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COLUNA

Observatório da Branquitude

Entre ruínas e reconstruções

Em março, celebramos a luta das mulheres ao redor do mundo, mas também enxergamos as contradições dessa mesma luta

21 de Março de 2025

Março é um mês de paradoxos. Um mês em que se celebra a luta das mulheres ao redor do mundo, mas também um mês que expõe, com muita nitidez, as contradições dessa mesma luta. Neste março, tive a felicidade e a responsabilidade de estar na CSW69, em Nova York, acompanhando a delegação brasileira na Comissão da ONU sobre o Estatuto da Mulher, mas sobretudo aprendendo com as nossas mais velhas, mulheres negras históricas em suas batalhas diárias, como Lúcia Xavier e Gilmara Cunha; e também me inspirando com as nossas mais novas, como Luyara Franco e Luana Maria.

Sempre me sinto dividida nesses espaços. De um lado, a empolgação de participar e observar de perto os ritos, as liturgias e a diplomacia de um mundo construído sob a égide da supremacia branca, um espetáculo a um só tempo fascinante e excludente.

Por outro lado, persiste a angústia de saber que esses espaços de poder foram construídos para nos repelir, mesmo que nutramos a ilusão de que a ONU seja um espaço de acolhimento universal. A realidade nos mostra o contrário.

E, diferentemente das feministas brancas, que desde cedo respiram suas regras como ar natural, a nós, mulheres negras, cabe a árdua tarefa de decifrar códigos, simular pertencimento em espaços muitas vezes hostis e, ainda assim, erguer a voz em defesa de nossos direitos.

Qual retrocesso é mais flagrante do que anular o protagonismo de mulheres negras, ao se sustentar um universal branco como norma?

Apesar do entusiasmo pela conexão global e pela diversidade cultural que a CSW proporciona, uma sensação de desalento paira sobre tudo. Como combater uma estrutura que, por excelência, já parece quebrada? Como lutar por mudanças dentro de um jogo onde parecemos ser peças manipuladas por interesses diplomáticos? A prova mais cruel disso foi a exclusão de um parágrafo fundamental da declaração final deste ano. Um parágrafo que reconhecia a contribuição das mulheres e meninas afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades e ressaltava a importância de sua participação plena e equitativa. Esse avanço, conquistado com muito esforço pelo movimento de mulheres negras brasileiras, foi simplesmente descartado. Dizem que foi uma escolha estratégica para evitar retrocessos ainda maiores. Qual retrocesso é mais flagrante do que anular o protagonismo de mulheres negras, ao se sustentar um universal branco como norma?

A CSW69 me evoca a melodia de Caetano: “Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína”. A ruína de um sistema que nos oprime, que nos invisibiliza, que nos nega o direito de sermos protagonistas de nossa própria história. Mas, paradoxalmente, a ruína nos possibilita a construção de um novo mundo, e esse novo mundo que precisamos já foi concebido na “Carta da Marcha das Mulheres Negras 2015“.

A “Carta da Marcha” de 2015 é um documento poderoso que expressa a visão e as reivindicações de nós, mulheres negras, e há uma passagem em particular que resume a essência dessa luta por um “Bem Viver”. Diz assim: “Nossa concepção de Bem Viver é incompatível com o capitalismo racista patriarcal excludente, que nos engessa em espaços sociais de exploração, subalternidade e marginalidade, e que associa qualidade de vida a consumo. Exige, pois, transformações radicais no modelo de sociedade que temos, em sua estrutura e valores. É, portanto, inconciliável com propostas desenvolvimentistas, violentas, exploradoras, privatizadoras e monopolizadoras de saberes e recursos (saberes e fazeres que correspondem ao padrão tecnológico das sociedades, onde tecnologia está relacionada com a arte de decidir bem sobre o território e suas riquezas naturais, materiais e simbólicas)”.

A ‘Carta das Mulheres Negras’ pulsa vida, radicalidade, um caminho ‘fora da ordem’ desse sistema que nos leva ao precipício

Em vez de meras declarações formais, como as que emanam da CSW e de outros encontros da ONU e que frequentemente se perdem em meio à burocracia, a “Carta das Mulheres Negras” pulsa vida, radicalidade, um caminho “fora da ordem” desse sistema que nos leva ao precipício. Ela não se limita a ser um documento estático; é um instrumento vivo, que se recusa a prescrever.

Em novembro deste ano, a segunda marcha reunirá mais de um milhão de mulheres em Brasília, trazendo em sua centralidade o Bem Viver e, de forma igualmente contundente, erguendo a bandeira da reparação.

Essa marcha não é apenas um evento, mas um grito que desafia a própria ordem estabelecida, uma insurreição de amor que se recusa a seguir o compasso da injustiça. É um compromisso visceral com a construção de um mundo onde as vidas negras sejam protagonistas, onde a dignidade seja a melodia que embala nossos passos. Essa ordem, que nos silencia e oprime, nunca nos serviu. Urge habitar “fora da ordem”, não como exiladas, mas como criadoras de um novo compasso, reinventando o ritmo, dançando a liberdade.

MANUELA THAMANI é bacharel em administração de empresas (USP) e mestra em comunicação (USP). Trabalhou em multinacionais, veículos de mídia e fundações. É codiretora executiva do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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