Trecho de livro -- A porta da viagem sem retorno — Gama Revista
Trecho de livro

A porta da viagem sem retorno

Após vencer o Booker Prize Internacional, o franco-senegalês David Diop, que estará na Flip, conta a jornada de um naturalista entre o iluminismo e a violência da escravidão

Amauri Arrais 19 de Novembro de 2021

Usar a ficção para preencher lacunas históricas é parte do que move a literatura do franco-senegalês David Diop, autor do primeiro romance em francês a vencer o Booker Prize Internacional, principal prêmio britânico para a literatura não anglófila. “Irmão de Alma” (Editora Nós, 2020) ganhou traduções em 13 países, entrou na lista de recomendações do ex-presidente dos EUA Barack Obama e deve virar filme com o ator Omar Sy.

Narrado por um soldado senegalês que luta sob a bandeira da França na Primeira Guerra Mundial, o livro revê a presença dos combatentes das colônias africanas no conflito. Apagada de documentos históricos, a participação interessou a Diop a partir de uma história familiar: o avô materno lutou na guerra e nunca quis falar sobre o período.

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Já neste “A Porta da Viagem Sem Retorno” (Editora Nós, 2021), Diop volta ao país natal da mãe, onde viveu a infância e parte da adolescência, para contar a jornada do naturalista francês Michel Adanson — inspirado no homônimo histórico (1727-1806), que esteve no Senegal de 1749 a 1754. Na história, Adanson está no leito de morte e se martiriza por não ter contado toda sua trajetória à filha Aglaé.

A violência do tráfico de pessoas escravizadas entre a Europa, a África e as Américas em contraste com o período marcado pelo espírito iluminista é o cenário em que se desenvolvem as memórias. A porta sem retorno do título é um dos mais emblemáticos entrepostos do qual partiam negros escravizados, na ilha de Gorée, costa do Senegal.

“É um romance de aventura e amor, em que o personagem principal, Michel Adanson, se vê dividido entre os grandes ideais da filosofia iluminista e a dura realidade da escravidão transatlântica”, definiu o próprio Diop em entrevista à revista Quatro Cinco Um.

O romance tem relação com o trabalho acadêmico de Diop, que também é professor de literatura da Universidade de Pau e da Região de Ádour, no sul do França, e cuja principal linha de pesquisa envolve as representações que viajantes europeus faziam da África nos séculos 17 e 18. Seu lançamento no Brasil, no dia 22 de novembro, será por meio do clube de assinatura de livros que a Flip lançou em parceria com a livraria Dois Pontos. O escritor será uma das atrações da 19ª edição do festival literário, que acontece novamente em formato online de 27 de novembro a 5 de dezembro.

__________

Ao cair da noite, ela mandara Germain instalar, perto de sua cama, o pequeno móvel do hibisco onde ela havia posto uma pequena lâmpada a óleo com um abajur em vidro gravado. Uma vez deitada, as costas apoiadas em dois travesseiros bordados com as iniciais de sua mãe, as pernas cobertas por um pesado edredom em cetim amarelo dourado, Aglaé começou a ler os cadernos de Michel Adanson. A luz vacilante de uma pequena chama lhe lembrava, pelo reflexo amarelo pálido da sua dança sobre as folhas que ela passava lentamente, aquela que banhara os últimos momentos do seu pai.

*

Eu deixei Paris para ir à ilha de Saint-Louis, no Senegal, aos vinte e três anos de idade. Como alguns na poesia ou outros nas finanças ou na política, eu queria fazer meu nome na ciência botânica. Mas, por uma razão da qual não desconfiava, apesar da sua evidência, não aconteceu o que eu previra. Fiz essa viagem ao Senegal para descobrir plantas e foram pessoas que encontrei lá.

Nós somos os frutos de nossa educação e, como todos aqueles que me descreveram a ordem do mundo, acreditei de boa-fé que o que me explicaram sobre a selvageria dos negros era verdade. Por que eu duvidaria da palavra de mestres que eu respeitava, sendo eles próprios herdeiros de mestres que lhes asseguraram que os negros eram incultos e cruéis?

