Fernando Luna
A arte de perder
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre desafios do desapego, safadeza como estratégia de sobrevivência, planos para escapar da Caverna do Dragão e novos métodos de guerrilha
“A ARTE DE PERDER NÃO É NENHUM MISTÉRIO”
Elizabeth Bishop, 1976
Tudo passa. Se até a tatuagem no pescoço do Neymar sabe disso, por que a gente finge que não entende?
Tentam nos explicar o óbvio há tempos e de todas as maneiras. De Heráclito a Lulu Santos, do rio onde não se mergulha duas vezes ao zen-surfismo num indo e vindo infinito. Entre um e outro, 25 séculos de tratados filosóficos, doutrinas religiosas e canções pop repetindo a mesma arenga – em vão.
Seguimos fazendo ouvidos moucos para mudança, continuamos com cara de espanto a cada chacoalhada que a vida dá, resistimos em deixar qualquer coisa para trás. Simplesmente não sabemos perder.
Talvez agora a gente aprenda na marra: 2020 alcançou o estado da arte de perder. Perdemos milhares de vidas, milhões de empregos, bilhões de reais. Perdemos a noção da hora, dos dias, dos meses. Perdemos o sono.
E perdemos a Flip, ao menos por ora. Devia ter acabado domingo, mas nem começou. Semana que vem acontecem alguns debates on line. Nada de Tenda dos Autores ou encontros à beira-mar. Paraty está fechada para eventos.
Perdemos os dias agitados nas ruas de pé de moleque, as noites animadas nos sobrados históricos e, também, as madrugadas históricas nos sobrados agitados. Perdemos o bar da Ciça, a pista da Cris, o drink do Vini, o esmero da Renata, o set do Elohim.
Ninguém expressou como Elizabeth Bishop nosso choque diante da perda. A homenageada dessa edição da festa literária sabia do que falava. Perdeu o pai para doença, a mãe para loucura, duas cidades lindas, três casas excelentes, um continente, dois amores.
“A arte de perder não é nenhum mistério”, escreve em quatro dos 19 versos de “Uma Arte”, seu poema mais conhecido – ou menos desconhecido, para ser realista com as tiragens de poesia. Insiste na repetição, como quem tenta se convencer de que nada disso é sério.
Enquanto isso, o tempo grita como um ladrão: “Perdeu, perdeu”.
“UM POUCO DE SACANAGEM É NECESSÁRIO
PARA MANTER A VIDA SÃ E PLENA”
D.H. Lawrence 1929
A pandemia é um arranca-rabo entre o princípio do prazer e a pulsão de morte.
De um lado, vestindo calção vermelho cavado e nada mais, um fogo que arde sem se ver. De outro, capa preta, capuz e foice, o cortejo de desgraças. De dia a tristeza bate forte, de noite a safadeza pega de jeito – ou vice-versa.
Dezesseis milhões de infectados, 600 mil mortos. A maior tragédia do século. Como alguém é capaz de pensar naquilo, mesmo diante disso tudo? Por outro lado, como alguém é capaz de não pensar naquilo, mesmo diante disso tudo?
Desejo fora de hora é humano, demasiado humano. Se não pode mais tocar e agarrar, então urge tocar e agarrar. Só porque foi proibido. Se o corpo está vulnerável como nunca, vamos celebrar a carne e suas vontades.
Parece uma oportunidade e tanto para uma quarentena a dois. Pena que não existe quarentena a dois.
Todo casal divide o teto com infinitas videochamadas, louça suja de Sísifo (lava a última panela, suja o primeiro copo), boletos, faxinas, três refeições diárias que não se preparam sozinhas – e nem vou falar de filhos. Resumindo: a busca por “divórcio on line gratuito” cresceu 9.900%, informa o Google.
E quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só.
A Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual aponta um crescimento exponencial no faturamento das sex shops, com mais de 1 milhão de vibradores vendidos desde março. Um milhão. Depois de máscara e álcool-gel, vai faltar pilha e cabo USB.
Ainda assim a quarentena virou carentena? Assiste “Normal People” de novo, arrisca uma orgia virtual. Orgia virtual? Invenção do clube erótico Killing Kittens, convites a partir de 165 reais. Uma grana, considerando que fazer suruba pelo Zoom é como matar a fome vendo receita no YouTube.
