Coluna do Fernando Luna: "Sim, a culpa é minha" — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Sim, a culpa é minha

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre crime e castigo rodoviários, uma peregrinação pelo velho oeste selvagem, o encontro do ChatGPT com a contracultura e o chocolate como filosofia de vida  

04 de Abril de 2023

Continuaremos guiando por toda a noite até a aurora

Allen Ginsberg, 1953

Quem circula por São Paulo notou uma piora recente no trânsito – sim, a culpa é minha.

Em parte, ao menos. Depois de sete meses longe do volante, voltei a dirigir. Antes de engatar a segunda marcha e seguir adiante, melhor esclarecer o motivo da ausência temporária: minha CNH tava suspensa.

Injustamente suspensa. Todos dizem isso, imagino, mas olha só.

Primeiro, esqueci que era dia de rodízio. Meses depois, onde eu tava com a cabeça?, esqueci outra vez e saí novamente por aí com a pureza dos inocentes. Não lembrava de nada, juro, até as câmeras da CET refrescarem minha memória.

Aí passei a 50 km/h onde a velocidade máxima permitida era 40. Repeti a mancada no mesmo lugar, ajudando a calibrar o radar recém-instalado. Duas fotos do meu carro em papel timbrado do Detran me ensinaram que as coisas tinham mudado no sentido centro-bairro da avenida Doutor Arnaldo.

Uma pessoa leviana poderia concluir às pressas que não se tratou de injustiça.

Afinal, regra é regra. Se foi ignorada por esquecimento ou distração, lamento. Esquecimentos e distrações podem atrapalhar tanto quanto má-fé e espírito de porco a já suficientemente miserenta vida em sociedade.

Concordo. Porém, ah, porém, há um caso diferente: buzina.

Veja bem, detesto buzina. Até aquela que os sorveteiros usavam na época do Chicabon. Pois logo eu – que possivelmente sofro de uma não diagnosticada misofonia, a aversão patológica a certos sons – fui multado por buzinar.

Claro que dessa vez a notificação chegou sem foto.

Nem vem justificar que não dá pra fotografar o som da buzina. O que não dá pra fotografar é uma coisa que não aconteceu. E isso não aconteceu há cinco anos, quando bastavam 20 pontos pra suspender a carteira.

(Fico imaginando quantas velhinhas na faixa de pedestres é preciso atropelar pra bater os atuais 40 pontos regulamentares do Código Nacional de Trânsito.)

Meu recurso e a pandemia adiaram até agora o desfecho disso tudo, mas a aurora chegou – como no passeio noturno do “Automóvel Verde”, de Allen Ginsberg, que cruza o poema como quem cruza a existência.

O som do silêncio é toda a instrução que você receberá

Jack Kerouac, 1956

A placa verde informa em letras brancas: cidade de Marfa, população 1.788 habitantes.

Exagero chamar de cidade um lugar perdido no meio do deserto de Chihuahua, mas enfim. Dirigi sozinho 700 quilômetros pelo interior do Texas pra chegar lá.

Era o oposto complementar da semana anterior, consumida em intensidade máxima num gigantesco festival de inovação – um vórtice exaustivo de pessoas, ideias, filas e encontros.

O caminho materializava a promessa de quietude.

A estrada reta, horizonte quase monótono de tão vasto, ficava cada vez mais vazia. Um trailer aqui, um cervo ali, um caminhão de 18 rodas parado no acostamento, um porco-do-mato cruzando as duas faixas da Rota 67.

Trilha sonora a caráter: America toca “A Horse with no Name”, Johnny Cash murmura “I Walk the Line” e Neil Young geme “Heart of Gold”. Mais que música de viagem, canções sobre viagens interiores – playlist acidental de uma peregrinação laica, como se Santiago de Compostela ficasse no velho oeste selvagem.

Não fui encontrar Jesus na goiabeira, porém.

Tava atrás da arte monumental que Donald Judd começou a instalar ali em 1979, quando cansou do burburinho de Nova York.

O primeiro trabalho foram quinze conjuntos de dois a seis retângulos de concreto, cada um com 5 metros de comprimento, 2,5 de largura e 2,5 de altura, tudo alinhado a céu aberto por um quilômetro.

Anos depois, chegaram doze obras de Dan Flavin, enchendo seis barracões inteiros apenas com luzes artificiais coloridas – o avesso perfeito daquela concretude cinzenta ao ar livre.

Finalmente, Robert Irwin reergueu das ruínas um hospital, criando uma edificação dividida ao meio: uma ala clara, outra escura. Ambas vazias, a não ser por telas brancas e pretas esticadas como paredes.

