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COLUNA

Fabiana Moraes

Só há uma saída: um humanismo radical

A disputa para eleger quem são os “verdadeiros humanos” ganhou força após a vitória do presidente dos EUA

29 de Janeiro de 2025

E cá estamos nós, vivendo essa nova dobra no mundo. Ela se dá nas relações, nas noções de verdade, na noção de si mesmo, na percepção de realidade. Uma dobra, talvez, na humanidade.

Mas prestem atenção aqui: essa dobra está antes de tudo permeada pela disputa de quem pode ou não fazer parte dessa tal humanidade.

Chegamos neste exato ponto da história, em grande parte, porque toda uma gente considerada menos humana tornou-se mais visível, mais vocal, mais difícil de ser deixada nas sombras. Bastou isso para que os dentes do ódio, ao redor do mundo todo, se arreganhassem ainda mais.

É importante que a gente entenda que nossa concepção de humanidade foi (e é) bastante precária. Não simplesmente por uma escolha nossa, mas porque nos foi ensinado assim. Isso aconteceu através de imagens, filmes, novelas, quadrinhos, discursos, representações políticas. Conversas, piadas, rascunhos. Decisões jurídicas, médicas, territoriais. Poder e representação.

Por isso, para entender melhor essa dobra, é vital compreender que, durante muito tempo, falamos de “humanos” deixando de fora a maioria da população mundial. A escritora Sylvia Wynter pesquisou bem essa questão e a esquadrinhou de maneira brilhante, indo buscar nas decisões estatais, das igrejas, da lei, do trabalho, quem aparecia — e, mais importante, quem não aparecia — designado com tal titularidade.

E adivinhem só quem figura em primeiro lugar no pódio? Pessoas que, podemos fazer sem medo essa comparação, lotaram a festa de posse do novo presidente norte-americano, ele mesmo um exemplar de “mais humano” segundo os critérios desumanos que assimilamos.

Foi por isso que Sylvia (links no fim do texto) construiu o conceito de HUMANISMO RADICAL. Quis escrever em maiúsculas e bold para que essa ideia, essa urgência, apareça grandona aí na tela do seu celular. É sobre esse humanismo que precisamos falar.

Ele só é possível quando não permitimos que certos seres humanos sejam considerados mais humanos do que outros. Parece óbvio. Mas não é.

Exemplo: no início da década de 1990, descobriu-se que membros da polícia e do sistema judiciário de Los Angeles utilizavam a sigla N.H.I., que significava “no humans involved” (sem humanos envolvidos). O termo era empregado para caracterizar crimes que envolviam assassinatos ou violações de direitos de jovens negros desempregados e moradores de periferia (há um livro a respeito, link no fim do texto). Sylvia Wynter se debruçou sobre essa questão para tratar da materialidade da desumanização no âmbito estatal, uma violência que, como ela demonstra, encontra repouso em corpos muito específicos.

Outro exemplo, mais recente: quando o presidente dos EUA diz que “estão envenenando o sangue” dos norte-americanos, ele convoca teorias ultrapassadas e extremamente racistas como a do cientista sueco Carl Nilsson Linnæus, que, em 1735, realizou uma classificação muito difundida do homo sapiens (“homem sábio”). Vejam as categorias criadas por ele, baseadas em aspectos físicos e comportamentais, todos levando a uma hierarquização de humanidade:

1) Americano (Homo sapiens americanus): vermelho, mau temperamento;

2) Europeu (europaeus): branco, sério, forte;

3) Asiático (Homo sapiens asiaticus): amarelo, melancólico, ganancioso;

4) Africano (Homo sapiens afer) preto, impassível, preguiçoso.

5) Monstruosa (Homo sapiens monstrosus): patagônicos da América do Sul, flatheads canadenses, etc.

A primeira categoria da lista, fique evidente, é formada pelos nativos americanos, ou seja, povos indígenas. O cientista colaborou ativamente para uma ideia de superioridade racial que tem total impacto naquilo que entendemos como “humanidade”, no geral, até hoje. Humano, humano mesmo, é o homem cisgênero branco, europeu/norte-americano e rico.

É digno de nota que uma percepção anacrônica, do século 18, seja completamente compatível com as “modernas” big techs alinhadas com o pensamento de extrema-direita do presidente laranja. Talvez porque, ora bolas, eles sejam homens cisgêneros brancos, europeus/norte-americanos e ricos.

Além desses bilionários, outros grandes nomes/marcas do empresariado mundial passaram a achar que justiça social e equidade, por exemplo, não são um bom negócio nos tempos atuais.

Nos EUA, onde há cinco vezes mais pessoas negras do que brancas encarceradas, empresas como Meta (Instagram, WhatsApp, Facebook), Walmart, Ford, McDonalds, John Deere, Harley-Davidson e Jack Daniel’s anunciaram o fim de seus programas de inclusão e diversidade (não era uma novidade que o presidente dos EUA fosse encerrar tais projetos dentro do próprio governo norte-americano).

Boa parte da conversa colorida sobre ‘diversidade’ não passava da segunda página no livro

Esse recuo não é qualquer coisa. Como sabemos, foi justamente através da inserção de pessoas negras, indígenas, transgêneras, com deficiência, etc, no mercado de trabalho, que boa parte da visibilidade de humanos tradicionalmente fora do pódio se deu. Foi e é através do trabalho que ganhamos ou deixamos de ganhar estima social. É através do trabalho que os não herdeiros e fora do pódio conseguem obter algum conforto, alimentação, futuro.

Esse é apenas um entre os vários flancos que esses homens com ideias do século 18 atacam agora. É também um bom ensinamento a respeito de algo que nós, bichas espertas, já sabíamos: boa parte da conversa colorida sobre “diversidade” não passava da segunda página no livro. Permitam-me dizer: nunca me enganaram.

