Coluna da Fabiana Moraes: Alô, Sabino? Quem fala é a menina da sua Última CrônicaAlô, Sabino? Quem fala é a menina da sua Última Crônica — Gama Revista
COLUNA

Fabiana Moraes

Alô, Sabino? Quem fala é a menina da sua Última Crônica

Enquanto o escritor mirava a família relatada em um dos seus mais conhecidos textos, eu, toda arrumadinha para meu aniversário, também olhava para ele

30 de Outubro de 2024

Durante quase toda a minha infância, a minha literatura foi estruturada basicamente por livros didáticos, especialmente os de história, geografia e, claro, português e gramática.

Em uma casa na qual havia somente uma fonte de renda (meu pai, fotógrafo) e oito pessoas para vestir, alimentar e educar, obras célebres como Dom Casmurro (Machado de Assis) e Iracema (José de Alencar) simplesmente não chegavam. Acho meio irônico quando criticam a presença desses escritos nas escolas ainda na infância. Foi justamente nessa fase que eu e minhas irmãs não pudemos acessá-los.

Assim, eram os livros obrigatórios e voltados para as salas de aula aqueles extremamente esperados por mim no início do ano: neles, estavam guardados, como tesouros, textos sobre conquistadores e derrotados, fronteiras e montanhas e, principalmente, contos e crônicas. Era maravilhoso: o Alto José Bonifácio largava suas (reais) barreiras e se expandia em mil planetas.

Quando os livros didáticos finalmente chegavam, eu me refugiava em algum lugar da casa — geralmente um dos dois únicos quartos — para, meio emocionada, começar a desbravá-los.

Em um livro de Português, talvez da terceira ou quarta série (falamos dos anos 1980), havia um texto que nunca mais se desprendeu de mim: A última crônica, do mineiro Fernando Sabino. É uma espécie de hit parade do gênero. Se você não passou por ele, vai um resumo: a crônica conta, do ponto de vista de um escritor branco, a intimidade de uma família negra que comemora o aniversário da filha em um botequim de um bairro bacana no Rio de Janeiro. O cronista observa a cena e finalmente tem a história que buscava para iluminar o que seria seu último texto.

Eis um trecho (ao longo desta coluna, veremos outros, sempre em itálico):

Ao fundo do botequim, um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

(…)

Sabino, que morreu em outubro de 2004, um dia antes de fazer 81 anos, escrevia muito bem: o impacto das cenas que ele construiu em um texto relativamente curto foi grande para a menina de nove ou dez anos e ainda é para a mulher de quase 50. O quarto no qual seis crianças dormiam em dois beliches se transformava em botequim sempre que eu abria aquela página.

Eu sentia o cheiro do local, ouvia o barulho dos copos, pratos e talheres, dos carros passando pela rua. Na casa localizada na zona norte de Recife, mas temporariamente com o CEP de um boteco na zona sul do Rio, o assombro era entender que Sabino não cometia sua indiscrição sozinho: durante todo relato, estamos também ao seu lado enquanto a família é a atração que ilumina e salva o dia do escritor. Somos, sentadas no banco próximo ao dele, não somente voyeurs, mas comparsas.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. Ao meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

Nossa, como eu conseguia ver esse bolo amarelo mostarda. Como eu entendia a beleza que irradiava dele, tão precioso, tão colorido, guardado sob o vidro como uma joia.

No final, era essa a grande lapada, involuntária, do texto: ao longo do tempo, relendo-o, fui percebendo a duplicidade e ambiguidade do meu lugar. Eu não era somente uma observadora da cena, uma convidada de Sabino. Eu também fazia parte daquela pequena festa.

Uma cabeça preta que se mantém ereta é um troço muito poderoso no Brasil talhado pelo desejo da subserviência do outro

Estava ali, sentada e esquiva à mesa de mármore ao lado de meus pais. Fiquei tímida ao adentrar um local no qual presenças pretas e pobres, apesar de todos os gestos contidos, soam grandes e ruidosas demais. Nesses lugares, a gente ouve: mas o que porra você está fazendo aqui? Não é o garçom ou o cliente que precisam vocalizar esse assombro. O mármore diz isso. O vidro brilhante sem uma única mancha de dedo diz isso. O preço da fatia de bolo amarelo diz isso.

