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100 contos que representam diferentes idades da vida. A escritora Olivia Byington apresenta com exclusividade na Gama uma prévia de seu novo livro. A seguir, o texto 29
A gravidez num país desenvolvido como aquele seria ideal. Contariam com a ajuda do governo e todos os incentivos para a empreitada da mudança de vida. Foi no final do inverno, quando o sol voltava a iluminar a escuridão dos dias, que se deu o milagre do resultado, apresentado no bastãozinho barato da farmácia. Ela sabia que a vida ia mudar bastante. Já tinha preparado a mensagem que ia mandar para a família distante. Estava em dúvida se ligava ou se fazia uma chamada de vídeo, mas a emoção era tanta que quanto mais sucinto o aviso, melhor. Escreveu na tela tantas vezes o texto, até disparar a novidade para os pais, os irmãos, os primos e as amigas. Em seguida viria a choradeira, a alegria misturada com a tristeza por todos não estarem juntos.
Ela tinha resolvido morar na terra do marido atrás de segurança e de tudo o que ele tinha direito como cidadão. Nem os dias curtos, nem o frio os faria mudar a decisão de emigrar para tão longe da família dela. Tinham se conhecido no escritório de arquitetura onde trabalharam lado a lado, mas ela desistiu da profissão assim que descobriu a paixão pela ioga. O trabalho de paisagista que tinha conseguido no seu país não dava a ela nem uma leve sombra do prazer que foi descobrir os pranayamas, asanas e mantras que vieram depois. O marido continuou com seus projetos, aproveitando a liberdade das encomendas de um emprego público conseguido em concurso.
Ela se orgulhava dele, dos seus quase dois metros de altura e do seu humor. Aguentavam o inverno pela beleza do branco, pelo aconchego do fogo aceso na lareira de ferro fundido no centro da sala e pelo amor que incendiava as noites. Queria esquecer um pouco de onde tinha vindo, não queria mais se sentir parte do país subdesenvolvido e sem rumo que tinha deixado para trás. Agora a gravidez certificava o seu pertencimento e a defendia do medo de parir num mundo tão perigoso, retrógrado e sem direitos.
A primavera e o verão pareciam não ter fim com o bem-estar de expor ao sol aquela barriga tão redondinha. Seus cabelos foram crescendo junto com a fome, o sono, o cansaço e a saudade da mãe. Um dia sonhou com a melhor amiga com quem tinha tido uma historia de amor e acordou assombrada, suando no meio da noite, pensando nos seios fartos e nas coxas que a entrelaçaram tantas vezes na juventude. Suspirou de alívio quando se virou pra abraçar o marido, dormindo como uma montanha perto do seu corpo. Pensou que não o trocaria por nada no mundo, voltando a dormir.
Aos poucos se dava conta de que ninguém viria para o nascimento do bebê. Perto do Natal a família não teria como se desagregar. Se contentou com a visita da mãe durante o outono com os bosques amarelos que ela amava tanto e a colheita das melhores maçãs que ela já tinha comido. Agora era esperar sozinha. Todos os dias de dezembro foram vividos como os últimos dias de lua de mel do casal.
Logo que ela viu se aproximar a cabecinha careca agarrou-se ao corpinho nu do seu bebe entre soluços de felicidade
Na madrugada da noite de Natal o líquido quente desceu pelas suas pernas e ela pensou que não podia mais segurar aquele xixi, quando se deu conta que era água demais para ser apenas um xixi. Sua barriga já quase tinha entrado para dentro dos quadris alargando a sua silhueta e avisando que queria rebentar o filho tão desejado. O caminho de casa até a maternidade durou uma eternidade dentro daquele táxi, de mãos dadas com o marido tranquilo e preparado para ajudar no trabalho que se iniciava. Entraram pelo corredor envidraçado parando para se sentar nos bancos de madeira clara e respirar durante as contrações. Ouviram o coração do bebê na antessala do atendimento. Aquilo era real e ela aproveitava cada segundo para sentir a revolução dentro do seu corpo, ajudado por suas posturas e mantras. O bebê ia nascer, a hora era aquela, as mãos imensas do marido massageavam a sua, que sumia dentro da concha dos seus dedos. O cordão foi cortado pela tesourada certeira do pai e logo que ela viu se aproximar a cabecinha careca agarrou-se ao corpinho nu do seu bebe entre soluços de felicidade.
Quando a enfermeira tomou-lhe o filho, ela gritou e nem o marido pode conter o gesto determinado da profissional, que não deu espaço para nenhuma objeção. Cuidaram dela, a consolaram dizendo que isso era praxe e que aspirar o bebê, limpá-lo e examiná-lo era imprescindível. Os dois conformados, viram que o relógio já tinha chegado com seus ponteiros ao meio inferior do círculo e estavam coladinhos como eles dois na cama do hospital.
Uma médica entrou, e depois outra, despertando os dois. O bebê tem trissomia do cromossoma 21. Aqui está a cartilha que explica como lidar com ele. Na semana que vem começam os encontros com outros pais que têm crianças com a mesma desordem genética e tudo vai dar certo. O bebê fica com a gente, está em observação por complicações respiratórias. Vocês devem ir para casa.
E eles saíram do hospital pelo corredor de vidro sem a barriga e sem o bebê. Cruzaram a neve espessa que cobria a calçada, entraram num bar e pediram vinho branco. Beberam a garrafa inteira e não tinham lágrimas pra chorar nem muito o que dizer. A noite de Natal seria longa.
Olivia Byington é escritora, cantora e violonista. Publicou “O Que é Que ele Tem” (Objetiva, 2016). O texto “29” é parte de uma série de contos em que Olivia retrata as diferentes idades da vida — do 0 ao 100. Cinco desses textos serão publicados na Gama durante o mês de março de 2021, como uma prévia desse projeto que em breve ela deve lançar em livro.
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