Coluna do Fernando Luna: A vida não te visita duas vezes — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

A vida não te visita duas vezes

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre anfitriões que deixam seus convidados descalços, um roteiro lírico e sentimental de Lygia Clark, a meia-idade por inteiro e as lições caninas pra seus tutores

29 de Abril de 2024

A vida é um desses convidados que não te visita duas vezes

Kabir, século 15

Existem dois tipos de anfitriões: os que exigem que seus convidados tirem os sapatos antes de entrar e os que são razoáveis.

A não ser que a casa em questão seja um templo oriental, com tradições milenares de abluções e pés descalços, ou uma sala de cirurgia, com protocolos de combate à infecção hospitalar, esse dress code ao rés-do-chão me parece exagerado.

Ainda assim, cada vez mais comum.

E, pior, sempre sem aviso prévio. Sem chance de cortar as unhas, tratar a frieira, escolher uma meia sem furos ou um calçado que, descalçado, não vire arma química. Pra que isso?

Será nojinho?

Nossa, muito sujo o mundo lá fora. Vamos amontoar os conguinhas superfaturados perto da porta e ficamos a salvo dos germes. Tenta ignorar que o gato usou a caxinha de areia antes de subir no seu colo. E não foi xixi.

Será um rebote tardio da pandemia?

Depois de meses esfregando as compras de supermercado com álcool em gel, o estresse pós-traumático descambou pra mania de limpeza. Melhor, então, supender também o beijo na boca, com seus 80 milhões de bactérias.

Será preguiça de faxina?

Se o endereço não for uma rua de terra e estiver chovendo, um capacho costuma dar conta de remover o que quer que esteja nas solas alheias. E uma vassourada pela casa de vez em quando é recomendável.

Será telúrico?

Até me comove conectar com a Pachamama, sentir o Chi do planeta ou aterrar a energia. Mas só quando tô pisando na grama – jamais num porcelanato esmaltado instalado no décimo quinto andar.

Será tara?

Pessoalmente prefiro outras partes dos meus convidados despidas, mas podolatria é um fetiche relativamente comum. Proibir calçados pode ser um jeito esperto de enfiar todo mundo na sua suruba sem dar bandeira.

Aprende com o Kabir, poeta medieval indiano que influenciou de Yeats a Pound: “A vida é um desses convidados que não te visita duas vezes”. Melhor não a aborrecer com suas manias.

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, frequentá-la

João Cabral de Melo Neto, 1966

Arte é uma máquina do espaço-tempo: você até sabe de onde parte, mas nunca conhece o destino.

Dessa vez, saí de São Paulo, fiz escala na França, conexão no Japão e passei pelo sertão – antes de cair em mim.

Comecei na exposição da Lygia Clark, na Pina Luz.

A mostra acompanha sua desconstrução, literalmente: das pinturas construtivas às práticas terapêuticas. Ela desvia da pedra no meio do caminho entre artista e público ao criar “objetos relacionais”.

O primeiro deles foi “Pedra e ar” – uma pedra sobre um saco plástico, com a abertura amarrada pra prender o ar lá dentro.

Manipulado, o objeto inanimado se anima. Contrai e expande como um bicho vivo, respirando. A pedra sobe e desce, matéria mais densa interagindo com a matéria mais etérea. Uma era geológica inteirinha na palma da sua mão.

Na galeria, tocava “If you hold a stone”.

Caetano Veloso fez a canção depois de seu primeiro encontro com Lygia, em Paris. Sobre a melodia de “Marinheiro Só”, ele canta: “If you hold a stone/ Hold it in your hand/ If you fell the weight/ You’ll never be late to understand”.

Isso me lembrou uma fala do longa japonês “A Partida”, vencedor do Oscar de melhor filme internacional em 2009:

– Antes de inventarem a escrita, as pessoas usavam uma pedra pra representar seus sentimentos. Uma textura lisa, por exemplo, significava tranquilidade; rugosa, preocupação com os outros.

O protagonista guarda, desde a infância, a pedra que ganhou do pai. Foi o dilálogo mais íntimo que tiveram.

Pensei, então, na educação pela pedra, “sertaneja e pré-didática”. Quando voltei pra casa, reli o poema de João Cabral de Melo Neto e me dei conta de que é do mesmo ano que “Pedra e ar”.

