COLUNA

Francisco Brito Cruz

Soberania requer mais que cumprir ordem da justiça

Não é apenas impor multa ou bloquear uma plataforma. É expandir a caixa de ferramentas, adquirir mais instrumentos cirúrgicos adequados a situações complexas

07 de Agosto de 2025

A recente imposição de tarifas dos Estados Unidos contra o Brasil, motivada pela atuação do Judiciário brasileiro, recolocou a soberania digital no centro do debate. O embate entre Donald Trump e o Judiciário escancarou uma tensão: a de um país no qual a soberania é quase exclusivamente exercida pela aplicação da lei no Judiciário. A aplicação da lei local às gigantes digitais é fundamental, claro. Mas ela devia ser o ponto de partida de projeto de soberania digital, não seu ponto de chegada. Precisamos de muito mais, e para ontem.

Para além da menção ao processo criminal envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro, Trump afirmou que a taxação era uma reação a ataques ao direito de liberdade de expressão de estadunidenses. Na sua carta, falou que os ataques são “ilustrados” pela emissão de “centenas de ordens de censura (…) a plataformas de mídia social dos EUA, ameaçando-as com multas milionárias e expulsão do mercado brasileiro de redes sociais”. Do lado brasileiro, a resposta foi que condicionar sanções ao funcionamento do Judiciário é inaceitável. E é mesmo.

No caso do cumprimento da lei brasileira, o Judiciário já entrou nesse mérito algumas vezes com muito vigor. Em algumas delas com razão, em outras não. Razoável é asseverar o cumprimento da lei dentro do território nacional e em casos que tenham preponderantemente efeitos no Brasil. Sem sentido é agir tentando projetar a jurisdição brasileira quando há conflito relevante com outra.

Desde os bloqueios de serviços como YouTube e WhatsApp, passando pelo julgamento da constitucionalidade do acordo de cooperação jurídica entre Brasil e EUA (contestada por empresas de tecnologia americanas), o padrão de tensão se repete: diante da dificuldade de cooperação internacional ou da resistência das empresas, o Brasil aciona diretamente sua jurisdição, reforçando a aplicação da lei nacional.

É verdade que em certos casos o Supremo já estressou essa linha (pedindo remoções “globais”), mas eles parecem mais parte de uma onda do que uma tendência. No caso mais rumoroso em voga e que parece embasar a crítica dos EUA, a plataforma Rumble não foi explicitamente obrigada a fazer uma remoção “global” de perfil como alegou quando entrou com ação contra o ministro Alexandre de Moraes. A empresa disse que ordens judiciais para suspender perfis violariam a liberdade de expressão garantida nos EUA, mas desconsiderou que poderia, como fazem concorrentes maiores, limitar o cumprimento da ordem ao território brasileiro. Ainda, agravou a situação com argumentos de resistência que soam como ficção, como o que uma plataforma que veicula conteúdo em português para brasileiros “não opera no país”. Cumprir a lei no território nacional em casos com evidente conexão preponderante com o Brasil é o básico.

Mas o básico é pouco, e acaba por dar uma caixa de ferramentas extremamente limitada para proteger os direitos no país. Como se diz, para um martelo tudo é prego. E isso pode ser diferente.

Esse tipo de atrito não acontece por acaso. Ele é sintoma de um problema maior: a falta de opções para proteger direitos no Brasil. Em um cenário em que o Estado dispõe de poucos instrumentos regulatórios, a jurisdição vira a única ferramenta disponível. A Justiça será acionada de forma reiterada, até desgastar sua legitimidade.

Em um cenário em que o Estado dispõe de poucos instrumentos regulatórios, a jurisdição vira a única ferramenta disponível. A Justiça será acionada de forma reiterada, até desgastar sua legitimidade

Depender exclusivamente da jurisdição significa viver de conflito em conflito, esperando que cada problema vire um processo, uma ordem de remoção, uma multa ou um bloqueio. De um lado, empresas que dizem que as autoridades fazem requerimentos incompletos, inconsequentes ou abusivos. De outro, um Judiciário provocado por uma multiplicidade de demandas complexas. Falta um horizonte de discussão de política pública, falta sair do caso a caso. Faltam regras claras sobre assuntos que raramente aparecem nos conflitos sobre a expressão, como algoritmos, governança de dados, publicidade, concentração de poder econômico e avaliação de impacto sobre direitos humanos.

Como escrevi numa coluna recente, a maré virou. Se princípios são encarados como barreiras comerciais, o tempo em que bastava o Judiciário agir reativamente e quando provocado já passou. A atuação das plataformas se tornou estrutural demais para depender só do martelo do juiz na ponta de cada caso concreto. É preciso discutir modelo de negócio, incentivos perversos, desigualdades de acesso e concentração de dados. E isso exige entender que a defesa da soberania começa na jurisdição, mas deve se estender para uma governança técnica e independente dos serviços e mercados digitais. Essa necessidade de reforçar mecanismos de governança sobre esses negócio se intensifica num cenário em que a gramática do debate internacional também está mudando. Como já argumentei, se a retórica da liberdade de expressão passa a ser usada para blindar interesses comerciais é estratégico ampliar a capacidade das instituições para ver além dos conflitos relacionados à expressão.

É crucial reforçar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica para encarar conflitos de poder econômico no digital; a Autoridade Nacional de Proteção de Dados para fiscalizar violações à proteção de dados, encabeçar um sistema para supervisionar o uso de inteligência artificial e dar conta de serviços digitais com modelos de negócio baseados em dados; a Agência Nacional de Telecomunicações para dar conta de nossas infraestruturas; e a Secretaria Nacional do Consumidor para liderar o sistema de proteção do consumidor no digital. E são só algumas agências. Essas instituições precisam de leis novas, mas mais do que isso: precisam de técnicos qualificados, estrutura independente e prioridade política. Precisam de instrumentos de coordenação, troca, aprendizado, valorização.

Isso porque soberania na internet não é apenas impor multa ou bloquear uma plataforma. É expandir a caixa de ferramentas, adquirir mais instrumentos cirúrgicos adequados a situações complexas. Se proteger a jurisdição limpa o terreno, fortalecer nossas capacidades institucionais e a governança cria um campo estratégico para proteção dos direitos no digital.

Francisco Brito Cruz é advogado e professor de direito do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), com foco em regulação e políticas digitais. Fez seu mestrado e doutorado em direito na Universidade de São Paulo (Usp). Fundou e dirigiu o InternetLab, centro de pesquisa no tema.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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