Nada de representações ou metáforas. Apenas os objetos em si, com peso, massa, volume, cor e nada mais. Não tagarelam nenhuma mensagem ao visitante, não guardam nenhum segredo da existência.

Ali, como no haicai do beatnik Jack Kerouac, “O som do silêncio/ é toda a instrução/ que você receberá”. Um antídoto pra ansiedade.

Você não é uma gota no oceano, é um oceano inteiro numa gota

Rumi, século XIII

– Rumi?! Você tá num retiro espiritual?

– Não exatamente. Mas quem lembrou dele foi o Deepak Chopra, numa palestra sobre cogumelos mágicos.

– Então deve ser um workshop sobre contracultura dos anos 1960, aquela conversa New Age que mistura orientalismo, alteração de consciência e tecnologia: essa turma adora o poeta e teólogo persa.

– Quase isso: vim pro South By Southwest, o maior festival de inovação do mundo, que arrasta todo ano mais de 60 mil pessoas pra Austin, no Texas.

– Em vez de poesia, não deviam falar de inteligência artificial, Web3 e metaverso, essas coisas que ninguém entende direito, mas impressionam num Power Point?

– Tem muita gente falando disso também, como o Greg Brockman.

– Greg quem?

– Brockman, fundador da OpenAI. Talvez, daqui a uns anos, Greg Brockman seja um nome tão familiar como Steve Jobs e Mark Zuckerberg.

– Ele inventou um iPhone que não quebra a tela? Uma rede social que não dissolve as entranhas dos usuários?

– Nem tanto. Sua empresa revolucionou o uso da inteligência artificial, com o ChatGPT.
Aquela ferramenta digital que cria textos surpreendentemente elaborados, usando basicamente todas as informações disponíveis na internet.

– O nome disso não é Google?

– Tá um passo adiante, vai lá testar. Cem milhões de pessoas fizeram isso em apenas 2 meses, a aplicação digital com crescimento mais rápido na história: o TikTok, ex-recordista, levou 9 meses pra atingir esse número.

– Hum, esse texto foi escrito pelo ChatGPT?

– Quem dera. Sobraria mais tempo pro festival: são mais de 2 mil sessões, palestras, paineis e mentorias em 10 dias.

– Já cansei.

– Mas dá pra dividir esse bonde todo em três grandes grupos: os que querem salvar o planeta com a tecnologia (team ativista Boyan Slat), os que querem salvar o planeta da tecnologia (team escritor Douglas Rushkoff) e os que querem simplesmente salvar a gente (team psicoterapeuta Esther Perel).

– Nossal, tô me sentido uma gota no oceano.

– Imagina, você é um oceano inteiro na gota.

Não há mais metafísica no mundo senão chocolates

Álvaro de Campos, 1928

Chocolate abre parênteses em qualquer crise existencial.

Tem a ver com seus flavonoides, explica a ciência. Esse composto antioxidante tira a serotonina pra dançar no seu cérebro, colorindo a massa cinzenta até ser metabolizado e sumir do seu organismo.

Deve ser verdade, mas prefiro a explicação poética de Álvaro de Campos, o feat. mais angustiado de Fernando Pessoa.

Sua “Tabacaria” deve ser a melhor descrição duma crise existencial em toda a poesia – e olha que a poesia já começou com uma crise existencial, Aquiles recolhido em sua tenda e acabrunhado com seu chefe, na “Ilíada”.

Em 167 versos, um eu-lírico macambúzio enfileira a mais bela profusão de coitadismos da língua portuguesa: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada”, “Falhei em tudo”, “Serei sempre o que não nasceu para isso”.

O único alívio do poema é, adivinhou, um chocolate.

A gulodice aparece numa estrofe sorridente como os parênteses que a separam do resto do texto: “(Come chocolates, pequena: come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”.

O poeta fecha parênteses um pouco adiante, desembrulhando a doce metáfora: “Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida)”.

Lembrei disso tudo ao ler não apenas uma, mas três notícias amargas envolvendo o cacau e suas variações.

Primeiro a Pan, após transformar seus cigarrinhos de chocolate em banais rolinhos de chocolate e, depois, em desapontados lápis de chocolate, decretou a autofalência.

Ato contínuo, o Toblerone escancara uma crise de identidade: revela que sua embalagem não vai mais estampar o Matterhorn, montanha suíça de onde saiu seu próprio formato triangular.

Finalmente, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica anuncia que vai julgar a compra da Garoto pela Nestlé, após assistir passivamente por 21 anos a lenta adulteração da caixinha amarela da minha infância.

Melhor fechar o jornal e abrir um chocolate.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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