As incertezas do VAR: uma análise técnica e quase desapaixonada — Gama Revista
COLUNA

Marcelo Knobel

As incertezas do VAR: uma análise técnica e quase desapaixonada

Quais os limites do uso do VAR, tecnologia em vídeo que auxilia árbitros nos jogos de futebol?

30 de Maio de 2024

Ao escrever o artigo anterior para a Gama (veja: O caso do porsche: Medidas e incertezas), deixei de fundo o rádio ligado na transmissão do jogo de futebol do meu time. Infelizmente ouvi mais uma derrota do glorioso Guarani, desta vez em casa (Campinas, SP), contra a Chapecoense (SC) pela Série B do Campeonato Brasileiro (26/04/2024). Em um jogo marcado por diversos lances duvidosos, o Guarani conseguiu empatar no último lance do jogo, em um chute de fora da área que bateu na cabeça de um zagueiro do time adversário. Após muita confusão, o gol foi anulado com a participação do VAR (acrônimo de Video Assistant Referee), o que gerou protestos da torcida, da diretoria e da cobertura da imprensa.

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) liberou o vídeo com a análise completa do lance (veja aqui) e a minha curiosidade me levou a assistir o vídeo do lance. Após uma detalhada análise dos árbitros auxiliares, eles determinam que o jogador do Guarani estaria poucos centímetros à frente do zagueiro. Além da interpretação duvidosa da regra do impedimento, pois o jogador supostamente impedido não participou do lance, é interessante discutir os limites do VAR em certas situações e as incertezas associadas com uma medida tão complexa e que tem que ser realizada de modo tão rápido. Evidentemente, ilustrei a minha decepção com o meu time, mas certamente vale para diversos lances controversos onde o VAR interferiu diretamente em um resultado, talvez sem considerar as suas próprias limitações.

No vídeo divulgado pela CBF dá para notar a dificuldade dos árbitros auxiliares em determinar, em primeiro lugar, o momento em que o jogador chuta a bola, para ali congelar a imagem. Posteriormente, ao fazer um zoom na região do suposto impedimento, eles buscam a parte do corpo do último jogador da defesa que em princípio determina a linha de impedimento, fazendo então uma projeção vertical até o campo e traçando essa linha imaginária. Finalmente, eles buscam o jogador do ataque que poderia estar impedido, e fazem essa mesma projeção para determinar se a linha correspondente ultrapassa ou não a linha do impedimento. Em um caso como esse, os árbitros dependem apenas de uma imagem, filmada a partir de um único ângulo, e ao fazer a ampliação, nota-se claramente a dificuldade em determinar essas linhas, pois a imagem é um pouco borrada (pela qualidade da câmera e pelo movimento dos atletas) e porque partes dos jogadores estão encobertas por outros jogadores.

Os árbitros dependem de uma imagem, filmada a partir de um único ângulo, e ao fazer a ampliação, nota-se que é um pouco borrada

Há uma incerteza intrínseca que é determinada pela velocidade da gravação, ou seja, o número de “fotografias” por minuto da câmera empregada. Em jogos normais, geralmente utilizam-se gravações com 30 FPS (frames per second, ou fotos por segundo), o que dá então uma imagem a cada 33,3 ms. Como as velocidades dos jogadores, das pernas e da bola podem estar muito elevadas, pode ocorrer (e geralmente acontece mesmo) que o jogador chute a bola justamente entre duas fotografias consecutivas, e não exatamente no instante congelado. Isso leva a uma incerteza inerente da medida estimada – que fique claro que é uma estimativa. Considerando que os jogadores possam se mover, por exemplo, a velocidades da ordem de 10 km/h (aproximadamente 3 m/s), a incerteza na escolha entre duas imagens consecutivas pode ser da ordem de 10 cm. Essa incerteza é maior se as velocidades forem maiores. Essa incerteza deve ser ainda somada à incerteza dos pixels da imagem, que dependem da qualidade da câmera utilizada. Além disso, existe a paralaxe na visualização, que ocorre quando enxergamos algo em um único ângulo específico, o que dificulta ainda mais as medidas. E ainda devemos somar a tudo isso o fato de que as decisões são feitas às pressas, para que o jogo seja interrompido pelo menor tempo possível.

Ao observar essa gravação, e tantas outras disponibilizada pela CBF, fica evidente a dificuldade nessa determinação em jogos cotidianos, ainda mais da série B, onde os árbitros auxiliares somente utilizam uma câmera para realizar a medida. Em jogos da copa do mundo ou jogos de alto nível, por exemplo, há diversos ângulos disponíveis, e geralmente as transmissões são feitas em velocidades maiores (60 FPS ou mais) e com resolução melhor (chegando a 4K, por exemplo). Aí é possível realizar uma reconstrução tridimensional da cena, e ter um pouco menos de incerteza. Mesmo assim, simulações realizadas em ambiente controlado, com câmeras especiais e reconstrução 3D indicaram que não é sempre possível ter a precisão desejada em lances complicados (veja aqui).

Considerando essas questões técnicas, as linhas do VAR deveriam ter mais do que a resolução de um pixel, e deveriam ser largas o suficiente para refletir a incerteza da medida, e assim só considerar impedimento quando essas linhas não se sobrepuserem. Geralmente nesses casos deveria continuar valendo a regra do impedimento, de que em caso de dúvida, a regra geral é dar o benefício da dúvida ao atacante. Isso significa que, se não estiver claro se um jogador estava em posição de impedimento no momento do passe, a decisão deve favorecer o atacante. Além disso, a regra do VAR também indica claramente que “a decisão original dada pelo árbitro não será alterada a menos que a revisão do vídeo mostre claramente que a decisão foi um ‘erro claro e óbvio’.” (grifo meu). Com esses ajustes, já previstos nas regras, o jogo seria menos interrompido, e muitos resultados seriam mais justos. Isso não vai acabar com as discussões, que afinal também fazem parte desse jogo que é movido por polêmicas e paixões!

Ver também:

Margem de erro do VAR pode ser de 10 cm a meio metro, explica especialista em tecnologia de rastreamento

Marcelo Knobel Marcelo Knobel é físico e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp. Escreve sobre ciência, tecnologia, inovação e educação superior, e como impactam nosso cotidiano atual e o futuro

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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