Fabiana Moraes
CLT: de artigo de luxo a “coisa de pobre”
Há uma percepção de que o emprego formal é algo horrível e a se evitar, contrariando um comportamento nacional histórico
A tik toker Fabiana Sobrinho, mais conhecida como Fabi Bubu, está em primeiro plano enquanto sua filha, a pré-adolescente Valentina, é vista sentada um pouco atrás da mãe. “Vamos, me conta, qual é o medo que você tem de ser CLT?”. “Ah, eu vou ter que andar de ônibus todo dia”, diz a garota. A mãe olha consternada para a câmera do celular. “É isso. Eles acham que ser CLT é coisa de pobre (…) vocês jovens deveriam saber a importância dos direitos trabalhistas “.
O diálogo, aqui resumido, consegue trazer ao menos três feixes dessa tendência observada principalmente entre adolescentes e jovens adultos: a primeira, é a percepção de que o emprego formal é algo horrível e a se evitar, contrariando todo um histórico comportamento nacional; a segunda é parte da própria “alma” dessa tendência, o enorme preconceito em relação aos pobres em um país forjado na desigualdade social; a terceira é a prova cabal de que novas mídias não significam o estabelecimento de novos e mais auspiciosos discursos, pelo contrário: redes como o Tik Tok estão carregadas de discriminação embaladas de humor e “life style”.
A transformação do documento da Consolidação das Leis do Trabalho, que deixa de ser objeto de desejo para virar objeto de escárnio, é um dos sintomas de uma mudança estrutural no próprio capitalismo, que viu sua força motriz, o trabalho, ser flexibilizada radicalmente principalmente após a pandemia.
Nesse processo, a retórica do “seja seu próprio patrão”, que não era uma novidade, se adensou ainda mais, e o verbo “empreender” tornou-se um mantra, sendo flexionado por pessoas e grupos diversos, independentemente de classes sociais. Faz parte desse fenômeno a própria plataformização do trabalho e as facilidades de ganhar dinheiro sem maiores burocracias e horários determinados por empresas, por exemplo. A chamada “pejotização” — contrato do empregado como pessoa jurídica — é outro ponto aqui.
Não há nenhum problema em querer empreender ou organizar a vida com um regime de trabalho organizado por si mesmo, é claro. Aliás, tirando todo discurso meio babaca do empreendedor-de-sucesso-no-Instagram-que-na-verdade-não-quer-ser-visto-como-pobre, a prática de criar e manter o próprio negócio está na raiz de um país, como dito, marcado pela desigualdade. Abrir um pequeno mercado, ter um ou mais tabuleiros de acarajés, migrar (por razões distintas) para outro local e iniciar um negócio: são muitos os exemplos de pessoas que há muito empreendem mesmo que esse verbo hoje tão valorizado culturalmente não estivesse na moda. Essa, inclusive, é uma dimensão que pessoas e grupos de esquerda precisam dar conta: é necessário qualificar melhor a discussão e não confundir toda pessoa que dá duro para montar seu negócio com o empreendedor-de-sucesso-no-Instagram-que-na-verdade-não-quer-ser-visto-como-pobre.
O principal problema do último é ter, para valorizar o próprio passe, justamente ajudado a promover, simbolicamente, o desmonte de direitos já iniciado na reforma trabalhista encampada pelo ex-presidente Michel Temer em 2017. Nela, questões como férias, jornada de trabalho e seguro acidente a caminho (ou voltando) do trabalho foram modificadas. O boom de novos empregos prometido ali nunca aconteceu, como se lê nessa matéria.
O que principalmente uma geração acostumada à performance de sucesso do empreendedorismo de rede social não sabe é que a CLT, que completa 82 anos de criação no próximo primeiro de maio, é considerada um dos primeiros instrumentos de inclusão social do país. O Decreto-Lei 5.452, assinado em 1º de maio de 1943 por Getúlio Vargas, é um conjunto de leis que regulamenta as relações entre empregados e empregadores no Brasil.
Parte das obrigações aí presentes já faziam parte da carta constitucional de 1934, na criação da Justiça do Trabalho: o salário mínimo foi instituído; a jornada de trabalho de oito horas; o repouso semanal, as férias anuais remuneradas e a indenização por dispensa sem justa causa. Perseguidos décadas mais tarde pelos militares, os sindicatos e associações profissionais passaram a ser reconhecidos. O décimo-terceiro salário só se tornaria obrigatório em 1962, antes do Golpe Militar, no governo de João Goulart. Esse conjunto de obrigações provocou assombros no empresariado e mercado brasileiros, como mostra uma já clássica capa do jornal O Globo:

O Globo / Reprodução
Essa mediação, pela legalidade, entre empregados e empregadores, foi uma revolução em um país acostumado a explorar a pobreza, a maior parte dela trazendo a herança de uma população durante quase 400 anos escravizada. Por isso, a carteira de trabalho tornou-se objeto de desejo e mesmo símbolo de status no Brasil, como mostrou a pesquisa “Carteira de Trabalho, Artigo de Luxo: O perfil psicossocial de trabalhadores informais em Salvador, Bahia” (realizada por Sônia Maria Guedes Gondim; Girleide Novaes Feitosa; Ivna Christine de Novaes Santos; Márcio de Oliveira Sá; Mirele Cardoso do Bonfim, da Universidade Federal da Bahia).
