Livros de família — Gama Revista
Editora Livros de Família

Livros de família

Uma editora especializada em transformar histórias familiares em narrativas literárias cresce na pandemia com o desejo de preservar a memória

Betina Neves 14 de Setembro de 2021

Você já pensou que a história da sua família daria um livro – ou, pelo menos, uma coletânea dos “causos” contados em almoços de domingo?

O jornalista e escritor André Viana – filho do contista Antônio Carlos Viana – abraçou essa ideia quando, em 2011, foi convidado a transformar em livro a biografia de um empresário paulistano. Ali nascia o que se tornaria a editora Livros de Família, que, de lá para cá, já deu vida a mais de 40 títulos com histórias que viajam passado adentro na vida de centenas de pessoas e que neste ano cresceu com novos integrantes e projetos.

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Os livros são encomendados pelas próprias famílias, que vêm de cidades como São Paulo, Salvador, Recife, Curitiba e Rio. “São pessoas que querem registrar o passado e descobrem que tem alguém que faz isso. Às vezes, essas memórias já vêm borbulhando, já que existe uma certa ansiedade em fazer isso antes que as pessoas mais velhas se vão”, conta Viana.

Na pandemia, a procura pelo trabalho da Livros de Família cresceu, junto com a equipe de colaboradores, que hoje conta com oito pessoas, entre estagiários e biógrafos. Entre os adendos deste ano, está a dramaturga, jornalista, roteirista e escritora Marta Goés, que tem no currículo a autobiografia da atriz Fernanda Montenegro.

“Acho que essa relação com o tempo, a morte, a memória e o passado aflorou na pandemia. Muita gente vem nos procurar dizendo que os pais ou os avós estavam em casa sem ter o que fazer na quarentena e veio a vontade de guardar as histórias de vida.” Neste momento, Viana está coordenando dez livros ao mesmo tempo – o processo de produção costuma ser longo, com no mínimo seis meses, mas pode chegar a três anos.

Trabalhamos no campo do mito, das lendas de família. É uma documentação emocional e subjetiva

A princípio, André Viana ingressou na empreitada munido do espírito jornalístico de fazer uma documentação fiel do passado. Depois, entendeu que a memória não funciona assim. “Percebi que trabalhamos no campo do mito, das lendas de família. É uma documentação emocional e subjetiva. A realidade é inatingível – o que vale pra gente é o registro que se fez dela”, diz. Às vezes, ele dá com três ou quatro versões da mesma história e precisa deixar isso explícito no livro de alguma forma.

As memórias são encaixadas no contexto histórico da época – este sim, fruto de uma pesquisa atenta aos fatos –, que serve como pano de fundo. “Estamos registrando uma sociedade de outros tempos, um século 20 que já acabou.” Já passaram pelas mãos dele um calhamaço de mais de 500 páginas sobre uma família que fugiu do holocausto, uma saga sobre imigrantes italianos em cinco volumes e a trajetória de um gaúcho criado em uma fazenda que se tornou presidente de uma das maiores empresas do ramo alimentício do país – a editora também se dedica a contar histórias de empresas familiares.

Os livros costumam vir tanto com histórias narradas por uma pessoa só quanto com relatos de vários parentes – André já chegou a entrevistar mais de cem pessoas para um único projeto. “Não existe fórmula, os livros são escritos a partir de como a história é contada. Nem eu, nem a família sabemos que caminho a coisa vai tomar”, conta. Em uma situação, por exemplo, André percebeu que a figura de uma matriarca já falecida era muito impactante para o resto da família e escreveu o livro a partir da perspectiva dela já no túmulo, à lá “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.

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O que estava debaixo do tapete

É claro que, ao esquadrinhar o passado das famílias, nem tudo são flores: é comum que situações espinhosas venham à tona nas pesquisas para os livros. Uma mulher que não tinha certeza se é filha do pai ou do avô, um homem que escondia um filho morto de Aids nos anos 1980, um adolescente que desapareceu e nunca teve o corpo encontrado e um patriarca que morreu em um acidente de avião e deixou a família na pindaíba são casos já ouvidos por ele.

“Desde o começo deixamos claro que vamos falar das coisas boas e ruins e que não são livros ‘elogiosos’. Tentamos contar esses casos com delicadeza, sem expor as pessoas, mas também sem esconder que as famílias são tristes e felizes ao mesmo tempo”, diz Viana.

Desde o começo deixamos claro que não são livros ‘elogiosos’. Não escondemos que as famílias são tristes e felizes ao mesmo tempo

Nesses dez anos tocando o trabalho, Viana percebeu o caráter transformador e até terapêutico que os livros evocam nos envolvidos – momentos catárticos de choro e desabafo são comuns. “As pessoas muitas vezes não têm ideia de como foi a trajetória delas até que elas a contem a um desconhecido. E eu faço perguntas estratégicas para isso.”

Na experiência dele, o resgate das memórias vem com uma carga emocional forte que faz revisitar conceitos, reviver mágoas, reconsiderar narrativas e até incentivar a união e o perdão entre os parentes. Certa vez, ouviu uma situação de infância que tinha pautado toda a relação de uma mulher com a família e que ela nunca tinha contado a ninguém. Ao discuti-la para o livro, a família conseguiu ressignificar o ocorrido e acabou se reunindo pela primeira vez em décadas.

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Escrever para não esquecer

Normalmente, a família escolhe quantos exemplares quer imprimir e guarda-os para si. Em outubro, porém, um livro da editora vai ser publicado e vendido em livrarias pela segunda vez (a primeira foi em 2019). “Essa Estranha Mania de Querer Mais” foi escrito por Marta Goés e traz a biografia de Elena, que nasceu no interior da Bahia e teve uma trajetória repleta de impasses, desejos e conquistas que a levou a São Paulo e depois ao Canadá e Estados Unidos (nesses casos, a editora só faz a ponte entre a família e a livraria e não fica com nenhuma porcentagem da venda).

Nos últimos anos, também veio a vontade de escrever histórias de quem não tem verba para encomendar um projeto (que custam a partir de R$ 30 mil). Depois de uma matéria publicada no jornal Estado de São Paulo em 2019, por exemplo, a editora recebeu um registro de um homem que passou a vida em um sanatório para leprosos em Belém e um caderno escrito à mão sobre a a vida de uma mulher que foi boia-fria em São Paulo, os quais planeja publicar.

“Nossa intenção é conhecer o passado para entender o presente, impedir que culturas familiares se dispersem e garantir que as gerações futuras saibam quem foram seus antepassados e de onde elas vêm. Publicar essas histórias é um modo de não esquecer.”

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