Maria Ribeiro
Antonio Cicero nos levou a lugares que, sem ele, não teriam entrado no mapa
Diante da consciência de uma memória que progressivamente se perderia, como seguir em frente?
Quando soube da morte do Antonio Cicero, achei que tinha ouvido um poema. Antes das informações que vieram a seguir — eutanásia, Suíça, Alzheimer — fui pras suas letras. Pras suas frases. Pra sua cabeça. Pra tudo que ele pôs no mundo antes de apagar a luz.
“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.” “Guardar”, um de seus poemas mais célebres, citado em inúmeros posts e jornais é, de fato, um grande exemplo disso. Do que, supomos — ou não — haver “por baixo das pedras e dos seres”, como dizia Fernando Pessoa.
O mistério (mistério esse que, aliás, não há citação que aplaque, rs).
Fora dele, há a vida. Que não deve, ou não deveria, jamais, ser “guardada”. Ir à padaria, escrever, se apaixonar, ir ao cinema, ficar triste, feliz, pintar paredes, mandar e-mails, lembrar senhas, amores, histórias e, como manda o jogo das certidões, elaborar despedidas. Inclusive, de si.
Antonio Cicero era um sujeito das letras. Dos hits que fez com sua irmã Marina Lima — e também com Lulu Santos e Adriana Calcanhoto — das trocas literárias com seus colegas imortais, dos livros e ensaios que traduziam seu CPF carioca, das falas que revelavam seu pensamento único e brilhante. Seu oxigênio, portanto, estava intimamente ligado ao revolucionário ato de fazer, de papeis, aviões. E nos levar a lugares que, sem ele, jamais teriam entrado no mapa.
Recordações, para artistas — e sobretudo para escritores — são régua, compasso, objeto de trabalho e espelho
Sem isso e diante da consciência de uma memória que progressivamente se perderia. Como, então, ir em frente? E seguir? Recordações, para artistas — e sobretudo para escritores — são régua, compasso, objeto de trabalho e espelho. Falando por mim, uma atriz-cronista, já faz tempo que não sei se o que faço — de uma simples ida ao mercado à uma decisão importante — acontece sem a pressão de procurar dramaturgia e emoções que podem servir à textos e cenas.
Quando meu pai ficou doente, onze anos atrás — e, como Cicero, sua morte também foi orquestrada por ele — demorei a compreender sua decisão de ir embora de forma “não natural”. “Filha”, ele me disse, “ninguém aproveitou isso aqui mais do que eu. E é com esse filme que eu quero ficar”.
Ou seja, não tenho dúvidas de que precisamos, com urgência, falar sobre eutanásia.
Mas, antes disso, e é com esse sentimento que escrevo essas linhas, precisamos falar sobre poesia. Porque “em cofre perde-se a coisa à vista”.
E a coisa é, foi, e sempre vai ser…
A vida.
Para Cao Albuquerque (“todo dia conta”)
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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