Coluna do Observatório da branquitude: Branquitude e supremacia branca — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

“Supremacia branca: a branquitude organizada”

Enquanto a branquitude se acomoda no “invisível”, a supremacia branca se projeta ao visível, se apoia na degradação dos corpos negros e na utilização do medo como uma estratégia de coerção

02 de Julho de 2024

Quando a vida se anuncia árida por aqui, a tarefa de produzir reencantamento passa necessariamente pela arte, em especial pela música e a literatura. Elas permitem mergulhos na fantasia de simplesmente existir num mundo sem hierarquias. Tento deixar em suspenso o fato de que sou uma mulher negra brasileira, num renovar incessante do compromisso de reivindicar humanidade em meio a uma ordem pautada por múltiplas violências na direção de quem somos, em razão da cor da pele.

Na contramão disso tudo, porém, às vezes me arrisco na leitura de um livro ou outro de ficção e em diálogo com meu tema de trabalho, a branquitude. “Puro”, de Nara Vidal, recém-lançado pela editora Todavia, foi o escolhido do momento. Um thriller de terror ambientado nos anos de 1930, numa cidade do interior, eugenista. Com suor nas mãos, prossegui e encontrei uma narrativa inovadora e viciante, em que pese os horrores.

Encontrei com a jovem Delfina Bittencourt que chega à trama dando notícias sobre si e sua linhagem familiar: “(…) Tínhamos pedigree. Basta me olhar. Com essas cores de olho e cabelo, sei dos sobrenomes de tataravós até voltar ao século XVI”. Loira de olhos azuis, a personagem prossegue: “Diferente dos negros que são só filhos de pai e mãe, quando são. Nunca netos ou bisnetos de ninguém”.

Na fictícia cidade de Santa Graça, mobilizada por uma irrefreável sanha de purificação racial e social, Delfina é exemplo de “cidadã de bem”. Em nome de uma suposta superioridade moral, estética, intelectual, supremacista, ela, junto a outros personagens, perpetram toda sorte de práticas de degradação de corpos “diferentes” ao seu.

Esta é a história da barbárie na qual o Brasil está assentado e que precisa — e muito — ser dissecada, seja na produção literária e demais expressões artísticas, seja na produção de conhecimento científico. Em sintonia com o esforço de disputa em seu campo, está o Observatório da Branquitude, na ambição de dar nome e números às estratégias raciais de manutenção de poder, que dão lugar a vantagens aos brancos, e empurram nossas gentes, racializadas, para o precário, o indigno, o desumano.

Em que pontos as noções de branquitude e supremacia branca se aproximam e se distanciam?

Na direção de fazer falar silêncios não mais negociáveis, o Observatório lança o estudo “Supremacia Branca: A branquitude organizada”, disponível a partir de hoje no nosso site, com o intuito de contribuir na revisão desses dois conceitos extremamente caros aos estudos críticos de branquitude. Em que pontos as noções de branquitude e supremacia branca se aproximam e se distanciam? Como a discussão tem acontecido no Brasil, que enfrenta o levante da ultradireita supremacista, cada vez mais visível, ao passo que sua população se afirma negra do ponto de vista censitário pela primeira vez?

Apontamos que enquanto a branquitude se acomoda no “invisível”, a supremacia branca se projeta ao visível, se apoia na degradação dos corpos negros e na utilização do medo como uma estratégia de coerção. Cada sociedade apresenta o seu tipo “branco” de acúmulo de vantagens em relação a outros grupos raciais. No Brasil, o fenótipo branco exerce seus privilégios subjetivos e concentra melhores condições de vida, em todas as regiões do país. A supremacia é como uma manifestação da branquitude, mas por outras vezes é a branquitude que sustenta a supremacia branca.

Mais do que oferecer respostas categóricas, o estudo convida aos que querem conhecer um vasto conjunto de referências ali articuladas de modo sucinto — e nem por isso simplista. A publicação também acena àqueles que quiserem, a partir dela, se aprofundar nas reflexões em torno dos processos de conversão da brancura em branquitude e em supremacia branca, imbricados em ideias corriqueiras de mérito, de uma falaciosa democracia racial, e na propagação do medo e do terror em razão de uma pertença racial que seria imaculada.

São processos que, infelizmente, parecem seguir forjando Delfinas, personagem de “Puro”, mulheres e sobretudo homens que são expressões de uma estrutura racista complexa e que persiste, no Brasil contemporâneo, criando desde assimetrias raciais e sociais, que desfavorecem negros e demais povos racializados, até o radicalismo das células supremacistas identificadas nos últimos anos, clamando por uma pureza, por um modelo restrito de humano.

A pesquisa “Supremacia Branca: A branquitude organizada”, no limite, se coloca no bojo da disputa por sentidos e significados de civilização, recuperando o papel central da persistência das identidades brancas na manutenção de senhorios e da desumanização do outro. Fica aqui, portanto, o nosso convite à leitura, na certeza de continuidade do diálogo e construção em torno de um Brasil que seja capaz de subverter a vocação autoritária, sob a égide do projeto hegemônico da branquitude que a alimenta.

CAROL CANEGAL é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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