A indústria de jogos nacionais e o jeitinho brasileiro— Gama Revista
Isabela Durão

Como o jeitinho brasileiro criou a indústria de games no Brasil

O podcast “Primeiro Contato” narra como a indústria nacional de jogos sobreviveu a um regime militar, hiperinflação e atrasos tecnológicos para criar uma identidade própria

Daniel Vila Nova 17 de Agosto de 2021

A expressão “jeitinho brasileiro” costuma ser empregada de maneira pejorativa para designar a pior característica da cultura nacional, o desejo de tirar proveito a partir de certa malandragem e desonestidade. Há uma indústria, entretanto, que para sobreviver adotou e ressignificou a filosofia do jeitinho, tornando-a parte integral de seu desenvolvimento: o mercado dos jogos de computador, que se estabeleceu no país em meados da década de 1970, mas enfrentou inúmeras condições adversas que dificultaram o desenvolvimento pleno da indústria nacional.

Em um cenário onde as potências mundiais desenvolviam sua própria tecnologia, o regime militar brasileiro apostou em uma política de reserva de mercado que fechava as fronteiras do país para produtos estrangeiros, buscando estimular a indústria nacional de computador a desenvolver sua própria tecnologia. O tiro saiu pela culatra e o cenário tecnológico brasileiro ficou defasado por anos. “A ideia era desenvolver uma indústria nacional, criar a nossa própria IBM, mas o plano foi conduzido de forma errada. Some isso aos problemas econômicos que o Brasil enfrentava nos anos 1980 e é possível entender porque deu errado”, afirma Henrique Sampaio, jornalista especializado em videogames, ex-editor da revista Mundo Estranho Games e fundador do site Overloadr.

A solução brasileira foi a criação de clones e máquinas não licenciadas baseadas em produtos estrangeiros

Incapazes de comprar a tecnologia de ponta do exterior, a solução brasileira foi a criação de clones e máquinas não licenciadas, todas ilegalmente, baseadas em produtos estrangeiros. “Criar uma arquitetura do zero seria praticamente impossível, então você tinha que replicar o modelo que estava sendo desenvolvido lá fora. Era um processo demorado de engenharia reversa e até você conseguir fabricar os produtos em massa e colocá-los nas lojas, a próxima geração de computadores já havia saído lá fora”, afirma o jornalista. Esse é só um dos exemplos das gambiarras, tecnológicas e legais, que a indústria brasileira teve de adotar para sobreviver. Apesar das soluções criativas, o outro grande problema impedia a popularização dos jogos — todos eram muito caros. Os preços salgados, que continuaram ao longo da década de 80 e 90 e ainda hoje se mostram presente, aliados ao desfasamento tecnológico vivido pelo país tornavam o ato de consumir jogos de computador um privilégio de uma minoria.

Se a reserva de mercado conseguia ser contornada com clones e versões nacionais, a hiperinflação da década de 1980 e começo da década de 1990 apresentaram um cruel desafio para uma indústria que sequer havia se estabelecido de forma oficial no país. Foi nesse contexto cheio de adversidade que surgiu a Brasoft, a primeira empresa brasileira a trazer de forma oficial jogos de computadores para o Brasil. Com direito a uma visita ao Rancho Skywalker e conversa com George Lucas, um dos responsáveis pelo estúdio de jogos LucasArts, a companhia conseguiu licenciar games e publicá-los no Brasil no final de 1990. Os jogos disponibilizados no Brasil não eram os atuais lançamentos estrangeiros, afinal, o país sequer tinha computadores potentes o suficiente para rodar as novidades, mas a publicação oficial foi um passo fundamental no desenvolvimento da indústria local.

