Marcelo Knobel
Microscopia de attosegundos: observando a dança dos elétrons
Com a attomicroscopia, os cientistas podem observar o movimento dos elétrons em tempo real, o que antes era impossível
Certamente você conhece o Flash, um super-herói que consegue correr a velocidades sobre-humanas (em algumas histórias já chegou a correr até acima da velocidade da luz, mas não vou me aventurar pelas consequências que isso pode causar no universo dos quadrinhos). As imagens que vemos nos filmes quando ele corre são sempre borradas, pois evidentemente nenhuma câmera existente teria um obturador com velocidade suficiente para poder capturar imagens nítidas do personagem nessa circunstância.
O mesmo problema ocorre quando se tenta “fotografar” elétrons. Mesmo no interior da matéria (seja ela sólida ou líquida) eles viajam tão rápido que poderiam circundar a Terra várias vezes em um segundo. Entretanto, recentemente pesquisadores liderados por Mohammed Hassan (Universidade do Arizona, EUA) publicaram um trabalho na revista Science Advances na qual descreveram o desenvolvimento do primeiro microscópio eletrônico de transmissão (MET) com resolução temporal de attosegundos, capaz de conseguir capturar a presença de elétrons em movimento. Um attosegundo é a quintilionésima parte de um segundo, ou seja, um attosegundo possui 17 zeros antes do número um (0,000000000000000001 segundo).
Os METs convencionais utilizam feixes de elétrons para ampliar objetos milhões de vezes, revelando detalhes invisíveis aos microscópios ópticos. Essa é uma área de pesquisa que tem se desenvolvido muito rapidamente nos últimos anos, permitindo o avanço no entendimento de muitos fenômenos que ocorrem em escalas atômica e molecular. Há alguns anos, quando fui Diretor do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), compramos e instalamos o primeiro criomicroscópio da América Latina, fundamental para estudar materiais biológicos sem que a amostra seja danificada durante o seu preparo, mas esse é um assunto para ser contado em outra oportunidade. Por outro lado, os microscópios eletrônicos ultrarrápidos, desenvolvidos a partir dos anos 2000, empregam lasers para gerar pulsos de elétrons, aumentando a capacidade de o microscópio medir e observar mudanças em uma amostra ao longo do tempo, a chamada resolução temporal.
A attomicroscopia tem o potencial de revolucionar nossa compreensão da matéria em escala atômica, impulsionando o desenvolvimento de novas tecnologias
A resolução temporal em METs ultrarrápidos é basicamente determinada pela duração dos pulsos de elétrons; quanto mais rápido o pulso, menos borrada fica a imagem. Entretanto, até agora, os microscópios eletrônicos ultrarrápidos operavam emitindo uma série de pulsos de elétrons, criando uma sequência de imagens como quadros em um filme. Assim, os cientistas ainda não conseguiam observar as reações e mudanças que ocorrem entre esses quadros, como a dinâmica ultrarrápida dos elétrons. A novidade deste trabalho é que os pesquisadores desenvolveram uma técnica para gerar um único pulso de elétrons de attosegundos de duração (inspirada no trabalho dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 2023), o que permitiu capturar o movimento dos elétrons em tempo real, congelando-os em um único quadro.
A equipe demonstrou a resolução attosegundos de seu microscópio medindo a difração de elétrons em multicamadas de grafeno, um material com propriedades eletrônicas peculiares. Vou tentar descrever o resultado desta pesquisa comparando os elétrons a minúsculos bailarinos num palco de grafeno.
Nesse palco existiria uma área onde os elétrons com mais energia podem se mover livremente, chamada de banda de condução. Quando a luz de um holofote (que corresponde a um pulso de laser) atinge o palco de grafeno, ele energiza os bailarinos-elétrons, promovendo-os para a banda de condução. Esse movimento dos bailarinos-elétrons na banda de condução, impulsionado pelo campo elétrico, causa uma mudança na forma como os elétrons se distribuem pelo grafeno. É como se a música mudasse e os dançarinos na área especial do palco começassem a se mover de maneira diferente, influenciando a coreografia geral de todos os demais bailarinos no palco.
Essa mudança na distribuição dos elétrons afeta a maneira como eles interagem com os elétrons que são “disparados” no grafeno para investigá-lo. A técnica utilizada pelos pesquisadores, chamada de difração de elétrons, funciona como se estivéssemos tirando fotos dos dançarinos com flashes muito rápidos. Ao analisar a intensidade da luz refletida nesses flashes (os picos de difração), os cientistas conseguem entender como os elétrons estão organizados no grafeno. Ou seja, a mudança na “dança” dos elétrons na banda de condução, sob a influência do campo elétrico é refletida na intensidade dos picos de difração. Assim, o estudo mostra que o movimento dos elétrons na banda de condução influencia diretamente a posição e o comportamento dos elétrons em todo o material. É como se a energia e o movimento dos elétrons mais “animados” nessa área VIP ditassem o ritmo da dança para todos os outros elétrons no palco.
Assim, a partir de agora, com a attomicroscopia, os cientistas podem observar o movimento dos elétrons em tempo real, o que antes era impossível. Essa capacidade abre portas para uma compreensão mais profunda dos processos ultrarrápidos que governam o comportamento da matéria em escala atômica e molecular, abrindo portas para uma nova era de descobertas científicas em diversas áreas, como física, química, biologia, ciência dos materiais e muito mais. Essa tecnologia tem o potencial de revolucionar nossa compreensão da matéria em escala atômica, impulsionando o desenvolvimento de novas tecnologias com aplicações em áreas como eletrônica, fotônica, medicina e energia.
Por fim, uma curiosidade: o artigo foi publicado em agosto de 2024, mas o microscópio já aparece no Livro Guiness dos recordes como microscópio mais rápido do mundo.
https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adp5805
https://www.guinnessworldrecords.com/world-records/772179-fastest-electron-microscope
Marcelo Knobel Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro
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