Diante da coincidência, telefonei pro meu pai, um nordestino mineral que, como tantos nordestinos, estudou pela “cartilha muda”: para aprender a pedra, frequentá-la; you’ll never be late to understand.

No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída

Dante Alighieri, circa 1305

Não bastasse “crise” ser a palavra mais associada à meia-idade, agora ainda tão dizendo que dura dos 35 aos 75 anos – a meia-idade, não a crise.

Pelo menos é o que defendem alguns estudiosos do assunto, esticando consideravelmente o período que o senso comum costuma situar ali ao redor dos quarenta e tantos anos – e que carrega uma reputação deveras ruim.

Sempre achei que a crise da meia-idade era uma invenção do Dante.

Culpa de seus versos mais conhecidos, logo na primeira estrofe do primeiro canto da “Divina Comédia”, com aquela metáfora soturna: “No meio do caminho desta vida me vi perdido numa selva escura, solitário, sem sol e sem saída”.

Ele tinha uns 40 anos na época, o que reforçava minha teoria.

Mas, pensando melhor, a expectativa de vida na Europa da Idade Média mal passava de 30 anos. Ou seja, Dante já era praticamente um ancião. O tal meio do caminho tinha ficado pra trás há tempos – ele morreria aos 56 anos, em 1321.

Talvez por não poder comprar uma motocicleta grande e barulhenta, jogar beach tennis ou fazer uma tatuagem vagamente tribal, restou arriscar esse papinho pra tentar se passar por titio-moleque. Imagino os vizinhos: “Meio do caminho… quem o velhote quer enganar?”.

Pois descobri que o poeta florentino é inocente. A culpa é de um psicanalista canadense.

Foi um certo Elliott Jaques quem deu nome, em 1965, à crise de meia-idade. Graças à medicina e ao saneamento, finalmente havia um número considerável de pessoas sobrevivendo por tempo o suficiente pra alcançar essa insatisfação – com a vida, em geral, e com a dor no ciático, em particular.

O auge da aflição, de acordo com as pesquisas, chega aos 47 anos e 2 meses.

Não abandonai toda esperança: a partir daí, a curva da felicidade começa a subir lentamente, até que você passa a se sentir melhor que nunca – ou, vá lá, até que seja incapaz de lembrar como eram as coisas antes.

O pássaro um ninho, a aranha uma teia, homem amizade

William Blake, 1793

O cachorro é o melhor amigo do homem – mas só porque esse posto tá vago.

O homem, a espécie não o gênero, tem cada vez mais dificuldade pra se enturmar com seus semelhantes. Uma pesquisa realizada com 140 mil pessoas em 142 países revelou que uma em cada quatro se sente solitária.

Bastava visitar o cachorródromo na praça aqui perto de casa pra chegar à mesma conclusão, sem precisar gastar as milhas nem entrevistar tanta gente.

Costumo passar lá pra espiar o movimento durante as caminhadas no bairro. Na área de terra batida devidamente cercada, generosamente maior que os apartamentos onde ficam enfurnados a maior parte do tempo, os bichos correm uns atrás dos outros sem coleira ou guia e farejam traseiros alheios livremente.

Parece um tableau vivant daquelas fotografias do Elliott Erwitt: cachorrinho pelado, cachorrão peludo, cachorrinho peludo, cachorrão pelado, vira-lata arrivista, pedigree quatrocentão. Todos juntos e misturados, os adestrados, os atrapalhados e os destrambelhados, os tímidos e os despachados.

(O melhor passatempo pra quem tem apenas duas patas é tentar ligar o cão ao tutor, testando a teoria de que a cara de um é o focinho do outro.)

Enquanto a matilha se dedica àquela social intensa, os bípedes ficam mergulhados em seus celulares. De vez em quando até tiram os olhos da tela, só pra checar se aquele latido é conhecido, antes de serem tragados novamente pelo redemoinho digital.

Em vez de arriscar um papo com o ser humano ao lado, que na pior das hipóteses também gosta de cachorro, prefere mandar mensagem pra alguém que não tá ali. E, ainda que tivesse, também seria trocado pelo zap – nessa estranha trend de ficar longe de quem tá perto pra tentar ficar perto de quem tá longe.

Mundo cão é isso: pássaro sem ninho, aranha sem teia, homem sem amizade – uma inversão diabólica dos “Provérbios do Inferno”, pontificados por William Blake.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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