Um dos exemplos de gambiarra: as revistas eram isentas de tributação e o CD-ROM, considerado um brinde, também era isento

Com o fim da reserva de mercado em 1991, a disponibilidade de jogos e computadores aumentou de forma exponencial no Brasil. O problema, então, se tornou outro — a distribuição. “As pessoas que moravam em São Paulo encontravam lojas que vendiam jogos, mas e a pessoa que morava no interior?” A resposta, mais uma vez, foi uma gambiarra: as bancas de jornais. “O número de bancas no país é bem maior do que o número de shoppings e de lojas especializadas. As empresas passaram a se aproveitar disso.” Criando as mais variadas revistas de jogos, as companhias colocavam um CD-ROM, que continha um jogo de computador, como brinde de suas publicações. Além de tornar a distribuição do produto infinitamente mais fácil, o método também garantia preços melhores para as empresas. As revistas eram isentas de tributação e o CD-ROM, considerado um brinde, também era isento. Assim, só era preciso pagar pelo licenciamento dos jogos que estavam sendo distribuídos. “A prática gerou muita confusão, mas se tornou tão popular que até mesmo grandes distribuidoras brasileiras como a Brasoft adotaram a estratégia”, relata o jornalista.

A década de 2000 apresenta uma nova lógica da indústria nacional, mais semelhante ao funcionamento das indústrias estrangeiras. Anteriormente, empresas brasileiras como a Brasoft e a TecToy atuavam como intermediárias de corporações de jogos estrangeiras, mas esse modelo de negócio deixou de ser utilizado com o novo milênio. “A popularização da pirataria e a chegada de empresas estrangeiras no Brasil mudam completamente o cenário. É nesse período em que o modelo que conhecemos hoje, em que nosso mercado é dominado por empresas estrangeiras, se inicia”, diz Sampaio.

A popularização da pirataria e a chegada de empresas estrangeiras no Brasil mudam completamente o cenário

Podcast histórico

Essas e outras histórias são contada por Sampaio no podcast “Primeiro Contato”, um documentário que relata as duas primeiras décadas da indústria de videogames nacional. A produção da B9 e do site Overloadr conta com 12 episódios, cada um com cerca de uma hora, e mais de 50 entrevistados. “Conseguia encontrar alguns detalhes do que havia acontecido em revistas e jornais da época, mas sempre havia lacunas. Era como se eu caísse em um enorme limbo.” Se a história das indústrias americanas, japonesas e europeias eram bem documentadas, a narrativa nacional acabava ficando em segundo plano ou sequer era mencionada. “E a nossa identidade? Temos uma história própria, mas se ninguém se propor a contar o que aconteceu, ela será esquecida. O Primeiro Contato surge dessa necessidade de narrar nossa realidade”, diz o jornalista.

Gama conversou com Henrique Sampaio sobre a indústria de computadores no Brasil, a importância da preservação histórica da tecnologia e o futuro dos games em nosso país.

Encontramos maneiras de driblar as dificuldades e ter acesso aos jogos. O jeitinho brasileiro foi uma questão de acessibilidade

  • G |O mercado brasileiro de videogames sempre foi atrasado em comparação ao restante do mundo?

    Henrique Sampaio |

    Sim. O atraso do Brasil no desenvolvimento dessa tecnologia se deu por conta da reserva de mercado estabelecida no final da década de 70. O planejamento ruim fez com que a tecnologia disponível no Brasil fosse limitada a máquinas antigas e nossa indústria teve que aprender a replicar os modelos que estavam sendo desenvolvidos lá fora, pois não tínhamos condições de criar um produto novo do zero. O processo de engenharia reversa, feito para replicar o produto estrangeiro, leva tempo e até você conseguir fabricar esses modelos em massa, uma nova geração tecnológica já foi lançada no exterior. Com isso, estávamos sempre uma geração atrasada.

  • G |Como o atraso e as limitações tecnológicas influenciaram o consumo de videogames no Brasil?