Inclusão não significa somente colocar a foto de uma mulher negra em uma propaganda de banco. Inclusão é apoiar e incentivar programas de redistribuição de renda que atingem uma maioria de mulheres pobres (e em sua maioria negras) no Brasil. Falo isso e lembro de outra intelectual, Françoise Vergès, passando um sabão em quem acha que discussões sobre colonialidade são uma modinha. Tem muita gente viva — e muita gente morta — no caldo desse rolê.

Pode ser que algumas empresas que aparentemente estão retrocedendo estejam somente colocando novos nomes em suas políticas de inclusão, como sugere essa reportagem do DW? Tomara que sim. Mas é bem assustador que, na aurora de um quarto de novo século, o pânico do RH seja o fato de uma companhia ter buscado trazer para dentro de seus quadros pessoas que por tanto tempo estiveram à margem dos processos de cidadania. Ter medo de sofrer perseguição por ser uma companhia mais competente – porque diversidade é prova de competência também.

A humanidade não é algo etéreo, como vemos. Não é algo dado. Humanidade tem relação com o que calço, o que vejo, o que como, como sou tratada, se sou capaz de prever um futuro de conforto para meu filho, neto, bisneto.

Quero abrir outra questão relacionada aqui: passamos os últimos anos ouvindo que “políticas identitárias” causam ruínas no progressismo. Que é erro da esquerda. Detesto o termo aspeado, uma vez que ele é usado de maneira quase sempre de maneira rasa, mesquinha, como se estivéssemos falando de dois ou três grupos de pessoas muito radicais e poderosas, e não da maioria da população brasileira (mulheres, pretas/os, pobres).

Mas confesso que fiquei realmente querendo ver a cara dos apocalípticos do identitarismo quando o novo presidente dos EUA fez seu discurso, para quem boa parte dele foi endereçado? Ora vejam só: imigrantes pobres (maioria esmagadora de não brancos) e pessoas transgênero. Essas populações que quase nunca puderam sequer chegar perto do pódio da “verdadeira humanidade”.

E aí, galera?

Quem é obcecado pelo “identitarismo” é a extrema-direita. Quem inventou mamadeira de piroca não foi a esquerda. Quem disse que ia mandar pessoas transexuais serem encarceradas em celas comuns foi o presidente dos EUA. E vocês sabem o que pode acontecer com uma mulher transexual presa entre homens cisgêneros? Leiam aqui. Talvez ajude a pensar melhor e largar a mão de falar besteira.

Não se enganem. Prestem atenção. Nenhuma imagem é inocente

O futuro está, como sempre, em disputa. Agora, com um problema maior para quem não professa pela cartilha da violência e ódio ao outro, uma vez que as empresas responsáveis por boa parte da comunicação mundial estão ao lado do presidente dos EUA.

Observem que o fortalecimento da extrema direita em todo mundo não acontece somente através de gestos nazi-nefastos como o realizado pelo dono da rede social X (cuja cara foi definida como um “sabonete Dove esquecido no sol”. Eu ri). Ela se dá de fininho através de estratégias como os milhões de vídeos motivacionais pelos tik tok da vida nos quais o combo riqueza + juventude + magreza + brancura, por exemplo, são os grandes ativos vendidos. Onde figuram os humanos de verdade, modelos a serem seguidos.

Não se enganem. Prestem atenção. Nenhuma imagem é inocente.

***

Antes de ir, um drops (de futuro?)

Um grupo formado em sua maioria por meninos — havia uma menina entre eles — se aproximou de mim e Moacir. Estávamos na praia, férias nos primeiros dias do ano. Tentaram nos vender mangas, mas, no Reino do Pix, nem eu nem Moa tínhamos dinheiro em espécie. O grupo seguiu abordando outros banhistas, mas não obteve muito sucesso. Tempos depois, retornaram com as mangas. Queriam me presentear com três delas. Fiquei meio comovida, admito. Começamos a conversar sobre aquela praia que eu amo tanto, no litoral de Alagoas. Ela está, neste momento, sendo devassada pelo mercado imobiliário. Eu soube que as cinzas do tio de um deles, um homem que também amou muito esse lugar, foram lançadas naquele mar. Perguntei quando iam embora. O que parecia mais velho expressou certa tristeza: disse que já seria na sexta — e que não queria sair dali nunca mais. Exageros à parte, me identifiquei um pouco com ele. “E como vocês acham que essa praia vai estar daqui a dez anos?”, perguntei, meio que para dividir meu terror com o que vejo a cada ano quando vou naquele litoral. Um disse que a praia ia estar completamente diferente, lotada de gente e com um comércio intenso. Ficamos meio atordoados e ele percebeu. “Estou sendo realista”, falou. Um menino realista é meio triste, mas é mais triste achar que crianças não sejam realistas também. Um silêncio de alguns poucos e longos segundos se seguiu, quando o menor do grupo, uns seis anos, olhou para o lado e disse: “É, mas também pode ser diferente”. E calou-se.

Um menino que sonha em uma praia enquanto ela está sendo devassada pode ser meio triste, mas mais triste é não acreditar na possibilidade do sonho do menino se realizar.

Essa é a primeira coluna deste ano. Desejo que sejamos radicalmente humanos. E que os bichos e o mar sejam radicalmente cuidados também.

*Para saber mais:

*Stella Zagatto Paterniani, Gustavo Belisário e Laura Nakel apresentaram Sylvia Wynter em português nesse texto aqui. O livro On being human, escrito por Wynter, em inglês, está aqui. Eu mesma já escrevi sobre a ideia de humanismo radical, ao lado do meu colega Jorge Ijuim, nesse artigo aqui, e dele catei uns trechinhos para cá.

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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