"Saltburn" e o consumo da imagem — Gama Revista
MGM/Prime Video

“Saltburn” e o consumo da imagem

O longa mais recente da cineasta britânica ganhadora de Oscar, Emerald Fannel, é sobre o desejo por imagens

Paulo Augusto Franco de Alcântara 09 de Janeiro de 2024

Já faz um tempo que eu tenho me importado menos com a sentença a um filme: se ele é simplesmente “bom” ou “ruim”. Me chama atenção a profusão das discussões causadas, as muitas contradições que aparecem na fortuna crítica, entre especialistas e difusa na plateia geral. Bom mesmo é quando um filme provoca muita conversa. Saltburn, o longa mais recente da cineasta britânica ganhadora de Oscar Emerald Fannel, é um bom exemplo disso.

O que diz Saltburn? Podemos dizer que se trata de mais um filme sobre um golpe perfeito? Ele aborda a luta de classes recalcada nos limites de uma universidade de elite? Seria uma sátira sobre os excessos aristocráticos ingleses? Pode ser tudo isso, mas vai além. Penso se tratar de um filme sobre o desejo. Mas eu não me refiro aqui somente às linhas da sedução, da vontade, da fixação e da volúpia que ligam e atam as personagens entre si e estas aos cenários tão repletos do erótico. Eu falo sobre o desejo por imagens.

Bom mesmo é quando um filme provoca muita conversa

Foi Susan Sontag (1933-2004) quem nos deu a boa ideia de que as nossas necessidades em relação à realidade são determinadas pelo consumo de imagens. A filósofa e escritora referia-se, especificamente, à fotografia e como a vida cotidiana passava a se parecer cada vez mais com aquilo que as câmeras mostravam. Trocando em miúdos, a realidade imitaria as cenas ampliadas, exageradas e até mesmo montadas nas imagens. Não somente diante daquilo que elas mostram, mas também do que escondem, afinal, como diz Sontag, a fotografia nasceu para mentir.

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Mas o eu isso tem a ver com “Saltburn”? Gostando ou não do filme, ele é eficiente ao nos indagar sobre como estamos desejando e consumindo imagens; sobre como, por meio das imagens, decidimos a realidade na qual buscamos nos abrigar temporariamente, sobretudo, em relação com as redes sociais que seguem ampliando o que o filme mostra. Como em “Euphoria” – série da HBO que revelou Jacob Elordi, um dos protagonistas do filme – no filme de Fannel o espetáculo das sensações passageiras pode se sobrepor aos sentimentos mais elaborados, criando um paraíso artificial onde os modos de assistir serão sempre decididos pela capacidade do arrebatamento imediato do visual. Isso não é um defeito ou uma qualidade do filme, mas é sintoma de como estamos alterando os nossos contratos com as imagens, objetos de um consumo cada vez mais acelerado.

Gostando ou não de ‘Saltburn’, ele é eficiente ao nos indagar sobre como estamos desejando e consumindo imagens

As cenas provocam e intoxicam. No Tiktok, por exemplo, elas são recortadas e tornam-se subprodutos. Assim elas bombam playlists no Spotify, servindo aos “baits” , termo usado para nomear táticas eficientes de engajamento ou da captura do olhar na internet. O filme segue sendo feito e refeito fora das telas usuais do cinema.

Em 2006, ano no qual “Saltburn” é sabiamente ambientado, a opulência dos espaços, dos figurinos e a nudez dos corpos tão frescos dividem espaços com referências à saga de Harry Potter e aos filmes “Romeu + Julieta” (1996) e “O Talentoso Ripley” (1999), para citar alguns. Na trilha sonora ouvimos, com prazer, “Time to pretend” (2007), da banda MGMT e “Murder on the dance floor” (2001), de Sophie Ellis-Bextor. Mais de vinte anos após o seu lançamento, a música atingiu um pico de reproduções após o lançamento do filme. A nostalgia, nesse caso, consumida nas imagens, diz sempre mais sobre o presente do que propriamente sobre o passado. Assim como a imagem, o fator nostálgico não reproduz o passado, mas o recicla.

Podemos dizer que Oliver Quick, o personagem protagonista, incorpora e organiza esse “mundo-imagem”, para usar a expressão de Sontag. Ele é um devorador obcecado em se apropriar da realidade a todo custo. Como ele, assim estamos aptos a fazer. Mas nós, na impossibilidade angustiante de possuí-la por completo, por sua condição inacessível, desejamos e consumimos as imagens.

Paulo Augusto Franco é antropólogo, pesquisador de pós-doutorado na USP e professor do curso de Direito da ESPM-SP. É possível encontra-lo no @francoguto (Instagram) e @francopguto (X)