A religião católica, da qual quase me tornei um servo, ensina que os negros são naturalmente escravos. Todavia, se os negros são escravos, eu sei perfeitamente que não o são por um decreto divino, mas porque convém pensar assim para continuar a vendê-los sem remorso.

A religião católica ensina que os negros são naturalmente escravos. Todavia, eu sei perfeitamente que não o são por um decreto divino, mas porque convém pensar assim para continuar a vendê-los sem remorso

Então eu parti ao Senegal em busca das plantas, flores, conchas e árvores que nenhum outro douto europeu havia descrito até o momento, e lá encontrei sofrimentos. Os habitantes do Senegal não são menos desconhecidos para nós do que a natureza que os cerca. Porém, acreditamos conhecê-los o suficiente para supor que eles nos são naturalmente inferiores. Seria porque eles nos pareceram pobres na primeira vez que nós os encontramos, há quase três séculos? Seria porque eles não sentiram a necessidade, como nós, de construir palácios de pedra resistentes ao fluxo das gerações que passam? Nós podemos julgá-los inferiores por não terem construído navios transatlânticos? Talvez essas razões expliquem por que não os consideramos nossos iguais, mas cada uma delas é falsa.

Nós sempre trazemos o desconhecido para o conhecido. Se eles não erigiram palácios de pedra, talvez seja porque não acharam que fossem úteis. Nós buscamos saber se eles dispunham de outros meios diferentes dos nossos para comprovar a magnificência de seus antigos reis? Os palácios, os castelos, as catedrais que exaltamos na Europa são o tributo pago aos ricos por centenas de gerações de pobres pessoas cujos casebres ninguém se preocupou em conservar.

Os monumentos históricos dos negros do Senegal encontram-se em suas narrativas, em seus causos bem-humorados, em seus contos transmitidos de uma geração à outra por seus historiadores cantores, os griots. As palavras dos griots, que podem ser esculpidas tanto quanto as mais belas pedras de nossos palácios, são seus monumentos de eternidade monárquica.

Que os negros não tenham construído navios para virem nos reduzir à escravidão e se apropriar de nossas terras na Europa também não me parece ser uma prova de inferioridade, mas de sabedoria. Como se vangloriar de ter concebido esses navios que os transportam em milhões para as Américas em nome do nosso gosto insaciável pelo açúcar? Os negros não tomam a avidez por virtude, como nós fazemos, e sem mesmo pensar sobre isso, tanto que consideramos nossas ações naturais. Eles também não pensam, como Descartes nos convenceu a fazer, que devemos nos tornar mestres e possuidores de toda a natureza.

Que os negros não tenham construído navios para virem nos reduzir à escravidão e se apropriar de nossas terras na Europa não me parece ser uma prova de inferioridade, mas de sabedoria

Eu tomei consciência de nossas diferentes visões do mundo, sem, no entanto, encontrar nisso uma razão para desprezá-los. Se tivesse querido se dar ao trabalho de conhecer de fato os africanos, mais de um viajante europeu na África deveria ter feito como eu. Eu simplesmente aprendi uma de suas línguas. E quando conheci suficientemente o wolof para compreendê-lo sem hesitação, tive o sentimento de descobrir pouco a pouco uma paisagem magnífica que, grosseiramente reproduzida pelo mau pintor de um cenário de teatro, fora habilmente substituída pelo original.

A língua wolof, falada pelos negros do Senegal, vale tanto quanto a nossa. Nela eles acomodam todos os tesouros de sua humanidade: a crença na hospitalidade, a fraternidade, suas poesias, sua história, seus conhecimentos de plantas, seus provérbios e sua filosofia de mundo. Sua língua foi a chave que me permitiu compreender que os negros cultivaram outras riquezas para além daquelas que perseguimos empoleirados em nossos navios. Essas riquezas são imateriais. Mas, ao escrever isso, não quero dizer que os negros do Senegal são feitos de um modo diferente de toda a humanidade. Eles não são menos homens do que nós. Como todos os seres humanos, seus corações e espíritos podem ter sede de glória e riqueza. Entre eles também há seres gananciosos prestes a se enriquecer às custas dos outros, a pilhar, massacrar por ouro. Penso em seus reis que, como os nossos, até o nosso imperador Napoleão Primeiro, não hesitam em favorecer a escravidão para ganhar poder ou se manter nele.