O inglês D.H. Lawrence já sabia que sem tesão não há solução. Ele era reacionário, mas não pudico – se nossos reacionários gozassem sem culpa, o país melhorava. Os versos lá em cima são do poema lubricamente chamado “Sacanagem Pode Ser Sã”. Em tempos difíceis, pode ser mais que isso. Sacanagem pode ser uma estratégia de sobrevivência.
“E COM RESPEITO ÀQUELE PROBLEMA DO
FUTURO ACHO QUE VOU FICANDO POR AQUI”
Cacaso 1982
Não quero assustar ninguém, mas o réveillon foi cancelado: vamos ficar presos em 2020 para sempre.
A prefeitura de São Paulo adiantou que a tradicional festa da virada já era. Entendo. Imagina, além de começar o ano bebendo cerveja quente ao som de dupla sertaneja na Paulista lotada, ainda pegar o vírus.
A decisão deve criar uma espécie de jurisprudência de Ano Novo, suspendendo queimas de fogos Brasil afora e aprisionando o país numa imensa Caverna do Dragão.
Nem uma “Máquina do Tempo”, título desse poema do Cacaso, dá jeito. Seus dois versos de humor e lirismo exatos levam, sim, o pensamento para longe – mas deixam corpo empacado aqui e agora. Então, melhor ao menos organizar este Ano da Marmota. Cada um com seu cada qual:
Psicopata social com psicopata social. O desembargador que rasga multas por não usar máscara fica eternamente condenado a discutir com a mulher do cidadão. Cidadão, não, engenheiro civil formado, melhor do que você. Um disputando com o outro quem é superior. Pode ser num bar do Leblon, desde que os garçons sejam substituídos por agentes sanitários.
(“Sabe com quem está falando?” é pura metalinguagem. Assim que essas palavras são pronunciadas, desaparece qualquer dúvida sobre com quem se está falando – com um cretino, infalivelmente.)
Fascista com fascista. O clã dos Bolsonaro se junta numa faxina infinita de cada canto dos seus 13 imóveis declarados. De lambuja, também limpam os outros 17 comprados pela ex-mulher do presidente, enquanto eram casados. No caso dos cinco pagos em dinheiro vivo e dos subfaturados, não é permitido usar mop. Faxina-raiz, no esfregão.
Animal com animal. Sentença do suposto traficante de animais picado pela naja: bem feito! E serviço comunitário perpétuo como treinador de emas no Palácio da Alvorada. Caso alguma delas aprenda a lutar como uma cobra, ele será promovido a tratador de gado do cercadinho. O cargo dá acesso a 1,8 milhão de comprimidos de cloroquina.
O resto da população está liberada para se defender de 2020 como puder – ainda estamos em agosto, boa sorte.
“TANTO CACO DE SONHO
ONDE ATÉ HOJE
A GENTE SE CORTA”
Alex Polari 1978
Sonhar é um jeito de enxergar o futuro – importante lembrar disso agora, quando parece não haver futuro.
E o sonho vale mesmo que seus cacos acabem cortando a gente, como previnem os versos de “Idílica Estudantil III”. Esse poema serve de epígrafe para o livro de memórias “Os Carbonários”, de Alfredo Sirkis.
O ambientalista morreu num acidente de carro dia 10 de julho, bem quando a Amazônia bateu novos recordes de desmatamento e de combustão nada espontânea. Desgraça nunca chega sozinha.
O ativista ambiental e o poeta Alex Polari se cruzaram muito antes de se tornarem ativista ambiental e poeta. Os dois tinham 20 de poucos anos e eram guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária.
Em 1970, participaram dos sequestros dos embaixadores da Alemanha e da Suíça, em troca da libertação de presos políticos da ditadura militar. Sonharam com a revolução armada e se cortaram: Sirkis escapou para o exílio, Polari acabou torturado e preso por nove anos.
A anistia política abriu espaço para outras lutas.
Um ex-guerrilheiro fundou o Partido Verde. Entrou e saiu da política tradicional, ganhou voz no Brasil e no mundo contra as emissões de carbono e o aquecimento global. Lançou no fim do mês passado “Descarbonário”. Tira onda dele mesmo já no prefácio: “O título desse livro é um trocadilho infame”.
O outro ex-guerrilheiro se descobriu poeta da resistência na cadeia. Não parou aí. Libertado, partiu para o front espiritual. Até hoje é uma das principais lideranças do Santo Daime. Alcaloides psicoativos como arma, expansão da consciência como método, todo poder às plantas de poder.
O sonho não acabou. Só se ajustou aos tempos de terraplanismo ambiental e obscurantismo religioso.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
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