Enquanto o nome bell hooks for chamado, seu legado permanecerá
Ela nos ensinou que o feminismo é para todo mundo, a repensar o ambiente da sala de aula, a amar nossa negritude e a construir nossas subjetividades para além da lógica binária do colonialismo
Meu primeiro contato com bell hooks (1952-2021) se deu por meio da leitura de seus livros sobre amor. Na época, quando tudo parecia estar desmoronando, foram suas palavras que estiveram ali, como quem diz, “eu te sustento”. E parece estranho, agora, estar escrevendo sobre a morte de uma pessoa que eu amo e admiro e venho acompanhando há anos. No entanto, não quero que este texto seja lido como um obituário, mas sim como uma celebração do legado que hooks nos deixa.
Desde que comecei a estudar seu pensamento, aprendi com hooks o poder da consciência crítica, do feminismo negro enquanto projeto de justiça social, a importância de compreender os sistemas de dominação a fim de combatê-los e transformar coletivamente a sociedade e é, de certa forma, impossível descrever o seu impacto na vida de tantas pessoas negras. Em um tempo de adversidades, onde parecia não haver como acessibilizar a teoria feminista – que no auge da década de 1970, ainda estava restrita à linguagem acadêmica-, ela estava ali nos ensinando que o feminismo é, de fato, para todo mundo, a amar nossa negritude e construir nossas subjetividades para além da lógica binária do colonialismo, e a repensar o ambiente da sala de aula.
Ao conversar com amigas, ao ouvir seus relatos durante o luto, presto atenção nas palavras como quem narra a impossibilidade de viver em um mundo sem bell hooks. É impossível mensurar o impacto cultural e intelectual de uma autora tão lida quanto ela. Por isso, devemos celebrar seu legado e honrar sua memória.
Com hooks, aprendi a celebrar o poder do amor, respeitar o tempo do luto e a escrever nossos próprios presentes a partir dos nossos próprios termos. hooks construiu um legado imenso, enquanto professora, escritora, ativista social, crítica cultural, poeta, e, sobretudo, uma pessoa que revelava ao mundo, sem medo, suas próprias vulnerabilidades. Assim, aprendemos a respeitar nossas vulnerabilidades, a entender nossas irmãs, a amar nossas comunidades, a compreender a importância delas em momentos onde a morte parece estar próxima.
Não há hoje como falar de amor sem falar de bell hooks, com sua poderosa visão de que ele nos conduzirá rumo à transformação social
Durante sua obra, inúmeras foram as vezes que hooks escreveu sobre a morte. A morte nunca foi uma presença estranha para ela. Pelo contrário, a morte, diz ela, faz parte da vida. Em “When Angels Speak of Love” (Simon and Schuster, 2011), seu terceiro livro de poemas, ela diz: “depois da morte lenta/ o amor deve limpar a casa/ escolher quais memórias manter/ e quais deixar ir/ dar à cada lamentação/ um ouvido para ouvir/ um coração para descansar/ para que nenhuma alma se esqueça/ da eternidade de desejo que a espera.”
O convite que a obra de bell hooks nos faz é o convite de pensar com e não o de pensar sobre. Durante a vida, hooks buscou interlocutores, debatedores e agentes da transformação social. Ler o livro não bastava, era preciso se engajar no compromisso ético que se coloca em sua obra. Por meio da sala de aula, por exemplo, o legado de hooks permite com que vislumbremos um mundo onde a diferença cultural não organiza sistemas de dominação. E mesmo diante das adversidades, nunca abriu mão do amor como categoria ética e política.
Sempre que falo sobre hooks, lembro-me do emblemático trecho do livro “Salvation” (Harper Collins, 2001): “O poder transformador do amor é o fundamento de toda mudança social significativa. Sem amor nossas vidas são sem significado.” E não há hoje como falar de amor sem falar de bell hooks, com sua poderosa visão de que ele nos conduzirá rumo à transformação social.
A compreensão de que a morte não é o fim torna hooks uma ancestral, alguém que continuará nos guiando em meio às adversidades
Em outro momento de sua obra, em “Erguer a Voz” (Editora Elefante, 1989), hooks diz que sempre que “o nome bell hooks [for] chamado, o espírito de minha bisavó ressuscita[rá]”, falando sobre a escolha de seu pseudônimo e da crença de que um legado que se mantém vivo é um legado sempre lembrado.
Pelos seus ensinamentos, hooks nos ensina a não negociar nossa subjetividade por popularidade e nos convoca a imaginar um mundo sem racismo, sem colonialismo, onde a diferença não resulta em um estranhamento.
Imensurável é o legado que ela nos deixa, ao longo de obras como “E Eu Não Sou uma Mulher” (1981), “Olhares Negros” (Editora Elefante, 1992), “Ensinando a Transgredir” (Routledge, 1994), “Art On My Mind” (The New Press, 1995), “O Feminismo É para Todo Mundo” (Pluto Books, 2000), “Salvation” (Harper Collins, 2001) e “Writing Beyond Race” (Routledge, 2012), apenas para citar alguns dos 40 títulos que ela publicou ao longo de sua trajetória e que podem servir como boas leituras iniciais para quem deseja conhecer a autora.
Receber a notícia de sua morte, com a compreensão de que ela não é o fim, significa compreender que hooks se torna, agora, uma ancestral, alguém que continuará nos guiando em meio às adversidades. Quando comecei a trabalhar com seu pensamento, dando aulas, eu não tinha ainda me dado conta da sua grandiosidade, mas hoje é imperativo que permaneçamos na manutenção de seu legado e de tantas outras mulheres negras que possibilitaram com que hooks escrevesse suas obras e nos influenciasse, de forma tão substancial.
Sabendo da importância da comunidade, bell hooks descansou rodeada de amigos e entes queridos, como quem sabe que lutou a boa luta e construiu bem o seu legado. O legado de hooks permanecerá, para sempre, vivo em nossos corações e, com ela, continuaremos sempre nos movendo rumo a um mundo melhor, como ela sempre nos ensina que é possível. Sem medo, mas nunca sem companhia.
Vinícius da Silva é escritor, artista e tradutor. Graduando em Artes Plásticas (UFRJ), estuda o pensamento de bell hooks desde 2018, traduziu “Salvação: Pessoas negras e amor” e “A Gente é da Hora: Homens negros e masculinidade”, para a Editora Elefante, e publicou vários ensaios sobre seu pensamento. Apresenta o podcast Outro Amanhã, assina uma coluna na revista Ruído Manifesto e é autor de “Fragmentos do Porvir”, que será lançado pela Editora Ape’Ku. Redes sociais: @bioviniciux