Coluna do Fernando Luna: Não há mais nada para ser adiado — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Não há mais nada para ser adiado

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre etarismo abaixo de zero, lição de São Paulo a um carioca, assimetrias do portunhol selvagem e um pontinho vermelho no trânsito caótico

29 de Janeiro de 2024

Duda Machado, 2011

Antologia Profética

Tinha tempo que eu não era impedido de fazer alguma coisa por causa da idade.

Provavelmente foi tentando ver “Bete Balanço” num cinema no início dos anos 1980, moleque demais pras saliências cinematográficas que hoje parecem mais “Sessão da Tarde” que XVideos.

Pois voltei a ser barrado por causa da idade.

Senti até saudade daquele “proibido para menores”. Afinal, eventualmente cresceria pra aproveitar o que tava inacessível — ou, com alguma sorte, conseguiria uma cópia pirata em VHS do filme.

Dessa vez, porém, o programa era proibido para maiores — maiores de 50 anos. Uma sentença definitiva, salvo você se chame Benjamin Button.

Não tava me candidatando a explorar Marte num protótipo espacial, circunavegar a Terra a bordo de uma canoa havaiana ou subir o monte Everest de joelhos sem oxigênio suplementar.

Era apenas uma caminhada de três horas sobre uma geleira, com uma “parada de meia hora para almoçar e admirar um lugar de beleza incomparável” — um passeio no parque querendo tirar uma de expedição subantártica.

Comecei a preparar uma versão protogeriátrica do “você sabe com quem tá falando”: abri o aplicativo do laboratório onde tinha feito meu check-up e ensaiei o piti.

“Olha esse colesterol, 123 mg/dL. Não tenho ideia do que seja dL, mas é ‘ótimo’ pelos valores de referência. Cálcio? 9,0 mg/dL! Meus ossos não quebram nem que os grampos soltem da minha bota e eu caia numa greta. E o que é uma andança gelada pra quem encara as colinas do Pacaembu a 35 graus?”

Mas reli a mensagem do organizador do holiday on ice: “Apenas pessoas de 18 a 50 anos, SEM EXCEÇÕES”, letras maiúsculas berrando o etarismo deslavado e encerrando o papo.

Diante disso segui as palavras de Duda Machado no poema “Como anotações repetidas num diário”, de “Adivinhação da Leveza”, e troquei o gelo pelo uísque: passava do meio-dia e, cada vez mais, não havia nada para ser adiado.

São Paulo é muito grande. Eu sou muito pequeno

Donizete Galvão, 2002-2014

Diz que não se deve dar parabéns antes da hora, mas como São Paulo tá sempre apressada, feliz aniversário.

Quando eu te encarei frente a frente, meu plano era fazer um mês de estágio e voltar pra praia. Pois acabo de completar 30 anos por aqui. Trabalho puxa trabalho, amor puxa amor e a força gravitacional dessa cidade pra atrair tanto trabalho quanto amor é infinita.

Sem falar na lição de humildade em ser mais um entre seus 11.451.999 habitantes – e uma lição de humildade nunca é demais pra um carioca.

Faço minhas as palavras do mineiro Donizete Galvão em “O Antipássaro”, livro póstumo reunindo poemas escritos entre 2002 e 2014: “São Paulo é muito grande./ Eu sou muito pequeno”.

Metafórica e literalmente grande.

Lembro do meu espanto quando diziam que tal endereço era logo ali e levava 45 minutos pra chegar logo ali, se o trânsito ajudasse – em qualquer outro lugar, seria uma viagem intermunicipal, praticamente uma expedição.

Se hoje sei que a Paulista não fica no centro, devo o aprendizado ao velho Guia de Ruas Mapograf, um Waze analógico. Nos anos 90, o calhamaço de mil e tantas páginas era tão obrigatório nos carros como um estepe.

Quando decidi ficar do lado de cá da Dutra, minha zelosa mãe logo me deu não apenas um, mas três cobertores. Acredite: antes do antropoceno ligar de vez seu maçarico, fazia frio em São Paulo.

Hoje faz calor até pros padrões do Rio. O presente atualizado seria um condicionador de ar com gerador portátil a querosene, já que a Enel tem deixado faltar energia.

Devidamente agasalhado, lá ia eu explorar a noite paulistana, entre as almôndegas do Massivo e as massas do Gigetto – a cena mais paulistana que já testemunhei, talvez a mais paulistana em 470 anos, foi dar de cara com Plínio Marcos, Nair Bello e Jacinto Figueira Júnior jantando na cantina.