    H.S. |

    O brasileiro sempre encontrou o seu jeitinho de jogar e se divertir com essas máquinas, mesmo que elas não fossem tão potentes. Enquanto o pessoal lá de fora estava jogando o Playstation (lançado em 1994), nós estávamos jogando o Super Nintendo (lançado em 1990). Nós sequer sabíamos que estávamos atrasados, só começamos a perceber quando a internet chegou e tivemos acesso a informações do restante do mundo. Mas esse processo acabou fazendo com que nós desenvolvêssemos um gosto por jogos antigos. O Atari, um console da década de 70, era extremamente popular por aqui na década de 90. Hoje em dia, os jogos mais populares rodam em computadores e celulares mais simples, mas nós ainda jogamos e amamos jogos mais velhos. Faz parte da nossa cultura de videogame.

  • G |Há um discurso sobre videogames que prega por uma isenção política total e absoluta quando o assunto são jogos eletrônicos. O Primeiro Contato, porém, demonstra o quão influentes são temas como política e economia na produção de jogos. Como você enxerga a relação entre esses campos?

    H.S. |

    Esses campos são indissociáveis. O videogame tem esse teor escapista, fantasioso, mas o discurso que prega que o videogame termina em si próprio não faz sentido. Estamos inseridos em um contexto econômico e político, quando falamos de mercado e indústria de games, estamos falando também de economia. No passado, os consoles eram direcionados para as crianças e isso acabou criando uma cultura que não abordava política. Mas assim como as máquinas e os jogos, o público cresceu, amadureceu e evoluiu. Com o Primeiro Contato, quis contextualizar a história brasileira, a identidade nacional do nosso mercado, e apresentar essa perspectiva fugindo da chatice e da burocracia. Se o videogame está incluindo na história política, econômica e social do Brasil, a gente vai acabar falando de conceitos políticos, econômicos e sociais.

  • G |O jeitinho brasileiro sempre estava presente na indústria brasileira de videogames? O quão importante ele foi para o desenvolvimento do mercado nacional?

    H.S. |

    Ele foi bem importante. O brasileiro sempre encontrou uma maneira de ter acesso à tecnologia estrangeira, mesmo que à sua maneira e ao seu tempo. Os clones produzidos na década de 80, por exemplo, foram uma forma de lidar com a tecnologia dentro da nossa realidade. De certa forma, esse é o nosso jeitinho de lidar com as coisas, essas gambiarras. Encontramos inúmeras maneiras de driblar as mais variadas dificuldades e ter acesso aos jogos. O jeitinho brasileiro foi uma questão de acessibilidade.

  • G |Qual é a importância da preservação da história da nossa indústria?

    H.S. |

    Enquanto pesquisava sobre o assunto, percebi que a internet tinha uma série de lacunas. Se quem viveu não conta essa história, ela se perde. É a partir dessa reflexão que se percebe a importância da preservação. Não é apenas uma questão nostálgica, mas é entender quem foram essas pessoas e como elas, dentro daquele contexto de dificuldade e atrasos tecnológicos, criaram a indústria que conhecemos hoje. Lá fora, a história da indústria de cada país está sendo contada de forma ativa. Aqui, não tínhamos quase nada parecido.

  • G |Qual é o futuro da indústria de games brasileira?

    H.S. |

    Eu sou péssimo para falar de futuro, nunca consigo prever o que vai acontecer quando estou assistindo a um filme (risos). Mas, para a indústria de games, eu tenho enxergado um caminho muito interessante. Cada vez mais jogos pequenos e independentes, feitos por equipes pequenas, têm se destacado. Jogos bem autorais que não apenas conseguem superar questões tecnológicas, mas trazem consigo uma identidade muito própria. A falta de incentivo, especialmente no governo Bolsonaro, é cruel. A concorrência lá fora também é difícil. Mas mesmo sem apoio e distantes dos principais polos produtores de jogos, nós conseguimos superar essas barreiras. O videogame brasileiro mostra cada vez mais diversidade e originalidade, aceitando as influências estrangeiras e construindo algo próprio, similar à antropofagia da semana de arte moderna. Nós estamos conseguindo sair do cenário das exceções, os jogos de sucesso agora são a norma e acontecem várias vezes por ano. Apesar de todas as dificuldades, o Brasil está usando o seu jeitinho para se organizar e continuar sobrevivendo.

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