O que a porta ao lado pode ensinar? — Gama Revista

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O que a porta ao lado pode ensinar?

Novo filme de Júlia Rezende trata de relacionamento aberto e monogâmico e mostra que, quando o assunto é o amor, ninguém está à salvo

Paulo Augusto Franco de Alcântara 26 de Abril de 2023

Foi o antropólogo francês Marcel Mauss quem apontou que, nas relações de trocas entre as pessoas, tudo aquilo que é dado ao outro já vai gravado com uma expectativa de retribuição. Nos anos 1920 essa observação de Mauss contribuía para uma compreensão sobre as formas de funcionamento da sociedade moderna.

Os casais Rafa e Mari, Ísis e Fred certamente se interessariam pela teoria do antropólogo. Elas são personagens do filme “A Porta ao Lado” (2023), de Júlia Rezende, que pode ser assistido no Globoplay. Mari e Rafa vivem um relacionamento jovem cujo cotidiano parece estar ancorado e espelhado nas instituições convencionais, ou seja, naquele conjunto de ideias que definem, no senso comum, um casamento e o que se deve esperar dele.

Eles possuem uma rotina profissional e habitam um apartamento decorado com tons e objetos sóbrios. Os certificados de amor, entre eles, se dividem entre juras carinhosas e manifestações de domínio e ciúmes. A situação de subordinação da mulher é absorvida e atualizada como parte constituinte da relação: o sufocamento de Mari parece sutil e, às vezes, passa desapercebido. A trama do filme começa a se enredar a partir da chegada de Fred e Ísis, seus novos vizinhos de porta. É nesse momento que aquele espelho passa a exibir algumas rachaduras.

Se relacionar, como nos mostram os casais, é também um modo de se colocar politicamente na vida

O casal que chega representa um enorme e assustador contraste a Mari e a Rafa, desde as cores que estampam nas roupas e nos objetos que decoram o seu apartamento até as trajetórias e ideias que expressam em suas falas e posturas corporais. O casal de “metidos a moderninhos” vive um relacionamento aberto onde a liberdade e o ideal de não subordinação é insistentemente reencenado como modelo que governa um determinado modo de ver e de desejar um e outro, assim como o mundo ao redor. Fred e Ísis exalam estabilidade, porém, na perspectiva oposta à Rafa e Mari. A ordem que se coloca entre eles é o respeito aos desejos individuais.

 Divulgação/ Manequim Filmes

Porém, o que vemos em “A Porta ao Lado” é menos um jogo de opostos onde um deverá sair vencedor e outro termina à procura da reinvenção. O filme expõe, a meu ver, uma lição incontornável: quando o assunto é o amor, ninguém está totalmente à salvo. E esse é o grande barato. Por um lado, o casal monogâmico pratica uma luta incessante contra qualquer poluição externa ao ideal de amor que constroem. Já o outro parece, a todo instante, querer driblar o fantasma que poderá ameaçar a individualidade e a liberdade conquistada por cada um: uma quimera que cresce a cada ato do filme.

Se olharmos bem de perto para cada personagem, para suas angústias, dúvidas e ímpetos, compreenderemos que os modelos e convenções são esforços artificiais para conceder forma estável a sentimentos que, por si, são dinâmicos, instáveis e até imprevisíveis. Eles já nascem como tentativas frustradas. É como canta Chico Buarque: “vou falar teu nome, e já teu nome é outro”.

Haverá sempre um descompasso entre a retribuição dada e as expectativas geradas nas trocas amorosas

O que Ísis, Mari, Rafa e Fred nos mostram, cada um ao seu modo e situação, é que haverá sempre, em algum momento, um descompasso entre a retribuição dada e a orquestra coordenada de expectativas geradas na dura prática e aprendizado que são as trocas amorosas. Se relacionar é também lidar com as descontinuidades aí colocadas, observando aquilo que talvez seja a missão incontornável dos relacionamentos contemporâneos: repensar e reelaborar as formas de desejar, de trocar e de se reconhecer amorosamente no mundo.

Se relacionar, como nos mostram os casais, é também um modo de se colocar (politicamente) na vida, reconhecendo, igualmente, o indivíduo e o coletivo. É viver, ao mesmo tempo, contra e favor das convenções sociais, dentro e fora do receituário comum. É também questionar a fixidez e seus superlativos que tanto apagam a beleza das diversidades e impedem a ampliação de nossos repertórios humanos.

Se, por um lado, a porta ao lado nos provoca a não deixar dissolver o individual na mistura às vezes indiscriminada que pode ser um namoro ou um casamento, por outro, seria um desastre desmanchar a bonita liga que pode se instaurar nas alianças por meio de seus diversos arranjos. Em tudo, afinal, pode-se escutar a importante lição de Gilberto Gil: “O seu amor. Ame-o e deixe-o ir aonde quiser”. Ísis, talvez, quis dizer algo semelhante: “Só se machuca quem não sabe brincar”.

Paulo Augusto Franco de Alcântara é pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Antropologia da USP. @francoguto (Instagram); @francopguto (Twitter)