Obrigado por tudo, São Paulo, e desculpa qualquer coisa.

O que eu gosto da tua boca é a língua. O que eu gosto da tua língua é a palavra

Julio Cortázar, circa 1980

Passei o início de ano no fim do mundo, que obviamente fica na Argentina – agora mais que nunca, graças ao novo inquilino da Casa Rosada, de quem quero tanta distância que voei mais 2300 quilômetros até Ushuaia.

Como sempre acontece quando vou a um país onde se fala espanhol, ofereci vastas contribuições à selvagem língua de contato nascida das saliências entre nossa última flor do Lácio e o latim em pó dos hermanos.

Portunhol não requer prática nem habilidade, apenas alguma cara de pau para cruzar com fluência a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas.

“A mi me encanta esse regalito, puedes parcejar en 3 veces a la tarjeta?”, arrisco, Ricardo Darín em meio a um AVC isquêmico.

“Melhor falar em português mesmo”, rebate o vendedor com sotaque local, buscando uma redução de danos ao idioma de Julio Cortázar.

(Seu jogo da amarelinha e seus axolotes, cronópios e famas ofuscam versos que roçam a língua de Miguel de Cervantes – embora “O que eu gosto” tenha sido escrito em francês e traduzido por sua companheira, Aurora Bernárdez, no livro póstumo “Papéis Inesperados”.)

Mas, se você fala em português, os ouvidos espanhóis no entiendem nada. É uma assimetria curiosa, já que nosotros brasileiros compreendemos razoavelmente bem um espanhol falado despacito – ou achamos que entendemos.

Como meter o inglês entre dois idiomas tão próximos seria uma humilhação pós-colonialista, insisto no portunhol. Com atenção especial aos vocábulos do léxico vizinho que soam tão bem em nossa cadência fonética:

“Naturaleza” parece mais vicejante que natureza. “Gaviota” é como uma criança trocando as letras no ar. “Peluqueria” faz pensar num corte de cabelo exuberante, talvez estilo anos 70. “Bolígrafo” desliza com mais graça que o burocrático esferográfica. “Matafuego” traz emoção ao pomposo extintor de incêndio.

“Milei” não. “Milei” soa tão mal quanto “Bolsonaro”.

Não digo que a vida é bela tampouco me nego a ela: – digo sim

Ferreira Gullar, 1980

O que é um pontinho vermelho ziguezagueando pelo trânsito caótico de dezembro?

Um gorro de Papai Noel colado no cocuruto do capacete de um motoboy – o último bastião do espírito natalino.

Porque apesar de tudo – e um tudo que inclui o corre permanente pra embolsar a merreca de R$ 1,50 por quilômetro, usar o próprio corpo como para-choque em caso de acidente e escutar desaforo de cliente folgado que não quer sair da poltrona pra buscar o próprio pedido na portaria –, esse motoqueiro precarizado circula por aí como um arauto do Natal.

Não parece ser estratégia pra engordar gorjeta ou muito menos jogo do contente – que costuma dar tanto prejuízo como o jogo do tigrinho, porém nem sempre financeiro.

Talvez esteja mais pra um realismo que não nega, mas também se dobra à realidade, como no poema do Ferreira Gullar publicado no livro “Na Vertigem do Dia”: “Não digo que a vida é bela/ tampouco me nego a ela:/ – digo sim”.

Já cruzei por aí com dois ou três desses reis magos anunciando a boa nova montados numa CG, pompom branco zunindo pela cidade a milhão. São poucos, verdade, mas eventualmente arrancam um sorriso engarrafado no exasperante anda-e-para de ruas e avenidas.

São mais sinceros que essas propagandas emocionadas nos intervalos comerciais, lutando pra derramar lágrimas de ocasião – embora o consumidor só vá chorar de verdade quando chegar a fatura do cartão em janeiro.

(Tem quem insista em chamar de “filme” os reclames de 30 segundos. O que sobra então pro Kleber Mendonça Filho, Ruben Östlund, Lucrecia Martel, Alfonso Cuarón, Jordan Peele, Carolina Markowicz, Yorgos Lanthimos e companhia?)

O alto nível glicêmico também se esparrama nas reportagens sazonais. A cada final de ano, o noticiário entra em estado pré-diabético – muita pauta açucarada, muito âncora fazendo as vezes de Papai Noel do Norman Rockwell.

Sou mais o cachorro louco de presépio.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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