aparece no poema também intitulado “Banzo”, de Menotti Del Picchia, e em contexto, aliás, totalmente diverso, no poema “Filhos na rua”, de Conceição Evaristo.
Recorda-lhe na terra do desterro/
As solidões do seu país natal…
- A travessia atlântica
A obrigatória travessia do oceano nos tumbeiros deu lugar a não poucas referências, sendo mesmo o tema do mais célebre entre todos os poemas brasileiros sobre a escravidão, “O navio negreiro”, de Castro Alves, espantosa obra-prima dramática, sonora, coreográfica, pictórica etc. Já no século XX, ele reaparece, numa calculadamente fria enumeração de misérias em “História”, de Jorge de Lima, que de início se refere ao primeiro tópico, o do exílio forçado:
Era princesa.
Um libata a adquiriu por um caco de espelho.
Veio encangada para o litoral,
arrastada pelos comboieiros.
Peça muito boa: não faltava um dente
e era mais bonita que qualquer inglesa.
No tombadilho o capitão deflorou-a.
Em nagô elevou a voz para Oxalá.
Pôs-se a coçar-se porque ele não ouviu.
Navio negreiro? não; navio tumbeiro.
Depois foi ferrada com uma âncora nas ancas,
depois foi possuída pelos marinheiros,
depois passou pela alfândega,
depois saiu do Valongo,
[…]
Vale a pena registrar que o tema retorna, na poesia de Jorge de Lima, ainda que muito superficialmente, no poema “Distribuição da poesia”, de Tempo e Eternidade, seu livro escrito com Murilo Mendes e editado em 1935.
Pouco depois, ressurge em Urucungo, poemas negros, de Raul Bopp, de 1932, como na terceira estrofe do poema “Negro”:
Um dia
atiraram-te no bojo de um navio negreiro.
E durante longas noites e noites
vieste escutando o rugido do mar
como um soluço no porão soturno.
Já Cassiano Ricardo, no poema intitulado exatamente “O navio negreiro”, pertencente a uma das muitas versões ampliadas de Martim Cererê — não à original, de 1928 –, se compraz numa exaustiva descrição fenotípica dos escravos, de gosto dos mais duvidosos, ainda mais para um brasileiro não oriundo de recente imigração, com todas as possibilidades de mestiçagem, portanto:
[…]
Cada qual mais resmungão…
Chegaram todos em bando.
Uns se rindo, outros chorando.
Vinham sujos de fuligem…
Vinham pretos de carvão
como se houvessem saído
de dentro de algum fogão.
Mais escuros do que breu.
Com eles aconteceu
o que acontece ao carvoeiro
trabalhando o dia inteiro
dentro de tanto negrume
que quando sai da oficina
sai que é um carvão com dois olhos
de vaga-lume…
Vinham sujos de fuligem…
Tinham a tinta de origem
nas mãos, nos ombros, na face:
como se cada figura
de negro fosse um fetiche
que a treva pintou de piche
marcando-lhe a pele escura
a golpes cruéis de açoite
para que todos soubessem,
bastando vê-los, que haviam,
realmente, trazido a Noite.
Vinham de outro continente
onde jaziam os povos
a quem misteriosamente,
deus negara a cor do Dia…
Homens pretos picumã
de cabelo pixaim.
Por terem trazido a noite
ficaram pretos assim.
Veio encangada para o litoral,/
arrastada pelos comboieiros./
Peça muito boa: não faltava um dente/
e era mais bonita que qualquer inglesa.
É interessante a comparação entre tal descrição, algo grotesca — Guilherme de Almeida chega a tangenciar tal uso, mas de forma muito mais sutil e fugaz, em Raça –, e a apologia do mesmo fenótipo feita pelo jovem Augusto dos Anjos, em soneto publicado n’O Comércio do Recife, em 24 de maio de 1905:
O NEGRO
Oh! Negro, oh! filho da Hotentótia ufana
Teus braços brônzeos como dois escudos,
São dois colossos, dois gigantes mudos,
Representando a integridade humana!
Nesses braços de força soberana
Gloriosamente à luz do sol desnudos
Ao bruto encontro dos ferrões agudos
Gemeu por muito tempo a alma africana!
No colorido dos teus brônzeos braços,
Fulge o fogo mordente dos mormaços
E a chama fulge do solar brasido…
E eu cuido ver os múltiplos produtos
Da Terra — as flores e os metais e os frutos
Simbolizados nesse colorido!
Em plena contemporaneidade, finalmente, tal tópico dá título a todo um livro, Atlântica dor: poemas, 1979-2014, de Abelardo Rodrigues, publicado em 2016. Num distanciamento subjetivado, o tema da travessia atlântica persevera, como em “Fragmentos marítimos”:
[…]
Ó mar de incertezas
messiânicas
Ó terra
ainda estranha
de mim!
— geografia de histórias
abortadas na
via-sacra marítima —
[…]
Da mesma maneira, reaparece em Conceição Evaristo, como na primeira estrofe de “Vozes-mulheres”:
A voz da minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
[…]
Reaparecendo, em estilo entre o lírico e o épico, em Canudos: poema dos quinhentos, de Carlos Newton Júnior, editado em 1999, e, com destaque, no longo e importante poema “Cemitério marinho”, de Edimilson de Almeida Pereira, que retoma o título da obra-prima de Paul Valéry num vasto mural trágico do navio negreiro.
A voz da minha bisavó/
ecoou criança/
nos porões do navio.
- A Escravidão na Poesia Brasileira
- Alexei Bueno
- Record
- 714 páginas
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