Meu primeiro mestre de línguas se chamava Madièye. Era um homem de seus quarenta anos que havia sido intérprete de muitos diretores gerais da Concessão do Senegal. Madièye, que falava muito bem o francês corrente, não sabia traduzir para mim os termos de botânica dos quais apenas alguns iniciados, tanto homens como mulheres, conheciam as propriedades medicinais. Então eu logo o dispensei, confiando muito mais em Ndiak, que tinha doze anos de idade na primeira vez que eu o encontrei, e a quem eu ensinava noções de botânica para que ele me ajudasse efetivamente quando eu questionasse, em wolof, as pessoas especialistas nessa ciência.

Estoupan de la Brüe, o diretor geral da Concessão do Senegal, me dera Ndiak do rei do Waalo, com quem ele negociava. Ndiak era meu passaporte no Senegal. Em sua companhia e também na de alguns homens armados fornecidos pelo mesmo rei, nada de desagradável poderia me acontecer. Ndiak me ensinara que ele era príncipe, mas que jamais se tornaria rei do Waalo. Foi porque ele não era nada na ordem de sucessão do reino do Waalo que seu pai aceitara que Ndiak deixasse sua corte, em Nder, para me acompanhar a pedido do senhor de la Brüe. Apenas os sobrinhos maternos do rei podiam se tornar reis do Senegal. Foi isso que Ndiak me explicou, durante nosso primeiro encontro, de um jeito todo próprio:

– Quando uma criança nasce de uma rainha, só podemos ter uma certeza: pelo menos uma metade de sangue real corre em suas veias. Sempre reconhecemos as manchas da mãe em um bebê pantera, raramente as do pai.

Como todas as vezes que ele fazia uma graça, Ndiak tinha o cuidado de não esboçar um sorriso, mas de pôr em seu rosto uma máscara de impassibilidade que ele conseguia manter apesar de sua enorme vontade de cair na risada.

Quando uma criança nasce de uma rainha, só podemos ter uma certeza: pelo menos uma metade de sangue real corre em suas veias

Apenas suas pálpebras o traíam, piscando juntas quando ele estava prestes a expressar um pensamento jocoso, e talvez também um pouco os cantos de seus lábios, que se crispavam levemente. Ndiak era um grande inventor de provérbios espontâneos e todos aqueles que se aproximavam dele não podiam deixar de amá-lo.

Ndiak sempre me dizia que ele se parecia mais com a sua mãe. Ela era a mais nobre e a mais bela mulher de todo o reino do Waalo, quiçá do mundo inteiro, e, como ele herdara sua beleza, era naturalmente o mais belo jovem que eu vi na minha vida. Seus traços eram de uma regularidade e de uma simetria inacreditáveis, como se a natureza tivesse calculado as proporções do seu rosto servindo-se da mesma proporção áurea que o escultor Apolo de Belvedere. Eu simplesmente balançava a cabeça e sorria quando Ndiak fazia suas fanfarrices, o que o encorajava a dizer, sem rir, a quem quisesse ouvir: “Veja você, mesmo esse toubab* de Adanson que viu mais países do que todos nós juntos contando as cinco gerações dos seus ascendentes, você que me olha com seus olhos redondos de negro, mesmo Adanson reconhece que eu sou o mais belo dos belos”.

Eu tolerava sua arrogância porque havia compreendido que ele brincava com isso para ultrapassar a relutância em me falar sobre um grande número de pessoas muito doutas em botânica. Todos os brancos suscitavam desconfiança, especialmente eu, que fazia perguntas sobre assuntos incomuns. Ndiak era um facilitador de confidências dotado de uma memória prodigiosa. E graças a ele eu pude aprender uma grande quantidade de costumes que os funcionários da Concessão do Senegal, inclusive seu diretor Estoupan de la Brüe, certamente se beneficiariam em conhecer caso quisessem expandir um pouco mais os lucros do comércio com os diferentes reinos do Senegal.

*Na África Ocidental, toubab é uma pessoa de pele branca. [n. t.]

Produto

  • A porta da viagem sem retorno
  • David Diop
  • Nós
  • 256 páginas

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