“Marte Um”, o direito de sonhar
Filme escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2023 é sobre contextos em que a privação parece sempre conter a imaginação
Estamos na periferia de Contagem, segundo município mais populoso da região metropolitana de Belo Horizonte. O ano de 2018 se aproxima do final. A extrema direita chega à presidência da República com a eleição de Jair Bolsonaro. Tércia trabalha como diarista em domicílios e Wellington está empregado como porteiro de um condomínio de classe média. O casal confronta diariamente o orçamento para fazer caber, na ponta do lápis, as necessidades básicas dos filhos Eunice e Deivinho. Eunice é ingressante em uma universidade pública e, provavelmente, a primeira de sua família a assumir essa posição. Ao mesmo tempo, ela experimenta o namoro com Joana, com quem deseja morar junto. Deivinho vive o fim da infância enquanto o pai planeja transformá-lo num craque de futebol do Cruzeiro. A ascensão do filho à fama colocaria fim às incertezas econômicas que vivem. Mas Deivinho, apesar de bom de bola, insiste em olhar para o céu e parece hesitar com os sonhos do pai.
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Esse é o contexto o qual “Marte Um” nos convida a acompanhar. O filme dirigido por Gabriel Martins e produzido por Filmes de Plástico é o escolhido para representar o Brasil no Oscar de 2023. “Marte Um” é um filme sobre sonhos, sobre o direito de sonhar e suas formas de concretização em contextos em que a privação parece sempre conter a imaginação. Mas o que a história nos dá a ver e a sentir é uma série de contrastes radicais a isso.
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Cada um, a seu modo e estilo, imagina outras formas de viver, transfigurando aquilo que lhes é dado, evadindo as linhas pré-estabelecidas de raça e de classe. Deivinho representa o centro de onde irradiam esses “experimentos”, diria a escritora afro-americana Saidyia Hartman. Ao desejar tornar-se um astrofísico para compor uma missão da NASA em Marte, ele parece recriar, em linhas radicalmente diferentes, o mundo que, até então, tomou por missão agir contra ele e contra os seus. Com o telescópio que constrói juntando peças que vai encontrando em seu cotidiano, ele investiga, ao mesmo tempo, os mistérios do espaço e os modos de viver com um futuro aparentemente impedido. O filme, em si, parece uma investigação sobre esses modos de enxergar e de alcançar o futuro, explorando aquilo que poderia ter sido e o que pode vir a ser.
O filme parece uma investigação sobre esses modos de enxergar e de alcançar o futuro, explorando aquilo que poderia ter sido e o que pode vir a ser
Na medida em que as infâncias negras são frequentemente sequestradas pelas estratégias de sobrevivência contra a pobreza ou o genocídio, o grande mérito do filme é, certamente, reconstituir, na forma como se conta as histórias de muitos Deivinhos, a possibilidade de sonhar, individualmente e em coro. Em “Marte Um”, sonhos nascem, morrem e se refazem, de geração em geração, apontando sempre para um futuro novo. A capacidade de sonhar, na família, pode ser recuada para as gerações anteriores à Deivinho, mas o filme também nos mostra que, nas famílias negras e pobres, os ganhos dessas trajetórias não são cumulativos. De um avô criativo e que falava dois idiomas, para o neto, não nos parece ter havido qualquer progresso material que permitisse a concretização desses diversos talentos, entre as oscilações financeiras da família, as realizações não são lineares.
O filme não nos conta, finalmente, sobre o futuro de Deivinho, mas nos motiva a pensar que as linhas de raça estão sendo refeitas. A referência do sucesso para um jovem negro não está apenas nos ídolos do futebol, que o motivaria a acreditar nessa carreira como uma das poucas possibilidades de ascensão para meninos negros das periferias. Em tempos de negacionismos, Deivinho é um garoto motivado pela ciência e que tem, como ídolo, o astrofísico negro Neil deGrasse Tyson. E Tyson, nunca por acaso, não é o único no filme.
É importante observar que poucos personagens brancos aparecem na obra, particularmente a empregadora e síndica do prédio em que Wellington trabalha, e o próprio presidente da República e sua esposa, exibidos na televisão. O argumento da raça, assim, não está enfatizado nas relações brancos e negros, mas é desenvolvido na forma como raça está relacionada com as questões de classe e, poderíamos dizer, com a cultura, onde o candomblé, o samba, e outros elementos da estética negra e periférica aparecem como recursos para a resolução de problemas, para celebração ou como objeto de desejo. A ancoragem dos debates raciais, no filme, num conjunto positivo de simbologias negras é parte de um exercício importante que Gabriel Martins nos conduz: observar uma família negra pelos sonhos que alimenta, e, ao mesmo tempo, situar esses projetos como caminhos pertinentes dentro de um cenário constituído também por outros profissionais negros de sucesso, assim como Tyson, representados pelos personagens da médica e patrões ricos de Tércia.
Os afetos se sobrepõem aos conflitos, o foco é o amor entre uma família negra e entre mulheres negras
Raça e classe rubricam cada momento dessas histórias, e as cenas de conflito condensam muito bem as preocupações do diretor. Deivinho é um menino muito inteligente, ele sabe sobre ciência e também entende o contexto em que se situa. É por isso que conseguimos ler, nos pensamentos desse personagem, uma pergunta crucial: o que acontece se eu confessar os meus sonhos? “Você vai dizer que é bobagem”, Deivinho presume no diálogo com a irmã. No entanto, ao contrário disso, os afetos se sobrepõem aos conflitos, o foco é o amor entre uma família negra e entre mulheres negras. Essa certamente não é uma narrativa normal, não obedece à norma. “Marte Um” não é uma história sobre impossibilidades, é uma contranarrativa sobre a realidade do sonhar.
Paulo Augusto Franco de Alcântara é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (Usp)
Gabriela Machado Bacelar Rodrigues é doutoranda em Antropologia Social pela Usp