58 — Gama Revista
Guilherme Falcão / Getty Images

58

100 contos que representam diferentes idades da vida. A escritora Olivia Byington apresenta com exclusividade na Gama uma prévia de seu novo livro. A seguir, o texto 58

Olivia Byington 24 de Março de 2021

Faz tempo que tinha desistido de catar material de reciclagem e vender no lixão. Culpa da Guarda Municipal que levou tudo dele. Os cinquenta reais, as roupas e a carroça de trabalho. Agora morava ali quase na frente da pet shop onde a garota do balcão fornecia as caixas de papelão com que ele delimitava sua área.

Deitado na rua se sentia em casa. Desde que foi roubado na última vez, quando ainda morava debaixo da ponte estreita do canal, passou a viver ali. Levaram quase tudo. O que restou estava dentro do carrinho afanado do supermercado que ele mantinha enfeitado com uma boneca encardida, sentada sob a pilha de tralhas. Agora morava ali e passava a noite acordado. Ao amanhecer enrolava as cobertas na cabeça para barrar a luz e pegava no sono. Coitado. Preguiçoso. Dormindo a uma hora dessas. Filha, não olha.

Ele viu a moça puxar a filha de perto dele para atravessar a rua correndo. Estava cansado. Seu pulmão já não dava conta de fazer a troca de ar como devia. Se enchia não esvaziava e quando enchia doía. Seu maior prazer era quando encontrava as guimbas enormes dos passantes que, querendo parar de fumar, jogavam fora o cigarro quase inteiro. Aí sim. Enchia de fumaça com vontade o pulmão doente e tossia satisfeito. Sonhava seguir um cara desses e passar o dia fumando por ele, já que parar de fumar não ia fazer diferença alguma na sua vida miserável. Na última vez que o recolheram, o médico que visitou o abrigo auscultou seu pulmão. Tem que tratar. Não pode mais beber cachaça. Tem que parar com o cigarro e sair da rua.

Mas não fazia frio e ele se sentia bem ali. Com o remédio que conseguia no posto, dormia sem tossir e recebia ajuda de almas boas do bairro. Não eram todos os que aceitavam a sua presença emporcalhada zanzando pelas ruas. Submerso no desacerto da sua vida, embrenhava-se nas latas de lixo, atrás de sobras e migalhas que eram a sua subsistência. A pele estava colada no osso e no saco murcho que carregava no ventre qualquer punhado de arroz e feijão bastava para o dia. Sentia fome de manhã mas nos dias que a loja estava aberta a garota da pet shop rachava com ele o misto quente da casa de sucos. Ela enrolava a metade cortada no guardanapo de papel e quando ele abria os olhos de manhã, estava servido aquele petisco que ele saboreava devagar com os poucos dentes que ainda restavam.

Já não sabia agradecer, não era capaz de se expressar pois tinha perdido a memória das palavras, mas quando ela passava pra ir embora pra casa ele sorria

Já não sabia agradecer, não era capaz de se expressar pois tinha perdido a memória das palavras, mas quando ela passava pra ir embora pra casa ele sorria. Deus te abençoe, pensava, seguindo a moça com os olhos até o ponto do ônibus. Ali ela esperava muito tempo com rosto entretido, iluminado pela tela do celular que ela ia cutucando com dedos velozes. Tinha vontade de cruzar a rua e ir até lá, se sentar no banco com ela e ouvir um pouco a sua voz. Mas nunca ele juntou coragem porque sabia que não era bem-vindo em canto nenhum.

Naquela noite, um carro preto subiu na calçada bruscamente enquanto a porta se abriu. Lá de dentro era cuspida a moça magra e bonita que tentou correr mas o salto da sandália e a calçada esburacada não deixaram. O rapaz que dirigia saltou do outro lado e logo a alcançou envolvendo sua cinturinha magra com um braço enquanto com a outra mão tapava sua boca. Ela ainda conseguiu soltar alguns gritos de pedido de socorro mas ninguém ouviu e o rapaz com seus braços fortes dentro da camisa apertada agora puxava seus cabelos longos e cacheados em direção ao carro. Ela esperneava e se debatia mas não tinha força nem tamanho pra se livrar do muque do rapaz. Com a ajuda da sola do sapato de couro preto o homem chutou e socou de volta a moça do vestido brilhante rasgado pra dentro do carro preto e foi embora fazendo os pneus gritarem também.

Não deu tempo pra nada, nem ele tinha cabeça pra contar pra alguém o que tinha visto. Só restou a vontade de chorar e não se levantar nunca mais dali de onde estava. O dia demorava a amanhecer e sentado no meio fio, relembrava o rosto apavorado da moça. Juntou forças e se levantou pra ver as marcas dos pneus que mancharam as pedras brancas da calçada.

Quando abaixou a cabeça entre os joelhos, viu brilhar a pedra verde, arrodeada de outras muitas pedras brilhantes bem embaixo das seu nariz. Não tinha coragem de mexer naquilo que impunha respeito de tão reluzente. Esticou devagar as duas mãos pra tocar a coisa. É uma jóia. Deve ter caído na hora que ele enforcou o pescoço da coitada. Socorro, me larga, me solta. Vagabunda de merda você vai ver o que vai te acontecer. Limpando a sujeira da rua com cuidado levou a peça entre as mãos até a boneca encardida que assistia sentada no seu carrinho de supermecado. Retirou a cabeça do brinquedo torcendo pra um lado e pro outro e guardou o achado precioso atarraxando de volta a cabeça sorridente da bem-aventurada.

A vida voltou ao que era antes mas ele estava cada vez mais atrapalhado com o ar que não chegava aos pulmões. A fraqueza tinha tirado a sua fome e ele já não fazia questão de se levantar. A moça da pet shop chamou os bombeiros pra ver se ele ainda respirava, quando reparou que naquele dia a metade do sanduíche tinha ficado intacta. Eles demoraram a chegar e ela com valentia foi tocar naquele monte de pano inerte. Desembrulhou duas camadas de cobertores ate descobrir sua cabeça.

Ao abrir os olhos ele pode ver de perto pela primeira vez o rosto da garota. Era uma formosura que parecia feita de chocolate com olhos assustados falando com ele. Os bombeiros recolheram tudo e já iam levando o homem na maca. Ele resistiu e pediu com gestos pra lhe darem a boneca. Era preciso que ela ficasse ali com a sua nova dona. A garota do petshop acolheu o presente agradecida e antes de partir ele viu a boneca sorrir.

Olivia Byington é escritora, cantora e violonista. Publicou “O Que é Que ele Tem” (Objetiva, 2016). O texto “58” é parte de uma série de contos em que Olivia retrata as diferentes idades da vida — do 0 ao 100. Cinco desses textos serão publicados na Gama durante o mês de março de 2021, como uma prévia desse projeto que em breve ela deve lançar em livro.

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