Marcelo Knobel
Ciência cidadã: um caminho para a transformação e o engajamento com a ciência
Quando o público participa de projetos científicos, passa a compreender melhor o funcionamento da ciência e os princípios da metodologia científica
Confesso aqui a minha ignorância. Quando resolvi preparar uma palestra sobre percepção pública da ciência e engajamento da sociedade, me deparei com um conceito que já tinha escutado, mas do qual sabia muito pouco: ciência cidadã. Não tardou muito para eu perceber o quão pouco eu sabia de uma prática tão disseminada, tão interessante, mas que é apenas uma das componentes de um movimento maior conhecido como ciência aberta, que tem o objetivo de aproximar a ciência da sociedade ao fazer os processos científicos e seus resultados mais abertos, acessíveis, eficientes, democráticos e transparentes (vale à pena ler o relatório sobre Ciência Aberta da Unesco, de 2020).
A ciência cidadã, também conhecida como ciência comunitária, envolve a participação ativa de não especialistas em pesquisas científicas, permitindo-lhes contribuir com seu tempo, habilidades e observações para diversos projetos. Com o agravamento das crises globais e o aumento da desconfiança em instituições educacionais e de pesquisa, iniciativas que engajam cidadãos na ciência tornam-se essenciais, fornecendo dados valiosos e promovendo uma compreensão mais profunda das metodologias científicas e da importância da ciência na tomada de decisões informadas. Essa participação ativa não só democratiza o conhecimento, como fortalece a confiança pública na ciência, estabelecendo uma relação mais sólida entre ciência e sociedade.
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A ciência cidadã não é um conceito novo. Charles Darwin, por exemplo, recebeu apoio de naturalistas amadores ao redor do mundo para desenvolver sua teoria da evolução. Esses “cientistas amadores” ajudaram a coletar dados essenciais em um período em que não existia comunicação rápida. Com o advento da internet e das tecnologias móveis, a colaboração científica tornou-se ainda mais acessível, permitindo que qualquer pessoa com um smartphone contribua em projetos de escala global, seja fotografando espécies de plantas e animais, descobrindo cometas, monitorando a qualidade da água em sua região ou mesmo ajudando a categorizar galáxias distantes, só para citar alguns exemplos.
Ao participar de pesquisas científicas, as pessoas compreendem como os cientistas trabalham, a importância da metodologia e o valor da evidência
Hoje existem diversas plataformas online que congregam projetos e jogos baseados nos princípios da ciência cidadã. No campo da biologia, o Foldit, um jogo online para dobrar proteínas, levou a descobertas relevantes para a pesquisa de doenças como a AIDS. A plataforma Zooniverse, uma das maiores iniciativas de ciência cidadã, permitiu a identificação de espécies em extinção e a conservação da biodiversidade. Outra iniciativa é o Old Weather, que mobiliza voluntários para transcrever diários de bordo antigos, oferecendo dados valiosos para o estudo de padrões climáticos históricos. Exemplos como o iNaturalist, que permite que usuários registrem observações da fauna e flora locais, ou o GalaxyZoo, que recruta voluntários para classificar imagens de galáxias, ilustram como a ciência cidadã ampliou sua abrangência e profundidade. Esses projetos demonstram o poder da colaboração em massa, onde a participação de milhares de pessoas resulta em descobertas científicas significativas e beneficia diretamente a sociedade.
A ciência cidadã não só contribui com dados, mas também tem um impacto educativo e cultural. Quando o público participa de projetos científicos, passa a compreender melhor o funcionamento da ciência e os princípios da metodologia científica. Essa experiência prática promove o pensamento crítico e reduz a aceitação de informações pseudocientíficas, sendo uma ferramenta eficaz contra a desinformação. Além disso, ao participar diretamente de pesquisas científicas, as pessoas desenvolvem uma compreensão mais profunda e concreta sobre como os cientistas trabalham, a importância da metodologia e o valor da evidência. Esse envolvimento pode transformar a maneira como as pessoas percebem a ciência, fortalecendo sua credibilidade e sua relevância. Ao envolver cidadãos na coleta e análise de dados, a ciência cidadã oferece uma forma concreta de experimentar o rigor e a imparcialidade que em princípio deveriam caracterizar o trabalho científico.
Inserir a ciência cidadã nas escolas é uma forma de torná-la mais inclusiva e promover o aprendizado científico desde cedo
Apesar de seu potencial, a ciência cidadã enfrenta desafios, como garantir a qualidade dos dados coletados. Protocolos rigorosos de coleta e validação, além de treinamento contínuo, são fundamentais para assegurar a utilidade das informações obtidas. Outro desafio importante é a inclusão de grupos diversos. Projetos de ciência cidadã ainda têm dificuldades para alcançar minorias e comunidades de baixa renda. Para ampliar a participação, é essencial desenvolver iniciativas que envolvam questões de interesse local e sejam acessíveis a todos os públicos. Inserir a ciência cidadã nas escolas é uma forma de torná-la mais inclusiva e promover o aprendizado científico desde cedo.
No Brasil e na América Latina temos a bem-sucedida experiência dos projetos de extensão em universidades públicas, que vêm cada vez mais se consolidando como um pilar fundamental na formação dos estudantes e na vinculação com a sociedade. Ao envolver estudantes, grupos comunitários e o público em geral, essas iniciativas podem ajudar a abordar o desafio persistente de incentivar uma cidadania mais informada e engajada. Infelizmente, por enquanto há relativamente poucos projetos de extensão que utilizam os fundamentos da ciência cidadã.
Mas o futuro é sem dúvidas promissor. Em tempos de mudanças climáticas e crises sanitárias, essa prática pode conscientizar e mobilizar a população para enfrentar esses desafios de forma coletiva. Ao fomentar uma sociedade mais informada e engajada, a ciência cidadã contribui para a construção de uma cultura científica ativa, onde o conhecimento é valorizado e utilizado em prol do bem comum. E isso, sem dúvida, é o maior triunfo dessa prática transformadora que precisa ser mais difundida no Brasil.
Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro
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