Marcello Dantas
Reciclagem humana
Precisamos começar a repensar o que o nosso corpo produz e como aproveitar esses recursos
Sustentabilidade virou um mérito parecido com alguém que chega numa reunião e diz “hoje tomei um banho”. Neutralização através de compra de créditos de carbono seria equivalente a essa pessoa dizer “paguei meus impostos”. Simplesmente o mínimo que podemos fazer é tentar ser sustentáveis, mas está longe de ser suficiente. Precisamos reverter um quadro de inviabilidade crônica da espécie. Mas afinal, qual seria a fronteira mais absoluta dessa afirmação nos tempos atuais?
A resposta surgiu pra mim na Dutch Design Week, em Eindhoven, na Holanda. Onde jovens designers se reúnem anualmente para apresentar novas ideias para o mundo. Se precisamos pensar em reduzir radicalmente nosso impacto, reciclar tudo o que pudermos e dar nova vida a todos os recursos, talvez a fronteira mais inexplorada seja o corpo humano. Os recursos produzidos por nosso corpo, como cabelos, pele e urina, por exemplo.
Human Material Loop pesquisa possibilidades de uso dos materiais do corpo humano para outras finalidades. O coletivo vê o cabelo humano, que geralmente vai para o lixo após um corte, como um biomaterial valioso. Além de novos métodos de tecelagem, o Studio Zsofia Kollar estabeleceu uma rede de cabeleireiros em Amsterdã que doam seus cabelos cortados. Com essa infraestrutura instalada, o único limite é a imaginação e a engenhosidade dos designers e as normas das indústrias têxtil e da moda.
Outra proposta mirabolante é um projeto de mídia e comunicação que tem como lema: “Não vamos desperdiçar o ouro do nosso corpo”. Ouro, no caso, é a urina. Baseada na criação de cosméticos feitos com a ureia originada na urina humana, Kim Winder criou um sistema de compra, venda e reciclo na forma de um creme cosmético para a pele. Um produto de boa qualidade e bem apresentado em embalagens pequenas e bonitas. O comprador pode não apenas comprar o cosmético, mas se quiser uma redução de preço, oferece a sua própria urina para a marca U’re IN e ganha o desconto no produto novo. A campanha é engraçadíssima e o sentido de que tudo pode ter um novo tipo de reuso. O potinho de urina entregue vale um desconto de 24 euros no produto. Nada mal, você nunca mais vai urinar da mesma forma.
Nossos corpos são os maiores causadores de impacto no planeta
A ideia de reciclar os resíduos humanos de forma mais radical vem do fato que são os nossos corpos os maiores causadores de impacto no planeta e que deveríamos começar olhando para nós mesmos como um manancial de oportunidades de ressignificação. Esses conceitos podem ser tão antigos quanto biodigestores de fezes que geram gases que se transformam em energia elétrica. Ou a geração em cultura biológica de pele humana para substituir a pele destruída por queimaduras ou em cirurgias, ou ainda, para evitar testes em animais como a marca Natura optou, ao fazer seus testes em peles organicamente criadas em laboratórios.
Até propostas como o que fazer com nossos corpos depois de mortos, ou mesmo o uso das unhas cortadas de suas mãos, que normalmente vão direto pra lixeira. Se você tem um jardim, essas unhas podem realmente ser um ativo vital para o crescimento de flores. A Keratina contida na unha pode ser um ingrediente que acelera e fortalece as plantas que dão flores. E sobre o que fazer após a morte? O corpo humano acumula uma incrível quantidade de toxinas durante a vida. Quando o corpo é cremado, o que tem um custo energético enorme, ou enterrado, essas toxinas são liberadas de volta ao meio ambiente.
Jae Rhim Lee criou um traje funerário de cogumelo, é uma malha biodegradável feita com esporos de cogumelos. Os esporos são disseminados no tecido para ajudar a decompor o corpo e filtrar as toxinas dele para que não contamine a vida vegetal ao redor depois que um corpo for enterrado nele. Gradativamente, o corpo humano se transforma em micélio e, eventualmente, em cogumelos. Os fungos têm um potencial de utilizar os nutrientes no tecido humano e remediar toxinas industriais no solo.
Se regenerar parece ser a única saída para a nossa espécie, precisamos começar a aprender a repensar os nossos próprios recursos humanos.
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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