Coluna da Maria Ribeiro: Carta a Fernanda Young — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Carta a Fernanda Young

Você não me deixou sozinha um segundo sequer. A morte, quem diria, depende de quem vive

03 de Maio de 2021

Quando você foi embora, ainda não existia esse lance de protocolo e álcool gel. Álcool “em” gel, corrigirá algum leitor mais purista — não sem razão. Ao que você rebateria com a seguinte frase, antecedida por aquele emoji com a carinha de olhos revirados: “Mor-ro de preguiça desse negócio de ortografia. Coisa mais antiga, elitista… Eu escrevo do jeito que eu quiser, sou livre. Aliás, livre e rebelde, graças a Deus!”.

Concordo. Escrever com liberdade é realmente carimbar de alegria e sentido o bilhete único desse rolê aqui. De fato, ainda não inventaram nada melhor do que o fechamento com a própria pele. “Dor e delicia.” Nunca errou, esse Caetano. Mas ser rebelde… Ah, Fernanda, ser rebelde tem limite. A gente tinha combinados. Planos. Projetos. Pactos. Viagens. Não é assim, não, companheira.

Tudo bem que um dos grandes ativos da nossa amizade era podermos furar almoços e jantares sem o menor traço de cerimônia, mesmo que faltando apenas 15 minutos para a hora marcada. Mas daí a cancelar todas as oportunidades de cancelarmos esses encontros, você vai me desculpar, mas isso agora tem nome duplo, e inclusive tá na moda: chama-se irresponsabilidade afetiva.

De modo, que, sim, estou meio brava com você. Aliás, meio, não. Muito. E, se agora escrevo, é única e exclusivamente por causa do seu aniversário, no último sábado. Cinquenta e um, hein… Claro que não esqueci, garota! Tanto que estou aqui, me valendo do artigo 28 da constituição de Higienópolis, que permite esses pequenos indultos em datas comemorativas.

Vejo e revejo as suas mensagens, entrevistas e posts e passo horas pensando no que você diria sobre esse ou aquele assunto

Para começar, e já que é só por hoje, vou admitir de uma vez: estou irritadíssima de saudade. Com raiva mesmo. Vejo e revejo as suas mensagens, entrevistas e posts e passo horas pensando no que você diria sobre esse ou aquele assunto, o que me dá um trabalho gigantesco.

E depois, o mundo acabou – continua acabando todos os dias, na verdade (e o último episódio ainda não foi nem gravado), mas essa pequena adversidade tornou a sua ausência ainda mais grave. Porque se há uma vantagem (um milhão de aspas aqui) numa pandemia como essa, é justamente a triagem natural, que separa, os personagens, dos figurantes. A existência ganha uma espécie de lupa, e essa é a hora de identificar — e grudar — no seu núcleo da novela. Sua retirada, foi, portanto, mais do que um golpe baixo na dramaturgia.

Você acha que eu to brincando? Que é figura de linguagem? Antes fosse. Somos praticamente os novos dinossauros. O mundo acabou apenas seis meses depois que você saiu. Mas não vem com egotrip, hein? Óbvio que tudo ficou pior sem você — e áudio no WhatsApp passou a ser uma coisa deprimente — mas o asteroide do século 21 chama-se covid-19 e é um vírus de tão mau gosto que não teve nem a esperteza de chegar um pouco antes pra se gabar de dividir o espaço com você. Mas é poderoso, taurina. Poderoso, injusto e avassalador.

Por outro lado, nossos filhos estão ótimos. Tanto os seus, quanto os meus. Não vou desenvolver porque eles não são como a gente, que gosta de aparecer. Nossos jovens adultos são mais discretos e elegantes, rolou um Darwin de categoria ali com aqueles três. Aliás, com os seis – os pequenos também são inteligentes e legais.

Nossa peça baseada no seu Pós-F foi uma experiência incrível, embora, obviamente, muito diferente do que tínhamos imaginado. Em um mês de temporada, mais de 10 mil espectadores nos viram, mas, no teatro, homo sapiens era artigo de luxo. Diante do palco, centenas de cadeiras vazias eram a minha plateia diária. Minha, não. Nossa. Você não me deixou sozinha um segundo sequer. A morte, quem diria, depende de quem vive.

Ao vivo não existe mais. Arriscado e démodé. Mas uma coisa bonita é que a sua turma mata as saudades de você chegando perto dos seus

Eu tô bem. Mika também. Alexandre, Suzana, Eugenia, Bob, todo mundo jogando o futebol possível. Ah, fiquei amiga da sua amiga Mônica, acredita? Figueiredo. No Instagram, claro. Negócio de ao vivo não existe mais. Arriscado e démodé. Mas uma coisa bonita é que a sua turma mata as saudades de você chegando perto dos seus. Por análise combinatória, maior lindeza.

De fofoca está tudo meio fraco. Quer dizer, a Bruna Marquezine está apaixonada pelo filho da Claudia Raia, uma graça, A Anitta eu não sei se ta namorando…Mas ela segue bombando, fez uma foto na frente de um ônibus que virou o hit da semana, você ia curtir. E o BBB termina amanhã. Quem você conhece? Acho que o Fiuk. Com aquela mandíbula do Fabio Jr. Comecei a ver só agora no finalzinho, e fiquei louca com um menino chamado Gil. Você também ia pirar. Mas ele saiu ontem, estou revoltada.

Que mais? O Trump acabou, a rainha Elisabeth ficou viúva, descobri a Maria Homem, e o Kauffman+ fez um filme que o Alexandre amou, e eu, nem tanto. Em compensação, vi uma serie absolutamente brilhante, cujo final freudiano me deu vontade de tatuar um divã no peito.

Falando em tatuagem, estou pensando em fazer mais um rabisco. Mas não tenho coragem de nada muito grande, sou covarde. Às vezes penso até em te homenagear, acredita? Colocar um FY em algum pedaço do braço. Depois mudo de ideia. Vai que a gente briga? Não é porque você morreu que estamos livres de brigar. E eu só acredito em amor que inclui pelo menos um ou dois blocks no histórico da relação. Um unfollow por algumas horas. No mínimo um silenciozinho. Pra você aprender a nunca mais ir embora assim.

Pronto. Comecei. Agora estou de mal até 1º de maio de 2022. Será que até lá vou poder abraçar suas filhas? Ver meus filhos de volta às salas de aula?

Quer saber? Por via das dúvidas, vou voltar a falar o seu texto. Te colocar na minha boca, e fingir que também sou livre e rebelde.

Livre e rebelde, com protocolo e álcool gel.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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