Há um contraste construído sobre quem é civilizado ou não, quem é uma gente mais bem acabada ou não, quem está à altura do salão ou não. Tudo isso acontecia enquanto o escritor nos acompanhava com os olhos. Ele via a contraposição daquele vestidinho barato e o todo ao redor. Eu, feliz com meu aniversário, meu bolo e minha roupa nova, estava totalmente protegida das avaliações perverso-cotidianas.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

Vendo em retrospectiva, percebo que a grande emoção de acompanhar o evento estava atravessada principalmente pela emoção de estar nele. De início, eu apenas aceitara o convite de Sabino para somente contemplar o episódio ao seu lado, até — bum — ser tomada pela alegria de ver o bolo amarelo escuro se aproximando de mim. É aquilo, né Paulo Freire? O leitor é um sujeito ativo.

Ali, de onde eu estava, eu também via Sabino olhando fixamente para minha família. Estava atento não como um “animalzinho”, e sim como uma pessoa que se depara com muita beleza. Não, eu não vou usar do mesmo expediente desumanizador e normalizado que ele empregou para descrever uma menina preta em sua Última crônica. Sobre isso, vale dizer que Sabino não o fez sozinho, mas com a cumplicidade de toda uma sociedade que olhava, ora com desprezo, ora com condescendência, para famílias como aquela. Famílias pretas, uma cor que é sublinhada diversas vezes no texto: a existência da menina é acusada a partir da sua cor. “Negrinha”. Sabino não precisou especificar a sua, uma vez que sua pele/existência eram compreendidas como normais e universais.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você…”.

Há quase um mês, durante a Festa Literária de Paraty, a Flip, participei de uma mesa ao lado da escritora Bianca Santana, mediada pela jornalista Ana de Fátima. Nosso tema versava sobre o homenageado daquela edição, João do Rio, um dos cronistas mais importantes da imprensa brasileira. Não tive como não lembrar do meu primeiro contato com o gênero e decidi levar o texto de Sabino para o encontro. Li um trecho de A última crônica diante do público.

Há um contraste construído sobre quem é civilizado ou não, quem é uma gente mais bem acabada ou não, quem está à altura do salão ou não

Foi aí que aconteceu dessas coisas que eu jamais vou achar mera coincidência: Bianca também foi tocada, décadas atrás, pelo aniversário da menina pobre e o reverberou em seu livro Quando me descobri negra (2015). Nele, está o texto A primeira crônica, que inicia trazendo justamente parte da última frase do texto de Fernando Sabino: “Assim eu queria minha primeira crônica: que fosse pura como esse sorriso. O sorriso escancarado, com todos os dentes à mostra, que eu abria quando era pequena”.

Bianca nasceu dez anos depois de mim, mas, vejam só, estávamos juntas naquele aniversário, naquele botequim.

Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu queria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

(…)
Esse final, depois das discretas palmas de celebração (imagina ter que ser modesto e contido durante um parabéns para você, não é mesmo?), deixava meu peito de menina de nove ou dez anos comovido. O encontro dos olhos, o flagra e a posterior cumplicidade entre dois homens separados não somente por um balcão de botequim. Quando reli o texto antes de ir para a mesa na Flip, uma outra coisa se acendeu: tão ou mais bonito que o sorriso é a cabeça que ameaça baixar, mas desiste.

Uma cabeça preta que se mantém ereta é um troço muito poderoso no Brasil talhado pelo desejo da subserviência do outro. É foda o olho que se percebe investigado, o olho que faz parte do corpo contrastante, mas que mantém a linha contínua até a mirada que vem de lá do balcão.

Quem observa, agora?

Quando sorri e encara de volta, o pai deixa de ser um personagem passivo naquela história (eu, que já tinha olhado atenta como uma pessoa para Sabino, continuo feliz com meu bolo amarelo). Torna-se agente, tecedor, contador. Torna-se alguém que também pode narrar. Se apropria, ainda que momentaneamente, do salão. Faz mais, muito mais, do que matar a fome.

Aquele foi um dia bom. Mais de quarenta anos depois, eu voltei, ao lado de Bianca e de tantas outras meninas pretas e atentas, para aquele histórico botequim. Comemoramos, ruidosamente, com um grande bolo amarelo, a nossa existência.
(a crônica completa está aqui).

Fabiana Moraes é jornalista com doutorado em sociologia e professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pesquisa poder, representação, hierarquização social e a relação jornalismo e subjetividade. Três vezes finalista do prêmio Jabuti, é vencedora de três prêmios Esso e um Petrobras de Jornalismo. É autora de seis livros, entre eles O Nascimento de Joicy e A pauta é uma arma de combate (Arquipélago Editorial). Foi repórter especial do Jornal do Commercio. É também colunista no The Intercept Brasil. Antes, UOL e piauí. Quando tem tempo, paga de DJ nos inferninhos de Recife.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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