O status do livreto azul mudou radicalmente para toda uma população que, em lugar de persegui-lo, quer evitá-lo
Bem, como vimos pelo assombro da mãe de Valentina, o status do livreto azul no qual é anotada a saída e entrada de nossos empregos formais mudou radicalmente para toda uma população que, em lugar de persegui-lo, quer evitá-lo. Isso se dá, curiosamente, ao mesmo tempo em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou um aumento no número de carteiras assinadas no país (de 0,7%), com 37,995 milhões de pessoas empregadas no setor privado. Foi o maior valor da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), iniciada em 2012.
O trabalho informal, no entanto, é maior, com quase 40 milhões de pessoas fazendo parte dessa fatia (dados de 2024). É bem importante mostrar que são as pessoas negras aquelas que mais realizam atividades laborais sem qualquer garantia trabalhista. No documento “Desemprego, informalidade, subutilização e inatividade”, também do Ipea, lemos: “Se tivéssemos que escolher um retrato para representar a informalidade no Brasil, ele seria composto por pessoas negras. Em 2022, 62% da população brasileira em situação informal era composta por pessoas negras. Homens negros representavam quase 36,7% desta população, seguidos por mulheres negras (25,3%), homens brancos (20,8%) e mulheres brancas (17,2%).”
Um outro futuro
É claro que a resistência das pessoas mais jovens em encarar uma CLT não reside somente na desinformação sobre a importância das leis trabalhistas na sociedade brasileira. Há aí também uma percepção — correta — de que jornadas extenuantes de trabalho para a obtenção de um salário mínimo não compensam o esforço. Com o aumento do preço de alimentos e outras contas cotidianas, essa realidade ganha ainda mais peso.
Há, aliás, um vídeo bem engraçado da influencer @canelasecaof no qual ela compara a Carteira de Trabalho Digital a um app de entretenimento, e o texto, apesar de brincalhão, não fica longe da realidade enfrentada por quem tem carteira assinada: “Me pediram para baixar esse jogo aí e eu não gostei, só ganha R$ 1.400 por mês (…), ficam mandando fazer afazeres que não são meus (…) não baixem esse jogo, vocês vão parar de jogar só com 65 anos, e quem ganha mais é o chefão — e você nunca vai chegar no chefão, porque o jogo é dele”.
No entanto, não é do desmonte de direitos trabalhistas — muito menos o preconceito direcionado aos mesmos — que podem, é claro, melhorar as jornadas de trabalho de quem é CLT. Em vez disso, são as condições de trabalho de quem tem carteira assinada que precisam se adaptar a um momento no qual a compreensão de que a exaustão não pode ser nosso objetivo de vida, muito menos de orgulho. As discussões sobre a jornada 6X1 têm total relação com esse cenário — e não é por menos que ela se tornou um fenômeno popular.
A proposta de emenda propõe uma alteração das 44 horas semanais (e jornadas de 8 horas diárias de trabalho) para uma jornada semanal máxima de 36 horas, ou seja, 4 dias de trabalho e 3 dias de folga. Com direitos trabalhistas assegurados. Não se trata, portanto, de uma desvalorização da CLT, e sim uma valorização da vida de quem assina uma.
A proposta da escala vai tocar justamente naquilo que é mais valorizado por muitas pessoas que muitas vezes preferem a ausência de direitos em nome de ter mais tempo, esse sim o verdadeiro ouro da discussão.
Conversei com Gabriela Nascimento, de 25 anos, e isso ficou evidente. Formada em Comunicação Social pela UFPE, ela trabalha com marketing digital. Já experimentou três “regimes” de trabalho: primeiro, na informalidade. Depois, como pessoa jurídica (durante quatro anos). Há um mês, a empresa que a contratou como PJ resolveu assinar sua carteira de trabalho.
“Na informalidade total, não havia nada que me resguardasse. Havia desvalorização do meu trabalho, eu precisava ficar constantemente cobrando por trabalhos já feitos. Quando obtive o MEI [micro empreendedor individual] e passei a trabalhar podendo emitir notas fiscais, percebi um maior compromisso dos meus clientes. Trabalhava remotamente para a empresa, mas podia também fazer trabalhos por fora, conseguia administrar meu tempo. Era a maior vantagem, podia sair, me exercitar”. A comunicóloga, após tornar-se CLT, trabalha em regime híbrido, mas agora precisa bater ponto (digital) todos os dias e periodicamente viaja de Caruaru, onde vive, para a sede da empresa em Recife (duas horas de viagem).
“Acho que a CLT se tornou pouco desejada por conta desse gerenciamento de tempo. Eu ainda estou me adaptando, existem vantagens e desvantagens. A maioria dos meus amigos é PJ, então quando conversamos, vemos a distância de realidade em relação aos tempos, as diferenças entre quem precisa ou não estar todos os dias na empresa, bater ponto. Mas também vejo preconceito nas redes com a carteira de trabalho, há uma glamourização do PJ. É doido, porque a gente tem certeza que tem que lutar por coisas do CLT, porque esses direitos foram conseguidos com muito esforço. Mas o fato é que as pessoas não querem só mais ‘viver para o trabalho’, querem ter uma vida, querem organizar o próprio tempo”.
Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.
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